Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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21 de novembro de 2022

República dos Costa

 

Costa é um nome comum em Portugal (consta ser o sexto apelido mais usado, depois de Silva, Ferreira, Pereira, Oliveira e Santos) e muito antigo também, pois já o era de D.Gonçalo da Costa, do solar da Quinta da Costa, Guimarães, senhor do Couto de Mancelos, cavaleiro de D. Afonso Henriques.

Talvez já então D.Gonçalo usasse o curioso brasão dos Costa que hoje conhecemos. Aquele que, ao primeiro olhar, parece ter  costelas firmadas sobre o escudo vermelho. O que até viria a propósito dado que "Costa" em latim significa "costela lateral". Mas os heraldistas não não estão de acordo com esta visão tão simplista, segundo eles o que está representado não são costelas mas sim seis facas de sapateiro com lâmina curva e sem ponta, que tinham precisamente o nome de “costas”, e eram usadas, naturalmente, por quem tinha aquele ofício.

A ser assim, talvez D.Gonçalo não gostasse muito de divulgar esta versão da sua linhagem e tivesse antes querido que se soubesse que tinha costelas no peito em vez de sovelas de sapateiro ou lá o que é que era aquilo. No que teria razão. Eu, por mim, também preferiria.

Já o mesmo não digo dos Costa destes nossos últimos séculos, os quais com certeza, exultarão e terão toda a honra nos seus antepassados artesãos, sejam eles os confectores da bota alta do nobre e do sapatinho da burguesa, os das meias-solas de vão-de-escada ou, mais ainda, os sofridos e revolucionários operários das grandes fábricas de calçado. Refiro-me aos Costa da quadra abaixo e aos que lhes seguiram, muito nossos conhecidos, muito interveniente nas coisas cá do burgo, e, ao que se tem visto nas últimas semanas, muito amigos uns dos outros. Se dão ou não "cabo da gente" a doutrina divide-se. (MFM)

Um Costa matou o Rei
Outro Costa o Presidente
E um Costa que eu cá sei
Foi quem deu cabo da gente



(A quadra acima apareceu espichada nas paredes de Lisboa na manhã sequinte a 14 de Dezembro de 1918, dia do assassinato de Sidónio Pais. Os Costas aludidos eram Alfredo Luís Costa e José Júlio da Costa, respectivamente assassinos do rei D. Carlos e do Presidente Sidónio, e Afonso Costa visto como o inspirador daqueles actos).

Nota: Á Wikipedia e quejandos da net, os meus agradecimentos pelas informações facultadas para a elaboração deste post.

4 de outubro de 2022

É Pena




    Em Porto da Lage, no passado, podia ler-se num painel de azulejos o que consta neste velho prato de Alcobaça. Agora já não se pode. É pena. (MFM)

20 de setembro de 2022

E Não É que Agora me Morre a Rainha?

 

Só me faltava esta!



  

Neste mundo, que cada vez é menos o meu, vejo cair a toda a hora a esperança da criação de um mundo de liberdade, bem estar, justiça social e tolerância, o que na minha juventude parecia estar a construir-se porque as pessoas ansiavam e lutavam por isso. Esse mundo esvaiu-se. Hoje, ao hedonismo junta-se o radicalismo de que são exemplos a defesa de únicos e exclusivos oprimidos, de hoje e de ontem, e a famigerada teoria de género, que só conduzem à tribalização e à promoçáo do ódio constante ao outro. A essência da democracia foi-se, agora resume-se a eleições, impera a ditadura da "única verdade", que não aceita a discussão muito menos oposição, e o controlo da linguagem como exercício de poder.

Durante décadas ignorei a existência da rainha, depois passei a associá-la às revistas cor-de-rosa, últimamente dei por mim a pensar nela como exemplo de missão e de sacríficio de vida por uma causa. Mas, apesar de tudo, soube sempre dentro de mim que ela lá estava, lá estava quando nasci, lá continuava e continuaria a estar.  Como as rochas que  só se alteram levemente pela força dos elementos e que são eternas. Afinal enganei-me. A surpresa da notícia atordoou-me primeiro, entristeceu-me depois e não percebi logo porquê. Depois vi que era o meu lamento pela perda de um símbolo, o do mundo que se está a acabar. Estou com muita pena de mim!(MFM)




..... Também Javier Márias partiu por estes dias. Um grande escritor que eu admirava e que dizia não se sentir bem neste "mundo de maluquinhos".

14 de junho de 2022

Segredos Sanguíneos

~
O público em geral que me desculpe que isto não vos interessa nada, mas não resisti a pôr aqui este segredo familiar. Pelo facto  peço a vossa compreensão e, já agora, discrição (isto que conto era dantes, agora já toda a gente é como nós). (MFM)


