Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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26 de janeiro de 2022

Antecipei-me

 

Nota Preambular - Se têm mais que fazer não leiam o que segue. Esperem pelo próximo post que é, de certeza, melhor. Este não passa de uma chocha peça de diário que a autora achou por bem pôr aqui, para cumprir calendário.



No domingo fui votar. Nem sempre voto e não me arrependo nada de quando não o faço, mas desta vez queria fazê-lo e vendo todos à minha volta a cair que nem tordos mercê do vírus, pus-me a temer, supersticiosamente, que o desgraçado ainda me ia impedir de contribuir para salvar a Pátria agora que isso se me tinha metido na cabeça, que corri a ver se o fintava. Consegui, agora pode o dito atacar-me à vontade que a asneira, ou não, já está feita.
E lá estive na Cidade Universitária, calhou-me a secção de voto na Faculdade de Direito. Senti-me em festa. O que é a gente sair da rotina. Nesta minha vida, quase toda a votar, fi-lo apenas em três sítios. Uma monotonia tão grande que, aparte a primeira vez e o ano passado (em que me senti medievalmente empestada ou leprosa tal a enérgica -para ser simpática- patrulha higiénica a que fui, eu e todos, submetida-mantém a distância, agora não entra, já pode entrar, chegue-se para trás, lava as mãos, não toca em nada, ajuste a máscara, lava as mãos …), nunca me deixou recordações. Nem olhava à minha volta, punha a cruz (quando punha) e vinha-me embora. 
Desta vez, porque o lugar era outro e novo, porque o dia estava frio e lindo, o céu era o azul de Lisboa e a relva era verde, senti-me bem e reparei no que me rodeava. Todos conhecem a Faculdade de Direito de Lisboa, o hall de entrada do nosso presidente como ele já fez questão de mostrar ao país. É um edifício do Estado Novo (com um acrescento contemporâneo por detrás dele de valor arquitectónico assinalável que dá pena estar escondido) que, como todos as daquela época está construído de forma a a luz entrar magnificamente por ele dentro. Naquela manhã, então, estendia-se um tal esplendor de claridade por aqueles corredores largos afora que nem se dava conta dos quilómetros que se tinha que percorrer para alcançar, enfim, a mesa de voto pretendida. Lá, quase chegada, impunha-se a obrigatória e demorada fila. Não que houvesse qualquer obstáculo humano pelo caminho, a controleira fúria sanitária já está out e sabemos como este povo detesta estar fora de moda, acontece porém, como vi depois, que no voto antecipado há a acrescentar ao preenchimento do boletim de voto o metê-lo dentro do envelope branco, o qual segue para dentro de outro azul, que, por sua vez, se entrega na mesa onde  lhe é colocado no rosto a nossa identificação e só então toda esta gorda papelada se introduz directamente na urna, que permanece aberta, pois não cabe na ranhura. E, claro, isto leva o seu tempo, o pessoal, os votantes e o da mesa, já tem a sua idade, o boletim de voto tem vinte (vinte!) siglas apertadinhas, é necessário pôr os óculos, procurar o que se quer e esperar que se tenha escolhido o quadradinho certo. Se houve engano, antes a Covid, caneco! 
Bom, eu falo nos votantes, mas está errado, foi as votantes, aqui seria um sitio onde a gente da ideologia de género diria que só havia votantas. Mercê da seriação alfabética a minha secção, a anterior e a seguinte era formada por Marias. E assim sendo, dada a ostracização a que este belo nome foi lançado durante décadas, depois do seu largo domínio, e por as suas novas detentoras ainda não terem chegado à maioridade, os senhores calcularão a média de idade das Marias em presença. Mas a verdade é que, havendo embora muitas amparadas por familiares, outras com bengalas e duas em cadeiras de rodas, em geral estávamos bem. Capazes mesmo de andar num virote de fila para fila por culpa do excell. Eu por acaso acertei logo à primeira na minha secção de voto por, nas últimas eleições, já ter passado pelo meu único vexame em votações. Depois de uma vida a pensar que sabia o abecedário, de fazer parte de listas, de pautas de exames, de concursos, do diabo a sete, sei lá!, e portanto de estar convencida que o meu nome era anterior, alfabeticamente, ao do das Maria do Rosário não é que sou mandada embora, já de cartão de cidadão na mão pronto a entregar, de uma mesa de voto por o meu lugar não ser ali? Pois não era não senhora, a última pessoa daquela secção era a Maria do Rosário …. conforme estava escrito lá fora, não tinha eu lido? Pois tinha e por isso ali estava, o F era antes do R, não era? Mas qual R, o nome a seguir ao Maria era o D, não estava eu a ver? Mas qual D? o do? mas isso era uma preposição, não era um nome, tentei eu ainda, agarrando-me aos meus resquícios de gramática. Aí o senhor, benza-o Deus, não teimou, apenas arrumou, informou-me que o computador era assim que ordenava as pessoas. E eu, sem argumentos face a tal pesadíssimo facto, fui-me para onde pertencia. E aprendi. Desta vez já eu sabia que estava atrás de todas as M. do… ,até à Maria do Zorro, se a houvesse. Mas nem todas as minhas congéneres estavam sabedoras desta alteração civilizacional e daí andarem indignadíssimas, obrigadas a passar do início de uma fila para o fim de outra, num corrupio pela Faculdade de Direito. Diga-se que o sítio até nem era mal-azado para resolver o caso, podia-se mesmo ir ali à frente, a Letras, pedir ajuda técnica, não fosse ser domingo.
