Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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7 de março de 2015

Discurso (Remarcante)

(continuação)

-Não assino!
Foi a única frase que o marco pronunciou quando lhe levei o papel selado; fiz-lhe um discurso ao coração (e vós percebeis quão persuasivo eu posso ser), mas ele tem um coração de pedra e não se (co)moveu um milímetro sequer.

Vale a pena tentar demover/comover uma pedra? (a falar nisso, fizeram bem em a remover e a voltar a colocar aqui).

-Não assino!

Voltei à capital para ver se conseguia inaugurar sem a sua assinatura; voltei ao mesmo sítio.
Desta vez, uma senhora bem mais simpática leu o alvará e depois de fazer alguns estranhos esgares, pediu-me para ir falar com o chefe; daí a pouco, era uma data de gente de volta dela, do chefe e do documento; a risada era geral. Não percebo que piada podia ter um alvará, mas que se riam, riam.
Voltou a senhora e perguntou-me quando tinha comprado o documento e se tinha sido na Feira da Ladra.
-Ó minha senhora, esse documento anda na minha algibeira há mais de cem anos, foi assinado por Sua Alteza Real, ou por alguém em seu nome, aliás pode verificar que tem aí o meu nome!
- Pois, o sr é o tal que já faleceu há umas dezenas de anos... Lamento, mas a repartição que trata do seu caso será talvez no Miguel Bombarda.
-E esse Largo, presumo que seja Largo, fica perto?
- Fica para os lados do Campo de Santana.
E lá fui eu à procura da repartição no edifício, não era um largo, Miguel Bombarda que encontrei facilmente. Não parecia mesmo nada uma repartição das Obras Públicas, mas lá procurei um guichet.
-Este seu atestado já não é válido, tem de pedir um novo ao seu psiquiatra
-Desculpe minha senhora, deve haver um lamentável equívoco, eu não tenho nem careço de psiquiatra; quem assinou esse “atestado” foi Sua Alteza Real, ou alguém em seu nome. Só aqui venho para o renovar.
-Queira aguardar que já tratam de si, pode sentar-se nessa cadeira.
Lá me sentei, mas algo me pareceu deslocado; nisto apareceram quatro enfermeiros (vim a sabê-lo depois) que me enfiaram dentro duma camisa de forças (vim a sabê-lo também). Enfiaram-me dentro duma cela almofadada (Pois, consideravam-me doido, doido só por pedir a renovação dum alvará?)
Felizmente que o psiquiatra me considerou, não “não louco”, mas “não perigoso” e me deixou sair da cela, mas não do Hospital Psiquiátrico (era aonde eu próprio me tinha conduzido). Chamavam-me o D. Quixote de lo marco, cavalheiro da triste figura.
Eu nem me importava, a minha missão tinha acabado, o marco continuava por inaugurar...
Com o tempo permitiam-me umas saídas.
Entretanto, numa madrugada de nevoeiro, ouviu-se:
-Aqui posto de comando do movimento das forças armadas...
Não percebi bem o que sucedeu, mas percebi que já não era necessária a tal declaração, que se podia fazer a inauguração. Fui radiante à estação de Sta Apolónia comprar o bilhete, enquanto estava na bicha (fila para quem preferir) ouvi dizer que andavam a prender os ministros do antigo regime; ora penso ser o único ministro do antigo regime; que este que acabou de cair, velho, de podre nunca o podia ser.
Quando o bilheteiro me perguntou para onde queria o bilhete, respondi:
-Para o Brasil.
-Vexa é o Pantaleão? Que eu saiba só esse conseguiu ir ao Brasil de comboio. Mas se quer mesmo um bilhete para lá, paga mais e vai de barco (que os outros foram de avião!).
Eu que não tinha pressa, aceitei, fui num cargueiro.
Eu sei que se fosse banqueiro, ou mesmo político do regime que tinha caído, voltaria rapidamente com os bolsos cheios, mas como só era um ex-ministro dum antigo regime, continuei por lá a vegetar. Valeu-me o Real Gabinete Português de Leitura, pois foi de leitura que me alimentei todos estes anos; também lia os jornais que vinham da Pátria.
Foi por eles que soube da pseudo descoberta do marco; pseudo que só eu já lá tinha ido duas vezes.
Consegui que outros leitores reunissem o necessário para regressar à pátria (de avião - acreditem, voei); em Sta Apolónia o mesmíssimo bilheteiro perguntou-me se queria outro bilhete para o Brasil, que não, que o queria para a estação mais próxima de Vila Nova de Ourém (não podia adivinhar que estava tudo na mesma). Saí no apeadeiro de Seiça, chamei o meu valoroso cocheiro que se tinha dedicado à agricultura e ala que se faz tarde e aqui estou!

Nisto a multidão desata num tal aplauso, nuns VIVAS a D.Quixote de lo marco, cavalheiro da triste figura, que tive de meter a viola no saco e ceder-lhe a honra da inauguração.
Tenho de reconhecer que o tipo me conseguiu bater aos pontos, que conseguiu contar melhor a estória do que se tivesse sido eu a contar; até nos podia ter convencido de ser verídica, que a tinha mesmo vivido; mas se eu tentasse levantar a lebre, só levava com o rótulo da inveja.
A cerimónia acabou com o Hino de Payalvo e Nacional.
Há marcos que merecem.   
RIP

 (lm)




As caras expressivas dos membros da Filarmónica Paialvense no final da inauguração, e do discurso.