A minha avó paterna contava que não fora por falta de informes (avisos?) da sogra que deixara de tomar conhecimento das idiossincrasias da família daqueles a quem uma e outra tinham ligado os seus destinos. Segundo aquela minha bisavó, tratava-se de gente não totalmente "pura" da cabeça, que era dada à melancolia (cismadores descomedidos), à fantasia e à obstinação, três ingredientes que, quando juntos em grandes proporções, produziam entes (alguns saídos das suas próprias entranhas, ela reconhecia-o) aluados, pouco amigos da verdade ou do trabalho, ambiciosos (antigamente era defeito), inconscientes e muito, terrivelmente, desconfiados e teimosos. Seria para perguntar por que ponta, escolhendo dentro de tal sortido de pechas,  é que elas lhes teriam pegado. Pois parece que foi por isso tudo, a mistura era supostamente irresistivel. Pena que tal tenha perdido efeito nas gerações seguintes! Desse legado não nos teriamos queixado. 
Eram aquelas e outras  mais coisas que as senhoras em causa, as duas de que já falei a que se veio juntar depois a minha mãe que também se deixou prender por um, apontavam como estando no "sangue", aquela substância  terrível e única que escorre das feridas abertas, dos M. Mas mais não digo até porque herdei uma outra falta que lhes era bastamente assinalada, "eles" nunca, por nunca ser, falavam "mal uns dos outros", "encobriam-se", diziam. E assim me calo, corre-me no sangue, é mais forte do que eu.
Mas vá lá, até para tudo isto faça sentido sempre vos conto de uma frase que ouvi muitas vezes lá em casa quando um de nós, éramos todos low-profile,  inesperadamente e com toda a calma se saía, de dentro dos seus silêncio e invisibilidade habituais, com uma novidade estrondosa ou dava uma réplica ainda mais estrondosa a uma suposta novidade "é mesmo M. uma gente que nunca pergunta nada mas sabe sempre tudo ". (MFM)

Foto tirada num alojamento de turismo rural algures em Itália,
local onde ninguém soube dizer nada sobre os livros, bem
fechados num armário envidraçado.
 

10 de maio de 2022

Aviso aos Médicos

 Em 1580 Garcia da Orta foi julgado e condenado à fogueira por judaísmo. O já estar morto e enterrado desde 1568 não constituiu obstáculo à execucão da sentença. Foi-se à Sé de Goa, exumaram-se-lhe os restos mortais e ateou-se-lhes o fogo. Que, quando o exemplo urge e é preciso queimar a raiz, que ela arda e se purifique!

Lembrei-me  deste facto, antigo de mais de 400 anos, ao ver a reacção que as fotos abaixo suscitaram numa publicação num site de velharias. Ardeu Tróia meus senhores! Os comentários foram de fazer gelar o sangue de uma boa pessoa, que era eu. Que, quanto aos outros, ardeu-lhes  aquele líquido vermelho em cadeia ascensorial, cada vez mais fervente de comentário para comentário, em invenções de torturas retroactivas de todas as espécies contra os médicos que, em algum tempo, se atreveram a exercer "o trabalho de responsabilidade" de cigarro em punho. Uma comissão, já!, para apurar quem praticou tão nefandos crimes! E penas exemplares (muitos defendem antes, outros depois do apuramento dos factos) com lavaredas bem vivas que aqueçam e regozigem a alma de quem sofre com  tamanhas iniquidades!

E depois de ler isto srs. drs. fiquei preocupada convosco e temerosa com o perigo que correis. Tende cuidado, eles "andem", "andem" mesmo aí! (MFM)




Declaração de interesses: Eu não fumo nem nunca fumei. Não o digo hoje com orgulho,  assim como não o disse no passado!  Deus sabe o que custou à vida social da minha juventude não o fazer, ainda guardo cicatrizes da ferida profunda infligida no meu ego à conta disso! É preciso ser-se da minha geração para se compreender o quanto ficava mal, em certos meios, uma rapariga não traçar a perna, pôr o cigarro entre o indicador e o médio e, sofisticadamente, deixar o fumo desprender-se sobre o ombro e a cabeleira. Quem é que queria passar pela vergonha de não exibir esta prova seminal de libertação feminina, quiçá sexual, neste país de opereta!? Eu lá querer não queria, mas a repugnância pôde mais do que eu e, embora me garantissem que, com o tempo, me havia de habituar, o meu comodismo natural pouco dado a sacrificios, que aqui além de físicos eram financeiros, venceu! E então, por parte das minhas companheiras, da fama de antiquada menina recatada não me livrei! Mas, ao contrário do que aquelas minhas ingénuas contemporâneas fumadoras julgavam, a vida rolava independente dos rolos do fumo de cigarro e brevemente elas mudaram de opinião ... pois, fumar ela não fuma, mas ... E da fama de sonsa não me livrei! (MFM)

13 de abril de 2022

Páscoa sem Fé

 

 

Gustav Klint, Death and Life

 




Eu bem sei que a Pascoa é a compreensão da Ressurreição depois da morte. Que ela quer dizer que depois do desamparado caminho da cruz se segue a irupção da vida. Sei que os hoje mercantis ternos coelhinhos e os coloridos ovos de chocolate são, afinal, símbolos bem antigos da fertilidade e do ressurgimento da vida após um longo Inverno. Sei, mas  não estou convencida. Os tempos que vivemos só me deixam ver longo caminho do calvário estendido à nossa frente, não consigo crer, muito menos festejar a esperança da Redenção. Mas para os que ainda conseguem Boa Páscoa. (MFM)
 



A um Crucifixo

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?

 Antero do Quental 1842-1881, Sonetos Completos, Publicações europa-américa, 1984.

10 de abril de 2022

Hora H

 




A Primavera cheira a laranjas.
(Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que chamam laranjas.)
O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios.
(Dizem que as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos.)

                                             António Gedeão,1906-1997, Poesias Completas (1956-1967)

7 de abril de 2022

Questão "em estrangeiro" para ficar claro

 




"Ci chiediamo se il prezzo del gas possa essere scambiato con la pace. Cosa preferiamo? La pace, o star tranquilli con l'aria condizionata accesa tutta l'estate? Questa è la domanda da porsi"
 Draghi sobre o  embargo ao gás russo.

