Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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30 de maio de 2012

Eleições na Madalena e outras mais.

Na sessão  de 21 de Janeiro  de 1876, a Vereação, tendo o Governo Civil informado que fora anulada a eleição da Junta da Paróquia da Madalena, resolveu marcar novas eleições para 23 do corrente, nomeando para presidente  da Assembleia Henrique Maria de Sousa, do Porto da Lage.

A.M.T. 1870-1900, pag. 101



O nosso Hino entre 1826 e 1910*(com algumas interrupções)


«….estava pois o mestre escola , de parceria com o boticário, a castigar a perversidade dos imperadores romanos, por amor do mártir S.Sebastião, que, segunda vez, acabava de ser frechado no panegírio. Neste comenos, abeirou-se deles Calisto Elói, e para logo se calarem as duas capacidades, em deferência ao Salomão da terra.
- Que dizem vossemecês?- perguntou Calisto benignamente – Continuem … Parece que falavam do santo.
- É verdade, Sr. Morgado – acudiu o boticário, ajustando os colarinhos percucientes do verniz da goma – Falávamos na malvadez dos imperadores pagãos.
- Sim! – disse Calisto, com proeminência declamatória – sim! Horrorosos tempos  aqueles foram! Mas os tempos actuais não se diferençam tanto dos antigos que possamos, em consciência e ciência, esclarecer o presente e praguejar o passado. Diocleciano era pagão, cego à luz da graça: os crimes dele hão-de ser contrapesados e descontados na balança divina, com a ignorância do delinquente. Ai porém, dos que prevaricaram fechando os olhos à luz da notória verdade, a fim de se fingirem cegos! Ai dos ímpios, cujas entranhas estão afistuladas de herpes! No grande dia, funestíssima há-de ser a sentença deles, novos Calígulas, novos Tibérios, e Dioclecianos Novos!
Relanceou o farmacêutico uma olhadela esguelhada ao professor, o qual, abanando três vezes e de compasso a cabeça, dava assim a perceber que abundava na admiração do seu amigo e consócio erudito de história romana.
Obrigado às orelhas do auditório atento, Calisto, em toada de Ezequiel, continuou:
- Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma imperial! Os costumes dos nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantes moderno que já não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais sete séculos, se emancipou da tutela das leis …..



S.Bento: Câmara dos deputados, meados sec.XIX




....
Ficaram o boticário e o professor de primeiras letras, e mais os lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas ilustrativas, ao alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos entremezes do Entrudo, exclamou:
- Aquilo é que dava um deputado às direitas! Um homem assim, se fosse a Lisboa falar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
- Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro – observou o mestre-escola – os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos não haveria rei, nem professores de instrução primária (observem a modéstia da gradação), nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido repetidas vezes, no Periódico dos Pobres, as palavras autonomia nacional. Falhou-lhe desta feita a memória, lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticário, que resmungou:
-Anatomia nacional!
- Que é?!- perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.
- Parece-me que é asneira! – Respondeu o outro com certa indecisão.
Prosseguiu, concluindo, o mestre-escola:
-E portanto, os tributos, tio José do Cruzeiro, são necessários ao Estado como a água aos milhos – Ora agora, que há muito quem bebe o suor do povo, isso há: e aqueles que deviam ser bem pagos são os que menos comem da Fazenda Nacional. Aqui estou eu que sou um funcionário indispensável à Pátria, e receberia cento e noventa mil réis por dia, se não trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que venho a receber seis e cinco! Que país!… O sr. Morgado disse bem: estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Calígulas!
O auditório já vacilava em decidir qual dos dois era mais talhado para ir falar ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre-escola.
.....

 
Gravura: Les elections municipales au Pas-de-Calais, 1884


Fermentou na mente dos principais lavradores e párocos das freguesias do círculo eleitoral a ideia de levar ao Parlamento o morgado de Agra de Freitas.
Os deputados eleitos até àquele ano, no círculo de Calisto Elói, eram coisas que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso legislativo. Pela maior parte, os representantes dos Mirandeses tinham sido uns rapazes bem falantes, aeropagitas do Café Marrare, gente conhecida pela figura desde o botequim até ao S.Carlos, e afeita a beber na Castália, quando, para encher a veia, não preferia antes beber da garrafeira da Mata, ou outro que tal ecónomo dos apolíneos dons.
Em geral, aquela mocidade esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões lusitanos, não sabia topograficamente em que parte demoravam os povos seus comitentes, nem entendia que os aborígenes das serranias tivessem mais necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regime da Constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as delícias do hábito de Cristo, obrigara a urna e o senso comum a gemer nos apertos do doloroso parto do peralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever ao deputado, incumbindo-lhe trabalhar na nomeação dum vigário chamorro, ou outra coisa, que foi denominação de bando político, em tempo que a política não sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado não respondia à carta do influente,  nem o requerente sabia onde procurá-lo fora do Marrare.


Theatro de S. Carlos.Gravura, Pastor/R. Cristino, 1884



 


Por muitos factos desta natureza conspiraram os influentes do círculo de Miranda contra os delegados do Governo; e a ideia de eleger o morgado foi recebida entusiasticamente por todos aqueles que o ouviram falar no adro da igreja e por quantos houveram notícias da sua parlenda.

O partido, que o mestre-escola ganhara de eloquente assalto, cedeu ao império das razoávei conveniências, e centralizou-se na maioria. A verbosidade, porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado secretário da junta da paróquia.

Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente às solicitações dos lavradores, que o procuraram com o mestre-escola à frente, facto que muito honra este desinteresseiro e reportado funcionário. Neste encontro, o professor excedeu o juízo avantajado que ele propriamente fazia de sua vocação oratória. Mostrou as fauces do abismo escancaradas para tragarem Portugal, se os sábios e virtuosos não acudissem a salvar a Pátria moribunda. Calisto Elói, enternecido até às lágrimas pela sorte da terra de D. João I, voltou-se para a esposa e disse, como o agricultor Cincinato:

- Aceito o jugo! Assaz receio, mulher, que os nossos campos sejam mal cultivados este ano …

António Maria, Janeiro 1880


Estavam próximas as eleições, a autoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o Governo da inutilidade da luta. Não obstante, o ministro do Reino redobrou instâncias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escrito revistas de espectáculos, e recitava versos dele ao piano, cuja falta ou demasia de sílabas a bulha dos sonoros martelos disfarçava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil que pedia a sua demissão para não sofrer a inevitável e desairosa derrota.

Quis assim mesmo o Governo aliciar no circulo algum proprietário, que contraminasse a influência do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns lavradores, menos aferrados à candidatura de Calisto, lembraram à autoridade o professor de instrução primária, estropeando frases dos discursos dele, proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como parvajolas que eram.

Por derradeiro, o governador civil fez saber ao Ministério que os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras.

Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que, beliscado na sua vaidade, assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras objuratórias, as quais, se tivessem gramática à proporção do fel, o Governo havia de pôr as mãos na cabeça e demitir-se.

À excepção de uma lista, o morgado de Agra de Freimas teve-as todas. A que não tinha o nome simpático aos eleitores votava em Brás Lobato, professor de instrução primária, secretário da paróquia e ex-sargento das milícias de Mirandela. Afinal, maculou a alvura do nobilíssimo desprendimento com que perorara em pró da eleição de Calisto. Fragilidade humana!»


A Queda de Um Anjo (1866), Camilo Castelo Branco





* AQUI para quem quiser ver e ouvir letra e música.