Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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12 de março de 2014

Recordar é Matar Saudades 9

                                                    

                                                 Doce



A Dulcinda foi uma modesta rapariga mais conhecida por “Doce”. Porquê? Porque quando o pai a registou uma pessoa empregada doméstica em Lisboa tinha uma patroa que se chamava Dulcinda mas a quem o marido chamava Doce. Devo a essa Alice que já partiu há largos anos o nome familiar “Doce”. Eu, para a família e alguns conterrâneos era a Doce. Hoje só os meus netos e alguns sobrinhos me tratam docemente por avó Doce e tia Doce. Quando eu era garota ou adolescente havia pessoas que, para me arreliar, me chamavam amarga ou azeda.
Quando se chega aos oitenta anos e olhamos para trás passaram-se dias felizes da infância e da juventude, lágrimas, desilusões, sonhos, dias amargos, outros com um pouco de doce. Muitos castelos ficaram por construir e outros foram destruídos ao longo da vida. Ainda sonho com a saudosa África onde vivi dez anos (não felizes). Viagem de barco através do Atlântico, cheia de aventuras. Já lá vão 46 anos! O regresso de avião sob um mar de lágrimas.
Cá vou vivendo os últimos dias da minha “agenda”. Dores, limitações, solidão. Tenho família, Graças a Deus, mas ganharam asas e foram para longe.
Quando fiquei só escolhi ficar no local onde nasci e cresci. Não me arrependo e dou graças por ter a sorte de poder aqui viver. Tudo me é familiar. Algumas árvores que eu conhecia também foram sacrificadas. A ribeira alterou o seu leito; o açude já não tem a mesma beleza, a nossa escola desapareceu, deu lugar a outro edifício. A aldeia está muito desertificada, faltam crianças e jovens.
Dou o meu passeio no meu triciclo para idosos, acompanhada pela fiel amiga “Tuka”. Já caí duas vezes mas não foi grave. Quase que conheço os buracos todos da estrada. Quando os meus vizinhos deixarem de ver o triciclo e a cadela, rezem por mim –“a Doce não vive mais”.
Agradeço à minha prima Filomena Mota (é trineta do meu bisavô Sousa Rosa) que apertou comigo para eu escrever estórias da nossa terra e da nossa gente que já partiu. (Dulcinda Mota Teixeira)



... árvores que eu conhecia também foram sacrificadas ...
  Eu, sim, tenho que agradecer, muito, à Dulcinda a honra que me deu em me fazer a vontade, escrevendo, e a  felicidade de ter sido o veículo da sua divulgação. Obrigada prima. (MFM)