"In peace nothing so becomes a man as modest stillness and humility; but when the blast of war blows in our ears, then imitate the action of the tiger; stiffen the sinews, disguise fair nature with hard favoured rage…"
Henry V,  William Shakespeare

"Cowards die many times before their deaths; the valiant never taste death but once."
Julio César, William Shakespeare


28 de março de 2022

Os Lusíadas - 450 anos da sua Publicação


Moeda de 50$00 em prata editada em 1972



Eu não consegui, ainda (pode ser que lá chegue), ver qualquer beneficio na velhice. A minha geração e a anterior vêm nisso muita, muita "coisa positiva", falamos assim, sentem-se lindamente na sua, deles, pele, agora é que se sentem eles próprios, nunca estiveram melhor, bla, bla, bla, mas cá para mim, coitados, isso é maleita que lhes deu, assim como lhes dão outras trazidas pela idade, mas que a mim, graças à minha proverbial ruindade filha da minha lucidez, não me atacou.
Uma das famigeradas e proclamadas vantagens é a sempiterna sabedoria, que será superior nos mais velhos, o que, aparentemente, não merece contestação pois que até a simples aritmética está com ela. Se adquirimos uns tantos conhecimentos por ano, assim como adquirimos quilos, rugas, rendimentos ou não rendimentos, pontos para subir na carreira, etc. ,etc.,contas feitas, quem mais anos tem, mais conhecimentos abriga (de abrigar, dentro da cabeça). Até aí concedo. Mas terão também de conceder que se o dito abrigo (o continente) falha, como diabo fica e se publicita o conteúdo? Ah pois é, e estes continentes não costumam ser muito de fiar com o passar dos anos.
Isto tudo para dizer que eu sabia, ora se sabia, que em Março deste ano se assinalavam os 450 anos da publicação de Os Lusíadas. Sabia mas esqueci-me. O que só prova a minha tese, pelo menos quanto à minha pessoa ela está certa. Tenho conhecimentos mas não me lembro deles, coisa que à humanidade se torna muito útil. Adiante, também não é preciso juntar a neura à deslembrança.
E, como sempre sucede nestes casos, se não me lembrei do que se passaria amanhã recordo-me lindamente do que aconteceu há cinquenta anos. Nos 400 anos da publicação, nos idos de 1972, não se falou de outra coisa. Houve até uma Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas, a imprensa, a rádio, a televisão única, para já não falar em multiplas comemorações culturais, encarregaram-se de dar a conhecer, ou lembrar, aos portugueses quem era Camões, o seu poema épico e do que tratava. E foi tão vivo e intenso o acontecimento que ninguém dividava que no exame nacional de português desse ano sairiam Os Lusíadas. E assim foi. Lá estava um Canto para a gente identificar, as estrofes para interpretar porque, não, não havia só orações para dividir, embora a gramática fosse exigente dizer isso é (era) desculpa para quem não sabia nem queria saber nada sobre as intervenções dos deuses do Olimpo nas desgraças e prazeres da viagem, da admiração do poeta pelo povo português e da forma poetica de conhecer a História.
Este ano, sinal dos tempos, o que aconteceu, se aconteceu, quanto a celebrações, foi nos nichos habituais de gente que troca o que investiga e publica entre si sem se preocupar em divulgar para o grande público ou sem que os meios de comunicação os façam chegar ao grande público.
De uma dessas situações tive conhecimento através de Francisco José Viegas no seu blog A Origem das Espécies (sapo.pt), que dá conta da tradução para indonésio de Os Lusíadas e de um prodigioso (digo eu!) congresso sobre o tema realizado nas Molucas! (MFM)

"Os Lusíadas em Jacarta 

 Por FJV, em 14.03.22

Uma das razões por que gosto de Os Lusíadas tem a ver com o halo de doidice que percorre o poema épico. O que ali está é um grupo de estouvados que vai pelo mundo fora a desafiar os deuses, os Elementos e a ordem das coisas – o que irrita muito as pessoas que deve irritar. Como poema, é uma construção quase perfeita; como leitura do mundo, é de um atrevimento notável. No sábado passado assinalámos os 450 anos sobre aquele momento em que o impressor António Gonçalves, a 12 de março 1572, em Lisboa, deve ter folheado o primeiro exemplar. Não abriu nenhum telejornal, claro, mas hoje gostava de vos falar de Danny Susanto (professor na Universitas Indonesia, em Jacarta) que falou de Camões e de Os Lusíadas num congresso sobre o tema; tudo online, organizado na Ásia, mas virtualmente em Ternate, no arquipélago das Molucas, lugar essencial dos roteiros camonianos – onde Camões teria começado (ninguém garante) o poema. Foi um belo dia para Danny Susanto: cumpriu um dos objectivos da sua vida – traduzir Os Lusíadas para indonésio. Saiu agora e está disponível. Um abraço para Jacarta."

                                                      Francisco José Viegas Da coluna diária do CM. em 14.03.2022

25 de março de 2022

Paciência

 

Marques de Oliveira, Rapariga na Praia


"O povo não costuma perder a paciência, porque ela é o seu único bem".

