Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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3 de dezembro de 2017

Até um dia, com muitas saudades.





Dr. Matos, antigo professor CNA (recorte de foto
grafia retirada da página do facebook da AaaCNA)


Saudosista - Pessoa que tem um gosto exagerado por coisas ou momentos do passado; quem prefere valorizar coisas que já não existem. Sinónimo de passadista, caturra.
 (in dicionário on-line da língua portuguesa)

Que vos parece se eu, aqui, neste momento e neste preciso blog, declarar que não sou saudosista, dando por bom que saudosista é mesmo aquilo que diz lá em cima? Parece-vos estranho, achavam mesmo que eu era passadista e caturra? Pois não sou, ou serei só de certo modo. E não é que eu ache alguma coisa de mal em ter-se um gosto exagerado por coisas ou momentos do passado ou em valorizar coisas que já não existem.
Neste blog esforço-me por manter vivas coisas ou momentos do passado e em valorizar coisas que já não existem. Não significa que goste dessas coisas exageradamente ou sequer que, no limite, goste delas, significa que lhes dou valor, porque existiram independentemente dos meus gostos e valores pessoais, e que procuro que não caiam no esquecimento. E isto aplico-o tanto a este microcosmos a que, sabe-se lá porquê, me venho dedicando, como ao meu país e ao resto do mundo, na medida em que as minhas fracas possibilidades o permitam. Considero minha obrigação, enquanto ser minimamente vocacionado para entender a história, contribuir para, modestamente, não deixar morrer na cabeça dos meus concidadãos mais distraídos a memória de todos nós.
A mesma preocupação não tenho quanto à minha memória privada, aí não, não tenho especial culto do passado, sobretudo da adolescência. Por razões de estrita deferência e lealdade familiar colocaram-me, os meus avós, desnecessariamente num colégio particular, que lhes levou cabedais, que não sei até que ponto prejudicaram a economia doméstica, e não acrescentou nada à minha formação.
O colégio, que terá tido o seu período áureo, não discuto isso, era, no meu tempo, uma coisa anacrónica, comparativamente com o liceu que já então existia em Tomar. Não consigo arranjar para os sete anos que lá passei mais do que este verbo: passar. Passou o tempo, cresci, vivi o tempo que as raparigas dez ou vinte anos mais velhas que eu lá tinham vivido, e sobrevivi.  No rewards no regrets. Nada que deixasse saudades.
Não posso, no entanto, ser injusta. Os professores deixaram-me a imagem, de modo geral, de gente de muita cultura. Teriam as suas falhas, já aqui falei num, uma figura, outro, de filosofia, uma desgraça pedagógica, uma meada embaraçadissima onde era impossível encontrar-se o fio que nos levasse à matéria necessária aos exames, mas que contava as histórias mais mirabolantes e absurdas, a propósito de tudo e de nada, deixando instalar o caos nas aulas de tal forma se embrenhava no seu próprio discurso avassalador e entusiasmante, para quem o seguia. Era um poço de sabedoria, assim lhe prestássemos atenção! Eles sabiam tudo, de português a história, passando pelas línguas estrangeiras, toda a gente se pronunciava. Na universidade fiquei estupefacta com os pontapés na gramática e ignorância de alguns professores quando se ultrapassava o estrito conhecimento cientifico da sua cadeira. No colégio isso seria impensável. Com excepções, também assisti a nódoas, tive um professor de Matemática que, coisa inaudita e que nunca vi antes nem depois e muita aula de Matemática tive, dava Matemática por cábulas e ditava-as. Agarrava do seu papelinho, punha-se à frente do quadro e lia, às vezes fazia o favor de pôr no quadro coisas que copiava do papelinho. Eram mesmo papelinhos, semelhantes a guardanapos de papel. Coitado, a criatura estava ali por engano e não fazia ideia de coisa nenhuma, parece que era de Biologia ou Química, mas, ao que se ouvia dizer, mesmo na sua área era mausinho. Este senhor, que além do resto era autoritário, chato e irritadiço, um velho portanto, deveria ser um rapaz novo na época, digo eu agora pois, anos mais tarde, encontrei-o presidente de um Instituto Politécnico deste nosso amado Portugal. Não resisti a contar isto aqui.Ai este país de opereta!
Mas também tive o melhor professor de Matemática que é possível alguém ter tido. Daqueles que nos fazem apaixonar por aquela bela ciência! A gente explorava as funções, trigonométricas, exponenciais, logarítmicas, os seus domínios e contradomínios com o entusiasmo que Bartolomeu Dias não teve a passar o Cabo e com igual trunfo! E a análise combinatória e a Geometria analítica! Tudo era tão leve e apreensível! E um dia em que o teste correu mal a toda a gente e eu o encontrei na rua no dia seguinte, em que não tínhamos aula:  - O que é que vos aconteceu? Eh pá, nem dormi depois de ver os pontos! Ainda estava com esperança no seu! Mas até você! – E logo eu, sem piedade: - A culpa não pode ser nossa, não íamos errar todos!- Pois tem razão, não pode, não pode, tenho que ver o que falhou! Arrependi-me logo, tive pena dele- Deixe setor, a culpa não é sua! Riu-se – Decida-se, alguém tem de pagar por isto!
A sua alcunha era o 3cm, por causa da pouca altura, já se vê, mas para nós ele era carinhosamente o três, o maior, o mais humano, preocupado e melhor pedagogo com que me deparei.
Tenho saudades suas setore, vou ter sempre.
Soube hoje que morreu no passado dia 24 de Novembro. (MFM)