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O meu desejo, bem egoísta reconheço, de ter netos*, consiste,
além das outras razões igualmente egoístas que faz com que a maioria das pessoas com
filhos os queira ter, consiste, dizia, em encontrar sentido para as
minhas memórias. Para que as quero eu se não tenho a quem as deixar?
São um património que só pode encaminhar-se para quem o
entenda. Eu sei que é assim porque foi assim que sucedeu comigo.
Os meus netos viverão num mundo novo, o tal admirável, cujos
contornos não consigo imaginar.
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.
Mas não é desse mundo que retiro as memórias que quero transmitir, é de outro, de outro tempo, quiçá de outra dimensão, que passou fortuitamente por mim em criança e cuja lembrança me assalta agora num fundo agridoce de dor e de maravilha. E, como recordações de criança que são, entendo que apenas outras crianças parecidas comigo, como terão de ser forçosamente os meus netos, as compreenderão.
Vivi uns tempos numa aldeia que pertencia ao presente daquele
tempo, tempo de transição que se encaminhava para um futuro que traria progresso e melhores condições de vida; conheci uma família
alargada que se amava entre si, mas que fora disso não parecia ter particulares
estimas no lugar, que tinha fumos de grandeza que se sustentavam no facto de os restantes, muito
pobres, os considerarem ricos; e habitei numa casa com dois avós que
pertenciam, eles e a casa, à categoria
do mundo encantado.
É dessa terra, dessa famíla e dessa casa enfeitiçada, cujo sortilégio me acompanha os
sonhos e desses dois velhos fascinantes, ele cismador, devoto e trabalhador,
ela inteligente, fantasiosa e de humor corrosivo, que eu hei-de, um dia, falar
aos meus netos.
Crianças que, pertencentes a outro mundo, hão-de apreciar conhecer este outro, que era triste e alegre, justo e injusto, rico e pobre, como o deles, como o de todos os tempos, mas onde as pessoas iguais às de sempre, viviam de outra forma, tinham outros hábitos, usavam outros objectos e, sobretudo, tinham outros sonhos. E onde, bem no centro desse mundo, para mim, estava a casa dos avós. Começarei por ela.
Era uma casa de lavoura. Sede da agricultura praticada em menos de uma dúzia de parcelas de terra, que por ali se chamam fazendas,
dispersas pela freguesia, algumas, mas a maioria próxima da casa. Nas fazendas mantinham-se, desde que havia memória, oliveiras centenárias, vinhas e
figueiras e plantavam-se cereais na época própria. Em frente à casa,
atravessada a estrada de terra, havia a “horta”, perpendicular

Logo à entrado de casa, à direita do pátio, ficava a casa de habitação no andar superior, a adega no piso térreo, com o competente lagar de vinho, de pedra, contiguo à única janela estreita, no meio do qual estava disposta uma prensa, destinada a espremer o mosto do bagaço das uvas. No resto do espaço, sempre fresco na calma do Verão, ficavam as alfaias agrícolas, a carroça e a charrete que em tempos servira para levar a avó às compras a Tomar, e, viam-se com dificuldade lá ao fundo, no meio da escuridão, encostados às paredes barris de madeira de vários tamanhos desde os gigantescos até aos pequenitos que hoje se vêm a servir de decoração nas casas típicas. Mas tudo isso, lagar e barris, já não tinha uso no meu tempo, apenas as grandes dornas entravam ao serviço uma vez por ano para transportarem as uvas, na carroça ou num tractor emprestado, até à adega cooperativa em Tomar, durante a vindima.
As acomodações, destinadas aos animais e a diversos arrumos, sucediam-se lá para dentro, separadas em lojas, quando no piso térreo, ou sótãos, quando no de cima. Havia o sótão das batatas e das cebolas, onde estas se dispunham em réstias e as outras se espalhavam pelo chão sobre sacas de sarapilheira. O "palheiro" ficava igualmente num sótão, localizado numa grande arrecadação de passagem, de alto pé direito onde, em cima, se colocavam os fardos de palha ou erva seca e por baixo residia a pobre mula, quase às escuras, por vezes acompanhada de uma vaca ou boi quando, não sei porquê, passavam acidentalmente lá por casa.
Mas havia também um sótão como todos os que conhecemos, onde
se guardavam as velharias, móveis antigos, alguns bons demais para estarem a
uso, argumento formidável que só poderia vir da boca da avó (não era ironia,os móveis eram de facto bons) objectos de uso pessoal, espelhos e quadros provenientes de um primo de um bisavô de Tomar, que fora criado de quarto do rei D.Luís, o qual lhe teria dado aquelas prendas – a importância que se dava aquilo era nenhuma!, uma pequena arca encoirada a que eu sempre aspirei e que os deuses, invejosos, mais tarde terão desviado para o Olimpo, e outras coisas consideradas sem préstimo de momento, tudo envolto nos competentes reposteiros tecidos pelas aranhas, mas que eu não hesitava em transpor para entrar naquele mundo maravilhoso, onde havia, entre outros tesouros uma arca cheia de revistas de moda dos anos trinta e quarenta e de livros antigos, alguns escolares, que eu adorava folhear.



Por essa hora, também os pombos estavam de regresso de um longo dia fora de casa e aguardavam que lhes fosse aberta uma guarita no mesmo local para, um a um, por uma ordem que só eles saberiam, se instalarem para dormir.
Era aquele o último, talvez único, acto que, a avó ou eu, estávamos obrigadas antes de “ir para cima”, fechar a porta do galinheiro e a guarita dos pombos. O que não queria dizer que o avô não fosse, depois, confirmar quando “fechasse tudo”.

*Isto foi escrito antes de ter netos. Hoje a última coisa para que "os quero" é para lhes transmitir memórias, mas admito que já os levei a fazer "visita guiada" ao que aqui descrevo.