                                                                                Carlos Drummond de Andrade 


Deve ser por isso que aceita sem mais:



- Os pivots da televisão que, hoje na guerra como ontem na pandemia entendem que faz parte das nossas obrigações de espectadores aturarmos os seus estados de alma. Parece que pretendem com isso mostrar que são humanos e que sofrem com as noticias. Olhem que choradeira insanável (e útil!) não seria se nos hospitais, locais onde se recebem os mortos e feridos, campos de refugiados, etc., etc., o pessoal que lá trabalha também "fosse humano" como eles. Ganhem juízo.

- O nosso presidente (por quem ainda sinto um bosquejo finissimo da dita porque acredito que tem, ao contrário de outros governantes passados presentes e futuros, um genuino amor e interesse por este triste povo) pela sua verborreia incessante que atingiu mais uma vez os píncaros da respeitável sublime cretinice ao vislumbrar na actual guerra grandes vantagens turisticas para Portugal, à semelhança do que sucedeu na 2.ª Guerra Mundial (sic). Valha-o Deus.

- Quem manda nos bombeiros de Tomar que decidiu acabar com a sirene que, quem viveu nesta cidade e é vivo sempre se lembra de ouvir tocar ao meio-dia, para não perturbar os refugiados aqui acolhidos. Eu só espero que o autor da ideia (que continua de saúde, prova de que o ridiculo não mata) não tenha tido outra que a supera em estupidez: a de a fazer saber aos infelizes ucranianos como prova da sua preocupação com eles. Seria juntar o insulto à ignomínia. Perdoai-lhe Senhor. (MFM)

20 de março de 2022

Primavera

O equinócio da Primavera ocorreu, em Portugal continental e na Região Autónoma da Madeira, hoje, 20 de março às 15:33 horas (menos 1 hora nos Açores), instante que marcou o início da Primavera no hemisfério Norte. 


Ah, que bela manhã de Primavera!



Abram ao sol as portas, as janelas!

Cheira a café com leite,

a sabonete,

a goivos, a sol novo, a vida nova!

A Rua canta!… sinos e pregões,

apitos e buzinas, vozes claras.

- “Gostas de mim?”

- “Gosto de ti” 

e o céu cobre a Cidade com seu manto azul.


Ah, que bela manhã de Primaver
a

                     .....

                                                                    Os eléctricos voam, transbordantes,

                                                                      a tilintar, a rir nas campainhas,

                                                                      e os automóveis, como borboletas,

                                                                      circulam, tontos, nas ruas sonoras.

 

                                                    No Tejo, os vaporzinhos de Cacilhas

                                                    brincam aos barcos grandes, às viagens,

                                                    e o pequeno comboio vai e vem,

                                                    como um brinquedo de menino rico.

                                                    Confundem-se nas árvores, ao sol,

                                                    folhas e asas, pássaros e flores.

                                                    É festa em cada rua. Em cada casa,

                                                    um canário a cantar, uma cortina,

                                                    um craveiro florido na janela.

                                                    Despejaram-se armários e gavetas,

                                                    frasquinhos de perfume…Toda a gente

                                                    foi para a rua de vestido novo,

                                                    de fato novo, de gravata nova,

                                                    e tudo canta, a Rua é uma canção.

 

             Ah, que bela manhã de Primavera!

 

–“Gostas de mim?” — é o tema da canção.

–“Gostas de mim?” — pergunta-lhe ele a ela.

–“Gostas de mim?” — pergunta à flor o vento

e a flor ao rouxinol… — “Gostas de mim?”

–“Gostas de mim?”, “Gostas de mim?”

Cheira a goivos, a sol, a vida nova…

 

Ah, que bela manhã de Primavera!

 


     (Fernanda de Castro 1900-1994, in "Asa no Espaço", 1956)


17 de março de 2022

Melhor do que nós

 

Porque há pessoas que dizem o que pensamos das coisas melhor do que nós, do que eu de certeza.



12 de março de 2022

Apocalipse

 



" Peste, Guerra, Fome e Morte. O livro de São João de Patmos, “Apocalipse”, descreve-os por esta ordem, após quebrados quatro dos sete selos do pergaminho de Deus. Já Daniel havia profetizado o mesmo, e tudo se conjuga para um local, o Armagedão, onde as forças do bem e do mal têm a batalha final. Bem sei que pode parecer que acredito nesta história de forma literal. Mas não deixa de ser curioso que esta guerra se segue e sobrepõe à peste (covid). Embora, ....., eu seja pessimisticamente otimista sobre o desfecho da guerra, a sua continuação levará, sem dúvida, à escassez e à fome; falta a morte, para completar o quarteto fúnebre. E essa já por aí anda, com a peste e os bombardeamentos. Só não se perfilou ainda um Armagedão metafórico para a triagem entre justos e injustos."
                                                     
                                                                                          Henrique Monteiro- Expresso 11.03.2022

11 de março de 2022

A Memória

A memória, afinal é a sensação do passado… e toda sensação é uma ilusão.
Fernando Pessoa


Eram assim os talheres em Porto da Lage!
E eu tinha-me esquecido! Como é possível?

Não há nada mais relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de factos e de figuras.
Nelson Rodrigues


7 de março de 2022

Poema da Morte Aparente




Nos tempos em que acontecia o que está acontecendo agora,
e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no tempo deles,
parecia-lhes a vida podre e reles
e suspiravam por viver agora.

A suspirar e a protestar morreram.
E agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas.

                                                                        (António Gedeão,1906-1997)

5 de março de 2022

Perplexidade





Oh Laurindinha,
 vem à janela.
Ver o teu amor,
que ele vai p'ra guerra.

