Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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1 de maio de 2013

Recordações da Nossa Aldeia

                                                       (continuação)

Os Faustino ou A Taberna Assombrada


Há ainda em Porto da Lage a velha habitação de um dos primeiros habitantes que se chamava João Faustino. Não sei de onde veio, era casado com uma senhora filha de um casal Margarida e Narciso. A tia Margarida faleceu em 1951, constava no seu registo que tinha nascido em 1850, contava ela que, com dez anos andara a trabalhar no transporte de cestos de pedra britada para as obras da linha do Norte.

Na casa do João Faustino diz-se que havia, em tempos, uma estalagem com muda de cavalos para puxar as diligências. Por baixo dessa casa passa uma vala que vinha do açude e ia alimentar a moagem que havia à beira da ribeira propriedade de Manuel Mendes Godinho. Essa vala não tem água porque foi entupida para unir a propriedade onde ela passava. A parte que passa por baixa das habitações serve de esgotos desde há muitas décadas, presentemente na época seca as consequências não são nada agradáveis. No subsolo viverão exércitos de ratos e outros animais desagradáveis. Ora na casa do sr. Faustino ainda funcionou uma taberna durante décadas até aos finais de setenta. Por volta de 1930 lá habitava a velha proprietária com uma filha solteira e a professora da terra, que tinha sido casada com o filho dos donos da casa, entretanto falecido; no rés-do-chão morava um barbeiro vindo do Outeiro e sua mulher com dois filhos. Quando o barbeiro morreu, o genro da proprietária (a filha entretanto tinha casado) tomou conta da taberna e fez tudo para que a viúva daquele deixasse a casa. Não conseguiu. Talvez em 1944 começou a correr a fama que a casa estava assombrada. Muita gente ia à taberna para ouvir o que a tal alma do outro mundo dizia. Isto durou mais de um ano. Como a senhora viúva do barbeiro nunca saiu, a alma do outro mundo foi-se embora. Depois, mais tarde, dizia-se que era alguém que se metia na tal vala e, com voz assustadora respondia às perguntas que alguém quisesse fazer. A senhora só saiu em 1959 ou 1960 quando resolveu ir viver para junto da filha em Luanda. 

Manuel Mendes Godinho Júnior


Nos primeiros anos do século vinte instalou-se aqui o filho do grande industrial Mendes Godinho, casado com uma senhora natural de Rio de Couros, concelho de Ourém. Tinha moagem movida a água.
Este senhor Godinho era um elegante da época, deslocava-se a cavalo, mandou plantar um belo jardim com uma cascata, era um luxo no pobre meio aldeão. Também tinha um papagaio; diziam que o animalzinho aprendeu a chamar o dono pela alcunha, coisa que não agradava ao sr. Godinho. Um dia o dono não estava bem-disposto e zangou-se com o papagaio. O pobre do animal conseguiu fugir e voou ares fora. Foi poisar na povoação mais perto, os Vales. Alguém conseguiu apanhá-lo e prendeu-o debaixo de um cesto. O sr. Godinho já andava com saudades e remorsos de ter tratado mal o bichinho que lhe tinha custado umas notas, quando alguém lhe participou que o papagaio estava em casa de alguém algures nos Vales. O bom do sr. Godinho lá se dirigiu mas quando o papagaio ouviu a voz do dono, respondeu lá debaixo do cesto: “Oh Piroca”. Esta alcunha ficou vitalícia e não sei se se estendeu aos seus descendentes.
A esposa deste sr. Godinho tinha um irmão, o Julinho. Um homem que ficou sempre criança e que a irmã acolheu cuidando sempre dele.
Nos anos vinte havia na aldeia três ou quatro estudantes em Coimbra: Henrique Mota, Mendes Godinho filho (sobrinho do Julinho), Carlos Fagulho de Paialvo e mais um colega de Henrique Mota.
Ora como o Julinho também queria ter namorada como os outros rapazes da época, o grupo de académicos organizou uma malandrice. Prepararam o Julinho para receber uma noiva que havia de chegar num comboio que vinha de Coimbra.
No dia marcado lá foi o Julinho esperar a noiva ao comboio. A “noiva” era um dos estudantes vestido de mulher elegante – chapéu, raposa, luvas e saltos-altos. O Julinho recebeu-a muito bem e acompanhou-a outra vez ao comboio quando ela lhe disse que tinha de regressar a Coimbra, mas com a promessa de voltar para o levar com ela.
A dita noiva esperou pelo próximo comboio entrou do lado da gare e saiu do lado oposto, tirou as vestes femininas e apareceu com as suas roupas masculinas.
Coitadinho do Julinho, viveu até ao fim dos seus dias à espera da “Dona Chica”, sua noiva, que havia de vir no rápido para o levar com ela.
Lembro-me muito bem, nos anos quarenta, aos domingos, lá ia o Julinho mais a irmã D. Maria do Carmo a caminho de Cem Soldos. Várias pessoas frequentavam os serviços religiosos, andávamos quase três quilómetros a pé porque pouca gente tinha transportes públicos ou próprios. A D. Maria do Carmo levava as flores para o jazigo de família e o Julinho transportava o regador para encher de água em casa de um morador de Cem Soldos. Depois da celebração da missa lá iam os dois ao cemitério colocar as flores. Foi este o ritual durante alguns anos.
A D. Maria do Carmo não gostava muito de gastar dinheiro na alimentação, o marido, o tal sr. Godinho, com a entrada do Estado Novo em 1933, abandonou tudo e foi para Angola deixando o património muito em baixo. Ora a senhora via-se numa situação económica difícil. Dizia-se que com sacrifícios e orientação conseguiu recuperar. Durante os anos que duraram os sacrifícios a senhora cozia a hortaliça, preparava o prato para a refeição do Julinho, supostamente bacalhau, e dizia-lhe que o bacalhau estava debaixo dos grelos


    Também para aqui veio um casal natural de Pousos e Pé de Cão, perto da Casa dos Vargos, talvez aí por volta de 1926, que teve a ideia brilhante de montar uma indústria de panificação. Alugaram casa para morar ao fundo da povoação. Como quem vai para Tomar, à curva do Raúl, havia e ainda há uma velha casa onde construíram um forno  simples onde coziam pão para venda. Mais tarde meia dúzia de anos, compraram terreno no meio da povoação e construíram uma boa habitação e o forno e local de venda. Habitação no 1.º andar e a padaria no rés-do –chão. Era um espaço com dois edifícios de 1.º andar e um pátio a meio. No 2.º edifício eram estábulos e armazém de lenha. Muito brinquei neste pátio com a Maria Augusta filha do casal Jorge e Júlia Simões. Hoje a padaria já mudou de donos e foi funcionar para um espaço maior no Paço da Comenda.                                                                  (continua)