Outra coisa que reparei, ali nas filas do corredor e depois cá fora na Alameda da Universidade, foi que o povo não perfilhou esta modernice de antecipações. Sensato como é, o povo desconfia. Num país onde nada se faz sem atrasos nem delações, não parece lá muito sério nem legal, muito menos português, fazer-se uma coisa, ainda por cima antecipando-a, com o pretexto de se facilitar a vida às pessoas. Esta razão, então, o povo achou que é um atentado à nacionalidade, mesmo à identidade portuguesa. Não se manifesta porque, lá está, é sereno, e porque, claro, não acreditou. A razão para as antecipações ainda está para se saber, mas o bom povo, de pé atrás, não alinhou. Como é que eu sei que o povo estava ausente? Vendo e ouvindo, ora essa. A populaça é transparente e não se esconde, onde está mostra dignamente a sua presença. E pelo menos aqui na Cidade Universitária não estava, isso vos garanto eu, mesmo que à primeira vista o parecesse. Dou um exemplo. No corredor, enquanto esperava vi uma senhora distintíssima muito alta e muito velha, de belos cabelos louros e capa de caxemira creme com gola de raposa, que dir-se-ia estar acompanhada, não propriamente pela empregada,  mas pela mulher que lá vai a casa fazer umas horas de limpeza por semana. Na conversa entre as duas, queixava-se esta última do frio enquanto tentava infrutiferamente juntar as duas bandas do esgaçado anoraque acolchoado sobre o peito, usando roupa que, com boa vontade, lhe terá servido três números abaixo há muito, muito tempo, e uns sapatos que o passar dos anos fizera confundir com os pés mostrando todas as protuberâncias destes. Mas nada mais errado do que confundir esta personagem com o pessoal doméstico da senhora da gola de pele, aposto com quem quiser que se trata de alguém que veio há cinquenta anos de Trás-os-Montes para Lisboa estudar Química e é agora professora emérita da Faculdade de Ciências. Ninguém como esta gente para mostrar que o hábito não faz o monge. Digo-vos eu que tenho experiência. Há anos deixei um colega sozinho a fazer as despesas de conversa com uma conhecidíssima sumidade ao tempo directora de uma Faculdade, porque não consegui parar de contar os buracos que as traças tinham feito na eslavaçada (aqui no sentido tomarense de ter sido lavada cem vezes mais do que a garantia permitia) e outrora branca T-shirt que a doutora trazia vestida.
Em suma, e concluindo, por toda a Cidade Universitária, por uma vez, a burguesia imperou. 
Passeou pelo relvado com carrinhos de bébé e com os avós, jogou à bola com a prole, sentou-se no chão, bebeu água da garrafa e comeu um bolo, tal qual os sindicalistas no Primeiro de Maio. Como é igual esta humanidade! Também casais do mesmo sexo, sozinhos ou trazendo à trela pequenos bull-dogs, tomavam sol deitados na relva (sobre isto vão-me desculpar mas tenho que fazer um parêntesis e desabafar, digam o que disserem, mesmo quem tem preconceitos guarda-os para si, já ninguém hostiliza e a maioria aceita, por isso é mesmo necessário os meninos fazerem tanta questão em mostrar quem são, pondo os pés nus dentro das sapatilhas, debaixo das calças curtíssimas a ponto de ficarem com os tornozelos tolhidos e roxos de frio? Pela vossa saúde cresçam que já têm idade para ter juízo, percebam que o resto do mundo quer lá saber com quem se deitam mas que fica arrepiado só de ver os vossos pés gelados e calcem lá umas meias quentinhas!). Até aquela burguesia que a gente não vê todos os dias, que se fecha em casa, ou anda sei lá, pelo estrangeiro, pelas quintas ou assim, apareceu. Depois, aquela que pasta pelo Corte Inglês, pelo CCB e Gulbenkian era aos montes. Veio de carro como não podia deixar de ser, adoram andar de carro pela cidade ao domingo quando “não anda ninguém”, engarrafaram toda a Alameda e viram-se gregos para arranjar lugar, deixaram a avó entrevada à porta da Faculdade de Psicologia com os miúdos que andaram para deixar cair a senhora, foram pôr o carro no Campo Grande e andaram mais a pé do que se tivessem vindo directamente das Avenidas Novas onde moram. Peripécias que fizeram o casal discutir o que, espero eu, não os tenha perturbado a ponto de confundir a Iniciativa Liberal com o Livre ou vice-versa. A propósito, nada do que eu disse indicia o sentido de voto. Que esta gente terá o mesmo berço (mais geração ou menos geração a diferenciá-los) é inegável, que está ligada às mais variadas fichas ideológicas também. Há os conservadores puros, os liberais puros, os assim-assim, os socialistas, a “esquerdalhada” que costuma ser filha de conservadores e pai de jovens conservadores, as tias fúteis, as tias caridosas e empenhadas socialmente, os católicos, os intelectuais, as intelectuais, que costumavam votar só esquerda, mas parece que agora já não é bem assim, etc, etc. Toda uma panóplia de gente que constitui uma fatia da sociedade portuguesa que, coitada, na generalidade, não faz mal a ninguém, mas que é a mais gozada e maltratada por todos, incluindo pelos seus próprios membros, como é o caso, por ser dela que emana todo o mal que nos atravessa. Mas, como o hipotético bem parece que também não tem  outro lugar de onde venha, que o Senhor inspire os escolhidos e nos guarde a todos nós. (MFM)

 









A sala do voto com o respectivo quadro
(todas têm um) alusivo aos fazedores
ou executores da Lei.


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