Se ele vai pra guerra,
deixá-lo ir.
Ele é rapaz novo,
ele torna a vir.

                        (Popular)






Durante séculos, todos os séculos que nos precederam excepto os últimos setenta e cinco anos, a guerra fez parte da vida dos europeus ocidentais - era uma coisa tão real como qualquer outra que existia entre o nascimento e a morte de cada ser humano.  Contavam com ela, preparavam-se para ela, preveniam-se dela, rezavam para que não começasse, para que se mantivesse longe, para que acabasse. 

Depois, deixámo-nos disso, a paz passou a ser um direito, direito inquestionável como todos os que nos habituámos a desfrutar e todos aqueles que nos preparávamos para inventar. Passámos a ser pacifistas acreditando que tínhamos paz por causa disso, esquecendo que só a tínhamos devido aos lados contrários que mandam neste mundo possuírem cada um  armas atómicas. 

E não é que ignorássemos as guerras que ininterruptamente nasciam e continuavam sobre a Terra, as guerras "normais" dos nossos tempos, aquelas a que estamos habituados e sobre as quais temos sempre na ponta da língua as nossas abalizadas opiniões, as nossas verdades e os nossos culpados do costume. As guerras que têm como razão dissensões civis, regionais, religiosas ou étnicas que se costumam passar em locais remotos, nem sempre fisicamente longe, mas sobre os quais nada sabemos nem nos interessamos, até mesmo na Europa mas que já foram há mais de trinta anos, onde é que isso já vai, e eram nos Balcãs "entre eles" e "lá com eles". E aquelas que são causadas pela retaliação e invasão por parte de grandes potências devido a ataques que lhe foram feitos e as provenientes da eterna disputa de territórios de que a gente já nem se lembra de como principiaram, como entre a Palestina e Israel. 

Mas esta semana chegou a guerra. A Guerra porque sim, porque um império resolveu invadir injustamente um vizinho mais fraco que não alinhava consigo e cujo espaço ambicionava, como aconteceu nas duas guerras mundiais do sec. XX, como aconteceu com Napoleão e como sabemos ter acontecido ao recuarmos por essa história além. E ficámos sem palavras, sem justificações (os comentários do costume parecem gastos e sem sentido) porque as receitas velhas não se adequam.

Há dois anos a Pandemia deixou-nos chocados pela surpresa, tal o credo que professávamos com toda a fé, de que era uma questão de tempo até a ciência e o progresso tecnológico   nos fazerem vencer a própria morte.

Hoje, esta guerra que escapa a todas as explicações conhecidas, causa-nos, digo-o consciente do abalo que posso causar às almas sensíveis, mais perplexidade que horror. 

Talvez tenha chegado o tempo de abandonarmos as nossas verdades e recomeçarmos a ter dúvidas. (MFM)


23 de fevereiro de 2022

Despu(dor)



Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!

Fernando Pessoa



Nos nossos dias a quadra acima é um anacronismo. Estou mesmo em crer que se o/a povinho/a woke não fosse ignorante e a conhecesse já a teria acrescentado ao index, a queimar nas anunciadas próximas fogueiras, por descriminação às lágrimas e maleitas expostas. Mas, porque acredito que ainda há gente como eu que foi criada a ter pudor de mostrar o sofrimento e a lamber as feridas, as do corpo e as outras, sózinha, aqui a deixo enquanto posso. (MFM)

26 de janeiro de 2022

Antecipei-me

 

Nota Preambular - Se têm mais que fazer não leiam o que segue. Esperem pelo próximo post que é, de certeza, melhor. Este não passa de uma chocha peça de diário que a autora achou por bem pôr aqui, para cumprir calendário.



