Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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16 de fevereiro de 2021

Memórias- A Casa (cont)

 

Aquela casa solitária, no meio de olivais e com difíceis acessos, nunca estava sozinha. Havia sempre os empregados, quem vinha buscar e trazer produtos, fazer negócios com o avô, e as visitas.

As visitas, quer fossem as de média ou curta duração, como primas e amigas da avó e a Augusta que vinham para ficar pelo menos uma semana, quer as que vinham por um dia ou até por momentos como a tia Maria, eram habituais.

A tia Maria chegava a vir várias vezes por dia, muito diligente e prestável, lá vinha de sua casa, atravessava a ponte e a horta trazendo sempre alguma coisa ou disposta a ajudar em algo. A doença cardíaca da avó era o pretexto, embora a ajuda fosse recebida pela beneficiária não sem alguma impaciência. Para a tia a ajuda não se oferecia, impunha-se. Mas gostava de mim, era meiga e atenciosa, muito atenta ao meu bem-estar. Só uma vez nos zangámos. Sabendo, num domingo qualquer, que, por uma alteração inesperada eu, para não ficar sem missa, teria que ir com o avô a pé a Cem Soldos, ela achou mal, não concordou e impôs-se “a menina não pode fazer esse caminho todo a pé, não está habituada”, enfrentou o avô, aparelhou a sua mula à carroça e lá fomos.


O avô amuou e foi a pé. Íamos as duas sentadas na tábua da carroça devidamente tapada com uma manta quando a tia reparou no tamanho da minha saia e não gostou. Por duas vezes ma puxou para baixo. Pretendia tapar-me as pernas, processo impossível, o vestido era curtíssimo como todos os daquele tempo, e mais curto ficava por eu ir sentada. Farta da insistência, não arranjei melhor para dizer do que a expressão um tudo vulgarucha (teria a avó razão ao proibir-me certas companhias?!) então em uso na minha escola – Mas o que é que tem? Isto não é nada do outro mundo! Ela olhou-me, surpreendida com o despropósito nada habitual em mim e disse- Pois não, não é do outro mundo! E aí é que reside o mal! Eu esbugalhei os olhos à resposta a tentar perceber, olhando para a sua cara acusadora. Quando compreendi, morri de vergonha das minhas escanzeladas e brancas pernas e só desejei ter ali um longo hábito, como os usados pelas santas dos altares, para tapar aquelas pecadoras.

Aguarela de Roque Gameiro

Uma constante na frequência diária de gente lá em casa, eram os jornaleiros, aqueles que chegavam de manhã, habituais nas tarefas de todos os dias que trabalhavam juntamente com o avô, iam com ele para as fazendas ou ficavam por ali, entre os quais se incluíam mulheres que, sendo preciso, também ajudavam em tarefas domésticas. Faziam limpeza, amassavam o pão e lavavam a roupa.  Lavavam-na no tanque ou na ribeira em certas épocas. Uma destas era uma prima em segundo grau do avô, filha de um primo direito. Vinha sempre com uma filha adolescente para a ajudar. Era uma pessoa que caía ou batia frequentemente em coisas, das escadas ou no que fosse, pois a cara andava sempre esmurrada, às vezes mesmo ferida. Eu gostava muito de estar com elas, de encher de sabão os lenços, ou outras pequenas peças de roupa,  previamente molhados e esticados, esfregá-los com determinação na pedra e, depois, enxaguar na água limpa, a avó deixava, elas eram educadas, falavam bem, não diziam palavrões. Diferente era quando a lavagem tinha lugar na ribeira, ao fundo da horta, nas brancas pedras seculares. Aí chegavam a juntar-se muitas mulheres, provenientes de várias casas da família e de quem pedisse para ir ali lavar, o sitio era propício, a água limpa, e o espaço contíguo de erva baixa indicado para pôr a roupa a corar. Então a conversa era outra. Elas falavam livremente entre si e pouco se importavam com uma miúda que andava por ali, a passear de pés dentro de água, a jusante das lavagens, para não a sujar. Contavam das suas alegrias e tristezas, lamentavam as alheias como ainda pior que as suas. Foi destas conversas que eu percebi que a prima não devia a sua cara esmurraçada a quedas nem a encontrões, ela, como outras cujos episódios de vida eram ali contados, era vítima de uma violência que eu não imaginava existir.

