Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
Todos os textos aqui publicados podem ser utilizados desde que se mencione a sua origem.

5 de fevereiro de 2021

Memórias - O Sr. Luís.

 

                                                           O sr. Luís

Naquele tempo, em que a maquinaria agrícola era ainda reduzida, o trabalho no campo requeria muita gente. Que, claro, já fora muita mais. Eu ouvia lá em casa queixarem-se da falta de pessoal, apesar das jornas incomportáveis que estavam que não se podia. E dos direitos, que tinha acabado a jornada de sol a sol, e as oito horas de trabalho não podiam ser ultrapassadas. Para além disso, os jovens já não queriam trabalhar no campo, os rapazes só muito novos, depois de virem da tropa queriam outras coisas, as fabricas, as oficinas; as raparigas eram cada vez mais requeridas em lugares outrora ocupados pelos homens que estavam na guerra, o campo era agora das crianças acabadas de sair da escola que por ali andavam atrás do meu avô, dos velhos e das mulheres. E um novo fenómeno tinha vindo dar a machadada final no povo dos campos - a emigração.

A este propósito contou-se durante muito tempo o episódio do senhor Luís que representava a nova era em que estávamos a viver, em que nos tinham posto a viver, como dizia a minha avó. O Luís tinha ido trabalhar lá para casa ainda rapazote pequeno e por lá se fizera homem, o meu avô gostava dele e reconhecia-lhe qualidades para ser dono de si próprio.

 Quando o rapaz quis levantar voo e ir buscar condições para isso, indo para França, o meu avô não só o apoiou como lhe forneceu os meios para o fazer, para os transportes, para ir a salto, não sei, só sei que o Luís precisava de dinheiro para ir, e que ele lho proporcionou. E lá foi, lacrimejante despediu-se como quem ia pró Brasil, agradeceu mil e uma vezes, e mil e uma vezes se despediu do sr. João, da senhora e dos meninos. 

Os meninos éramos nós. Eu e os meus irmãos, que ele conhecera desde sempre, já lá trabalhava quando nós nascemos, tratara sempre por meninos e a quem falava com todo o respeito no avozinho e na avozinha. Para nós, claro, ele era o Luís.

Lá foi, e graças a Deus e à vontade e empenho que o meu avô reconhecera nele, passados tempos voltou a matar saudades e regularizar as suas dívidas que ele também era homem de boas contas. Quando chegou lá a casa, abriu o portão verde que tantas vezes, desde criança transpusera para ir ganhar o triste pão diário, e que agora franqueava já senhor de si e do seu futuro, deparou com a minha irmã a brincar no pátio, aquela menina a quem ele conhecera e tratara sempre por menina Joãozinha, e disse-lhe no tom que o suor amassado nas terras de França autorizava - Oh Maria João, vai avisar o teu avô que está aqui o Sr. Luís que lhe quer falar. Mas, coitado, a ordem foi dada em hora de tão pouca sorte que a minha avó ouviu.



A dívida foi paga, mas o pobre Luís, proscrito, desapareceu de vez das nossas vidas e, se calhar, nunca percebeu porquê. Tivesse sido o meu avô a ouvir, acharia graça à prosápia e, talvez, com a sua fleuma tivesse feito o Luís entender e o facto ficasse entre eles, mas a minha avó não era assim, gente ingrata e que não conhecia o seu lugar não merecia, definitivamente, mais a nossa atenção



A partir daí, quando vinha a propósito falava-se sempre no senhor Luís. Dizia-se que fulano e beltrano tinham visto o senhor Luís, que o senhor Luís estava cá de férias, que o senhor Luís tinha comprado isto e aquilo. O tratamento trocista de senhor é que nunca mais o largou, agarrara-se-lhe ao nome que nem carrapato, ganhara-o bem ganho lá pela estranja juntamente com a pobre petulância. (MFM)