No domingo fui votar. Nem sempre voto e não me arrependo nada de quando não o faço, mas desta vez queria fazê-lo e vendo todos à minha volta a cair que nem tordos mercê do vírus, pus-me a temer, supersticiosamente, que o desgraçado ainda me ia impedir de contribuir para salvar a Pátria agora que isso se me tinha metido na cabeça, que corri a ver se o fintava. Consegui, agora pode o dito atacar-me à vontade que a asneira, ou não, já está feita.
E lá estive na Cidade Universitária, calhou-me a secção de voto na Faculdade de Direito. Senti-me em festa. O que é a gente sair da rotina. Nesta minha vida, quase toda a votar, fi-lo apenas em três sítios. Uma monotonia tão grande que, aparte a primeira vez e o ano passado (em que me senti medievalmente empestada ou leprosa tal a enérgica -para ser simpática- patrulha higiénica a que fui, eu e todos, submetida-mantém a distância, agora não entra, já pode entrar, chegue-se para trás, lava as mãos, não toca em nada, ajuste a máscara, lava as mãos …), nunca me deixou recordações. Nem olhava à minha volta, punha a cruz (quando punha) e vinha-me embora. 
Desta vez, porque o lugar era outro e novo, porque o dia estava frio e lindo, o céu era o azul de Lisboa e a relva era verde, senti-me bem e reparei no que me rodeava. Todos conhecem a Faculdade de Direito de Lisboa, o hall de entrada do nosso presidente como ele já fez questão de mostrar ao país. É um edifício do Estado Novo (com um acrescento contemporâneo por detrás dele de valor arquitectónico assinalável que dá pena estar escondido) que, como todos as daquela época está construído de forma a a luz entrar magnificamente por ele dentro. Naquela manhã, então, estendia-se um tal esplendor de claridade por aqueles corredores largos afora que nem se dava conta dos quilómetros que se tinha que percorrer para alcançar, enfim, a mesa de voto pretendida. Lá, quase chegada, impunha-se a obrigatória e demorada fila. Não que houvesse qualquer obstáculo humano pelo caminho, a controleira fúria sanitária já está out e sabemos como este povo detesta estar fora de moda, acontece porém, como vi depois, que no voto antecipado há a acrescentar ao preenchimento do boletim de voto o metê-lo dentro do envelope branco, o qual segue para dentro de outro azul, que, por sua vez, se entrega na mesa onde  lhe é colocado no rosto a nossa identificação e só então toda esta gorda papelada se introduz directamente na urna, que permanece aberta, pois não cabe na ranhura. E, claro, isto leva o seu tempo, o pessoal, os votantes e o da mesa, já tem a sua idade, o boletim de voto tem vinte (vinte!) siglas apertadinhas, é necessário pôr os óculos, procurar o que se quer e esperar que se tenha escolhido o quadradinho certo. Se houve engano, antes a Covid, caneco! 
Bom, eu falo nos votantes, mas está errado, foi as votantes, aqui seria um sitio onde a gente da ideologia de género diria que só havia votantas. Mercê da seriação alfabética a minha secção, a anterior e a seguinte era formada por Marias. E assim sendo, dada a ostracização a que este belo nome foi lançado durante décadas, depois do seu largo domínio, e por as suas novas detentoras ainda não terem chegado à maioridade, os senhores calcularão a média de idade das Marias em presença. Mas a verdade é que, havendo embora muitas amparadas por familiares, outras com bengalas e duas em cadeiras de rodas, em geral estávamos bem. Capazes mesmo de andar num virote de fila para fila por culpa do excell. Eu por acaso acertei logo à primeira na minha secção de voto por, nas últimas eleições, já ter passado pelo meu único vexame em votações. Depois de uma vida a pensar que sabia o abecedário, de fazer parte de listas, de pautas de exames, de concursos, do diabo a sete, sei lá!, e portanto de estar convencida que o meu nome era anterior, alfabeticamente, ao do das Maria do Rosário não é que sou mandada embora, já de cartão de cidadão na mão pronto a entregar, de uma mesa de voto por o meu lugar não ser ali? Pois não era não senhora, a última pessoa daquela secção era a Maria do Rosário …. conforme estava escrito lá fora, não tinha eu lido? Pois tinha e por isso ali estava, o F era antes do R, não era? Mas qual R, o nome a seguir ao Maria era o D, não estava eu a ver? Mas qual D? o do? mas isso era uma preposição, não era um nome, tentei eu ainda, agarrando-me aos meus resquícios de gramática. Aí o senhor, benza-o Deus, não teimou, apenas arrumou, informou-me que o computador era assim que ordenava as pessoas. E eu, sem argumentos face a tal pesadíssimo facto, fui-me para onde pertencia. E aprendi. Desta vez já eu sabia que estava atrás de todas as M. do… ,até à Maria do Zorro, se a houvesse. Mas nem todas as minhas congéneres estavam sabedoras desta alteração civilizacional e daí andarem indignadíssimas, obrigadas a passar do início de uma fila para o fim de outra, num corrupio pela Faculdade de Direito. Diga-se que o sítio até nem era mal-azado para resolver o caso, podia-se mesmo ir ali à frente, a Letras, pedir ajuda técnica, não fosse ser domingo.
Outra coisa que reparei, ali nas filas do corredor e depois cá fora na Alameda da Universidade, foi que o povo não perfilhou esta modernice de antecipações. Sensato como é, o povo desconfia. Num país onde nada se faz sem atrasos nem delações, não parece lá muito sério nem legal, muito menos português, fazer-se uma coisa, ainda por cima antecipando-a, com o pretexto de se facilitar a vida às pessoas. Esta razão, então, o povo achou que é um atentado à nacionalidade, mesmo à identidade portuguesa. Não se manifesta porque, lá está, é sereno, e porque, claro, não acreditou. A razão para as antecipações ainda está para se saber, mas o bom povo, de pé atrás, não alinhou. Como é que eu sei que o povo estava ausente? Vendo e ouvindo, ora essa. A populaça é transparente e não se esconde, onde está mostra dignamente a sua presença. E pelo menos aqui na Cidade Universitária não estava, isso vos garanto eu, mesmo que à primeira vista o parecesse. Dou um exemplo. No corredor, enquanto esperava vi uma senhora distintíssima muito alta e muito velha, de belos cabelos louros e capa de caxemira creme com gola de raposa, que dir-se-ia estar acompanhada, não propriamente pela empregada,  mas pela mulher que lá vai a casa fazer umas horas de limpeza por semana. Na conversa entre as duas, queixava-se esta última do frio enquanto tentava infrutiferamente juntar as duas bandas do esgaçado anoraque acolchoado sobre o peito, usando roupa que, com boa vontade, lhe terá servido três números abaixo há muito, muito tempo, e uns sapatos que o passar dos anos fizera confundir com os pés mostrando todas as protuberâncias destes. Mas nada mais errado do que confundir esta personagem com o pessoal doméstico da senhora da gola de pele, aposto com quem quiser que se trata de alguém que veio há cinquenta anos de Trás-os-Montes para Lisboa estudar Química e é agora professora emérita da Faculdade de Ciências. Ninguém como esta gente para mostrar que o hábito não faz o monge. Digo-vos eu que tenho experiência. Há anos deixei um colega sozinho a fazer as despesas de conversa com uma conhecidíssima sumidade ao tempo directora de uma Faculdade, porque não consegui parar de contar os buracos que as traças tinham feito na eslavaçada (aqui no sentido tomarense de ter sido lavada cem vezes mais do que a garantia permitia) e outrora branca T-shirt que a doutora trazia vestida.
Em suma, e concluindo, por toda a Cidade Universitária, por uma vez, a burguesia imperou. 
Passeou pelo relvado com carrinhos de bébé e com os avós, jogou à bola com a prole, sentou-se no chão, bebeu água da garrafa e comeu um bolo, tal qual os sindicalistas no Primeiro de Maio. Como é igual esta humanidade! Também casais do mesmo sexo, sozinhos ou trazendo à trela pequenos bull-dogs, tomavam sol deitados na relva (sobre isto vão-me desculpar mas tenho que fazer um parêntesis e desabafar, digam o que disserem, mesmo quem tem preconceitos guarda-os para si, já ninguém hostiliza e a maioria aceita, por isso é mesmo necessário os meninos fazerem tanta questão em mostrar quem são, pondo os pés nus dentro das sapatilhas, debaixo das calças curtíssimas a ponto de ficarem com os tornozelos tolhidos e roxos de frio? Pela vossa saúde cresçam que já têm idade para ter juízo, percebam que o resto do mundo quer lá saber com quem se deitam mas que fica arrepiado só de ver os vossos pés gelados e calcem lá umas meias quentinhas!). Até aquela burguesia que a gente não vê todos os dias, que se fecha em casa, ou anda sei lá, pelo estrangeiro, pelas quintas ou assim, apareceu. Depois, aquela que pasta pelo Corte Inglês, pelo CCB e Gulbenkian era aos montes. Veio de carro como não podia deixar de ser, adoram andar de carro pela cidade ao domingo quando “não anda ninguém”, engarrafaram toda a Alameda e viram-se gregos para arranjar lugar, deixaram a avó entrevada à porta da Faculdade de Psicologia com os miúdos que andaram para deixar cair a senhora, foram pôr o carro no Campo Grande e andaram mais a pé do que se tivessem vindo directamente das Avenidas Novas onde moram. Peripécias que fizeram o casal discutir o que, espero eu, não os tenha perturbado a ponto de confundir a Iniciativa Liberal com o Livre ou vice-versa. A propósito, nada do que eu disse indicia o sentido de voto. Que esta gente terá o mesmo berço (mais geração ou menos geração a diferenciá-los) é inegável, que está ligada às mais variadas fichas ideológicas também. Há os conservadores puros, os liberais puros, os assim-assim, os socialistas, a “esquerdalhada” que costuma ser filha de conservadores e pai de jovens conservadores, as tias fúteis, as tias caridosas e empenhadas socialmente, os católicos, os intelectuais, as intelectuais, que costumavam votar só esquerda, mas parece que agora já não é bem assim, etc, etc. Toda uma panóplia de gente que constitui uma fatia da sociedade portuguesa que, coitada, na generalidade, não faz mal a ninguém, mas que é a mais gozada e maltratada por todos, incluindo pelos seus próprios membros, como é o caso, por ser dela que emana todo o mal que nos atravessa. Mas, como o hipotético bem parece que também não tem  outro lugar de onde venha, que o Senhor inspire os escolhidos e nos guarde a todos nós. (MFM)

