Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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11 de fevereiro de 2021

Memórias - A Prima A.

 

A Prima A.

 

Ao lado da horta existia a fazenda da prima A. Tinha um pereiro, que deitava ramadas para a estrada, por cima do muro de pedras, foi o único pereiro que conheci na vida, nem sei se o nome será este, sei que se chama peros à fruta que dá. Considerando que as pereiras dão peras, concluo que se aquele dava peros, seria um... ou não? Também não interessa, os peros, verdes, pequeninos eram deliciosos, costumávamos apanhá-los da estrada, a prima não se importava, até fazia gosto. Ao lado, ainda lá está bem maltratada, uma roseira de Santa Teresinha, de florinhas eternas, na minha imaginação estarão sempre lá, pequeninas e perfumadas, cheirando a rosas como era de obrigação delas antigamente. A minha madrinha Alice, amiga de flores, ao contrário da minha avó, ia lá por vezes apanhar uns raminhos, colocava-os depois numa jarrinha em cima da cómoda. As rosas, os cheiros da cera dos móveis e do chão, do calor seco na penumbra das portadas das janelas fechadas de Agosto, são estes os aromas sob os quais escrevo tudo o que me lembro


Pois a prima A. tinha um burro, ia 
para a fazenda de burro, não morava longe, era logo depois da ponte, embora aos meus dez anos tudo fosse muito mais longe que hoje. Mas seria perto, tanto que ela, à volta, ia muitas vezes a pé, levando o burrinho à arreata. A razão da vinda do animal, era a rega e o transporte de produtos. Mal chegava, colocava o burrinho na nora, e ele ali passava a tarde, ou a manhã, a dar voltas ao poço, puxando os alcatruzes, cheiinhos da água transparente, as vezes parecia-me azul, e despejá-los no tanque. Daqui a água saía a correr, ia pelos regos, direita às hortaliças ou ao milho, ou, nas grandes calmas, às caldeiras das árvores, para que dessem bom fruto na época. A prima cuidava da rega, encaminhando a água, deixava-a entrar nos canteiros fechava as saídas com terra com ajuda da enxada, esperava que todo o canteiro ficasse encharcado, depois fechava o canteiro, a água corria outra vez livremente até ao próximo e o processo recomeçava.

Eu estou a inventar porque nunca vi de perto a prima A. a regar, mas vi muitas vezes outras gentes e tudo me diz que ela seguia este processo secular, quando eu a observava lá de casa, corcovada sobre a enxada no meio das couves e das abóboras. No Verão a prima ceifava, pequenas quantidades é certo, para levar para os coelhos lá para casa, para as grandes colheitas arranjava ajuda, mas tudo se completava num dia, a fazenda era pequena. Por vezes acompanhava-a uma sobrinha, era professora algures, solteirona, mas aquelas mulheres não encontravam par porquê, caramba? E vinha pelas férias, à tarde de sábado ou no Domingo, aqui só para colher qualquer repolho ou pé de alface, que em dia santo não se trabalhava. Ao fim do dia a prima carregava os seirões com produtos da sua horta e lá ia ela, de chapéu de palha, a pé, mais o burrinho, estrada fora, quando a melancolia já descia por cima da nossa casa e se trocavam as boas noites prima, até amanha se Deus quiser.
Agora que olho para trás e tento recordar a sua figura, imagino que talvez ela fosse uma excêntrica, uma velha hippie de 70 anos, afinal aquele era o tempo deles, e não o soubesse. Não era uma camponesa, vestia roupas simples, saias estreitas de fazenda, blusas de algodão, sapatos de grosso cabedal, casaco comprido de lã no Inverno, nada de tamancos ou lenços na cabeça, dir-se-ia uma modesta senhora da cidade, talvez mesmo uma estrangeira, uma country woman inglesa.

Era interessante de ver, aquela velha magra, morena de sobrancelhas carregadas, cabelos ainda pretos puxados atrás num toutiço, um pouco alquebrada dos ombros, de lenço de seda ao pescoço no Verão e xaile de malha castanha no Inverno, sentada de lado encima do seu burrinho ou com ele a pé pela mão. Mantinha sempre uma cara séria, nunca a vi sorrir, também a ouvi falar poucas vezes, mas era solícita e disponível, sempre pronta a ajudar, sobretudo, muito trabalhadeira, a minha avó admirava-a muito. Curioso que a minha avó, que nunca pisou a terra para a cultivar, raramente para apanhar alguma coisa da horta, que se achava superior e olhava com condescendência para quem o fazia, tinha consideração pela prima A. A ponto de lhe conceder a honra de sua sucessora.

Metera a avó na cabeça que morreria antes do marido e preocupava-se com quem tomaria conta dele depois da sua partida. Dedicava-se por isso, com muita seriedade, coisa que os adultos conhecedores da coisa achavam, alguns mórbido, outros uma brincadeira ou mesmo loucura, mas que eu, com o meu pragmatismo da adolescência até nem achava mal (atendendo a que ele não sabia escolher a roupa que vestia, nem que era preciso aquecer água para fazer chá ou café) a seleccionar, a partir de solteiras e viúvas conhecidas, a futura companheira certa para o seu marido. Depois de criteriosa escolha entre candidatas que nunca imaginaram terem estado sujeitas a semelhante apuramento, foi eleita a prima A. como a herdeira ideal.
E a avó tratou de o comunicar ao interessado. Procedeu como sempre que pretendia apresentar-lhe uma questão séria, na convicção que ele reagiria como era habitual. Passavam-se assim os interlocutórios entre o casal: quando a  refeição (o almoço a que eles ainda chamavam jantar, a noite não era ajeitada para se discutir coisa nenhuma) já se aproximava do fim, ela dizia: - Olha João, estive a pensar numa coisa, vê lá o que te parece ….Ele continuava a comer sem olhar, enquanto ela ia falando. Se a ideia exposta lhe agradava, interrompia rápido e dizia – Muito bem… e seguia-se a escalpelização do assunto. Se não lhe agradava, deixava-a acabar, nunca a interrompia, terminava a refeição com calma, arrumava os talheres no prato e levantava-se da mesa. Sem dizer uma palavra. Chegado à porta da cozinha, procedia conforme o costume diário, virava-se e informava-a sobre o que iria fazer e onde estaria, de tarde. Estava dado o sinal de que o assunto não devia voltar a ser falado (antes que se levante por aí a gritaria  em uso sobre a condenação retroactiva do machismo, diga-se, neste caso, em defesa do avô,  que ela, por vezes, tinha ideias de tal forma mirabolantes, de irritar um santo, comentava a nora e minha mãe -esta que vos conto perto de outras é pacifica- que ele, ao fim de cinquenta anos tinha mesmo que ter arranjado uma estratégia de sobrevivência).
Desta feita, porém, depois de a ouvir,  reagiu -Não serve, é muito negra!- continuou a comer.
Agora sim! Já pode começar a desanca que eu acompanho! Homens! Insensibilidade masculina no seu melhor, só pensam neles! Pobre avó, tão empenhada no bem-estar dele! Pobre prima, preterida por não se encaixar no seu ideal de beleza, não obstante as suas inúmeras qualidades!
(MFM)

 

Pintura exibida na imagem  - Mulher de vestido vermelho e chapéu de palha -1937, Picasso (1881-1973)