Madonna, Munck

Dentro do meu assombro com esta novidade brutal juntava-se o estilhaçar da imagem que eu tinha de maridos e pais, dos que eu conhecia realmente e da dos livros, e a profunda pena por aquelas mulheres e crianças espancadas pelo poder caprichoso de quem tinha força, o que me magoava e não me deixou sossegar por muito tempo. Tanto mais que não havia ninguém para me acalmar, como noutros casos, não era suposto eu conhecer nada disto, eu sabia que "não eram coisas para a minha idade", não havia, portanto, razão para conversa. Apenas na escola, onde me fui apercebendo da banalidade do fenómeno. Os pais assíduos das tabernas, bêbados ao entrar em casa noite fora pondo toda a família em sobressalto, espancando a mãe e os filhos que intervinham, por vezes a fuga para casa de vizinhos e parentes, eram a triste rotina de muitos dos da minha idade.
Mas até esta infeliz matéria, servia de tema à avó para uma das suas mise-en-scène habituais como contarei a seguir. Embora não com muita frequência, apareciam por vezes ao portão, os “pobres de pedir”. Pediam por amor de Deus algo para comer e, fugindo ao lema da família do marido, em que tudo tinha que ser merecido, senão de outra forma, através do trabalho, a avó dava sempre, sem exigir nada em troca. Dava sempre, pelo menos, uma mão-cheia de azeitonas ou de passas, passas de figo que havia sempre de sobra.

A Caravana Cigana, Van Gogh
Uma “pobre” que aparecia uma vez por ano era uma cigana. Fazia parte de uma caravana, composta por várias carroças puxadas por tristes e famélicos cavalos ou mulas, que atracava anualmente em Porto da Lage e por ali ficava uns dias.

Do lado de fora do portão, agarrando-se às grades chamava ela pela avó. Oh minha amiga, minha amiga! A avó aproximava-se e lá ficavam, a avó no pátio, a outra na estrada, separadas pelo portão fechado, falando longamente por entre as grades. Nestas conversas contavam coisas das vidas e famílias respectivas das quais nunca se saberá qual a mais fantasiosa. A avó inventava coisas pois "não convinha que ela soubesse da nossa vida” sem quaisquer remorsos porque, segundo ela, a outra fazia precisamente a mesma coisa. Mantinham assim uma amizade de longos anos, na qual só este sentimento era verdadeiro, tudo o resto eram flores (expressão da avó quando se queria referir ao supérfluo) baseada numa hora de representação anual ao portão de uma casa em nenhures, em que ambas eram simultâneamente as actrizes e as espectadoras! Sessão acabada, antes de se despedirem, a avó ia buscar uma garrafa de azeite e dava-lho. O azeite não se dava a não ser para fazer um agrado a quem se estimava ou se devia favores. De resto, destinava-se, por exemplo, para a candeia da Senhora da Piedade (costume tomarense) mas esse era do velho, dos anos transactos. Este era azeite do bom, do ano, que a cigana escondia debaixo das saias, enquanto agradecia muito, a recomendava muito a Deus para que lhe desse saúde e paciência, lembrando-lhe que Ele um dia havia de a recompensar. E ia-se. Se, por acaso lobrigava o avô, longe ou perto, imprecava-o sempre – O diabo te arrenegue homem maldito. Que vás parar às profundas do inferno. Homem maldito! repetia bem alto, levantando os braços com os punhos fechados unidos, enquanto a vista o alcançasse. O avô era surdo, quando se lhe gritava era pior, e neste caso, mesmo que ouvisse levaria tudo em conta das excentricidades de uma cigana, e não ligaria. Mas a coisa tinha sentido e era séria. No papel que lhe coubera na farsa arranjada na sua imaginação, a avó era uma vítima espancada constantemente pelo marido, o qual seria capaz de a matar se soubesse que tinha tirado um litro de azeite da talha. (MFM)