 









A sala do voto com o respectivo quadro
(todas têm um) alusivo aos fazedores
ou executores da Lei.


22 de janeiro de 2022

Paialvo


Paialvo é um dos meus pontos de passagem quando vou de Lisboa para Porto da Lage. Se quero evitar a velha estrada ferozmente curvilínea de Torres Novas, o caminho mais aprazível, que junta a alguma planura solitária do Ribatejo  a beleza bucólica dos lugarzinhos de floridas casinhas bem arranjadas,  é aquele que passa por Atalaia, Carrazede e Paialvo. Como os caminhos escolhidas pelas antigas gerações demonstram, a passagem por Tomar é absolutamente dispensável.
Será essa razão pela qual apenas no sec. XIX, e apenas também por uma decisão administrativa,  as localidades  desta freguesia passaram a fazer parte do concelho de Tomar? Essa ou outra, o que me parece é que esta cidade e a ruralidade sob a sua administração (e aqui refiro-me a todo o concelho) não vivem exactamente no mesmo mundo,  tendo os mesmos interesses e auferindo das mesmas regalias. Por motivos que têm a ver com a resolução de problemas administrativos e civicos (serviços camarários e mandar os filhos à escola, por exemplo) as populações não urbanas do concelho de Tomar  recorrerem  à sede deste por obrigação. De resto, para trabalhar, adquirir outros bens e até para nascer  servem-se de concelhos vizinhos. Mercê do comboio, o Entroncamento é outro exemplo, e vias rodoviárias razoáveis inter-concelhos, outras cidades ficam mais à mão. E a cidade de Tomar não me parece que se esforce muito para inverter este estado de coisas e estreitar laços com as freguesias rurais. Não falando já noutros aspectos básicos, pensemos no turismo, com uma economia quase só assente neste, a câmara empenha-se fortemente na sua promoção  na cidade mas descura completamente os arredores que apresentam potencial que outros concelhos, sem Convento de Cristo como bandeira, aproveitariam sem pestanejar. Tenho lido casos como este ou ainda este ou mesmo a nossa ribeira da Beselga que tem merecido alguma atenção no concelho de Torres Novas mas que está completamente descurada no de Tomar, quanto aos seus interesses histórico e ambiental, o seu leito é um imenso canavial que impede a simples visibilidade, quanto mais alguma observação monumental ou paisagistica, salvo nos locais onde os particulares limpam. São estes e algumas juntas de freguesia, os únicos que ainda se esforçam por manter viva a história das suas terras, honra seja feita ao blog conhecerfreguesialémdaribeiratomar e a este site da junta de Paialvo e acredito que haja outros de que não tenho conhecimento. Só me resta pedir que não esmoreçam, continuem e que outros mais se lhes venham juntar. (MFM)



Aguarela de Fernando Perfeito de Magalhães Vilas Boas  publicada em "Pelou
rinhos Portugueses" do mesmo autor e de Vasco da Costa Salema.



Foto de tempos idos. Hoje em dia este monumento
está restaurado assim como se encontram bem
recuperadas as casas à sua volta .





Nesta e na foto anterior:vindimas e procissão nos anos trinta do Sec. XX em Paialvo.

Nota: Imagens retiradas da net, sem alusão a identificação de autor.

11 de janeiro de 2022

História de Encantar


Vou-vos contar uma história passada num país muito velho, improvável e pachorrento onde cada um trata da sua casa o melhor que pode, com limpeza, eficácia e rapidez, mas, no que diz respeito à coisa pública, se faz muito pouca coisa útil e quando se faz é com muito custo e demora porque "as coisas não são assim", "tudo tem a sua complexidade e precisa de ser estudado", é necessário que a ideia seja minha porque se for do vizinho não presta e é mais importante perder tempo a brigar com ele do que avançar com o que importa a todos, e as mais das vezes não há dinheiro e quando há, e depois de parte passar para os bolsos de quem não devia, é preciso atravessar pântanos de paroquianismo, drená-los, contentar cada abadia com um bocadinho do bolo e, por fim, constatar que as partes depois de somadas são uma manta de retalhos, curta e que não aquece ninguém. É, em suma, assim e pronto. Se queriam melhor não tivessem inventado O Milagre de Ourique, Alcácer-Quibir, o fado e quejandos. Ah, ia-me esquecendo, a populaça não é parva, sabe com o que conta, isto é, não conta com nada nem com ninguém que faça alguma coisa que seja para seu proveito. Por isso, ai de quem, Deus Nosso Senhor o defenda, faça algo que não corra mal, que, helas!, faça bem feito o que devia. Está desgraçado. Ou é herói ou sobe aos altares ou perde-se a si mesmo. Se não morrer, evidentemente, que não é coisa que se deseje a ninguém, mas que dá a garantia de se viver para sempre. Como sucedeu com o da história que segue. (MFM)

Era uma Vez ...

Há muitos, muitos anos, corria o ano XL do sec. XX, numa cidade atravesada por um bucólico riosinho e sombreada por altivo castelo, corriam há muito as obras na ponte "viam suceder-se os Invernos sem que os trabalhos lograssem convencer da sua própria conclusão....eram muitos e justificados os queixumes que de toda a parte nos chegaram pedindo-se remédio urgente para tão momentoso assunto pois ...ninguém ignorava os prejuízos e transtornos que tal estado de coisas causava à vida da cidade , designadamente ao comércio local e à importante freguesia de Santa Maria dos Olivais ..."

Estava assim a população aperreada num "pesado cativeiro" (ler abaixo) sem se poder movimentar devidamente entre as duas margens, quando um dia, perdão, uma noute, precisamente pelas nove horas de uma noite de Outono "parou junto dos taipais do lado norte da ponte um automóvel donde rapidamente se apeou o sr. Engenheiro Duarte Pacheco ilustre titular do Ministério das Obras Pública e Comunicações ....que  não se deteve em considerações estéreis procedendo logo à inauguração da ponte sobre cuja faixa de rodagem ainda se encontravam uma série de utensilios e de cantaria e ordenou portanto a destruição imediata dos tapumes  que há muito estavam pondo à prova a resignação dos tomarenses.... a boa nova correu célere e dentro de poucos minutos uma multidão entusiasmada invadiu a ponte ajudando - sabe Deus com que íntima satisfação - a arrancar a malfadada vedação que durante tanto tempo se afigurou à cidade como as peias de um pesado cativeiro ....E por fim ... toda a gente que tinha assistido empolgada à inauguração da ponte não pode evitar um movimento institivo de alegria e gratidão coroando tal acontecimento com uma expontanea e vibrante salva de palmas..."  (extractos retirados da notícia do jornal abaixo mencionado)

Eis, mais uma vez, o povo no seu melhor! Verdadeiro herdeiro daqueles que ajudaram e aplaudiram delirantemente quem matou o conde de Andeiro, Miguel de Vascondelos e, nos nossos dias, ....

A ponte depois das obras.

Eng. Duarte Pacheco  (1900-1943) "Pessoa
eminentemente prática e de acção cuja interessante
 personalidade se caracteriza por uma robusta
capacidade de  trabalho e por um dinamismo que há
muito o impuseram à consideração do país como um
dos primeiros ministros da Revolução Nacional ..."


 
Jornal "Cidade de Tomar" 6-10-1940