Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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29 de janeiro de 2015

A Casa





Manhã de domingo, 31 de Maio de 1920. Aprontam-se em Porto da Lage os arranjos para os casamentos dos irmãos Maria e João Mota. Família e convidados apressam-se a entrar nos carroções e carroças disponíveis, os manos noivos na carruagem dos futuros esposos, o primo Sousa Rosa, sofisticado, parte primeiro no veloz automóvel, com a esposa e meninos, atrás, o restante cortejo. Vão direitos a Cem Soldos. Aqui, na capela, Maria recebe como marido o primo, Augusto. Após a cerimónia, não há lugar a demoras nas felicitações e cumprimentos que ficarão para depois, agora é tempo de rumar a Tomar, que João tem compromisso a cumprir na Igreja de Santa Maria do Olival. Recompõe-se o cortejo, o novo casal ocupa agora a carruagem de honra, o ainda noivo encaixa-se no lugar anterior do já cunhado e todos se dispõem a contornar as curvas até Tomar.
À entrada da cidade, ao passar pela casa da noiva de João, a juventude do cortejo não resiste a esboçar algum burburinho, logo aquietado pela gente séria da família, e o percurso segue pela Rua Direita, desce a Corredoura, atravessa a ponte, percorre a habitualmente agitada Rua Larga pelo seu laborioso comércio e oficinas, hoje silenciada pelo Dia Santo, passa por baixo do Arco de Santa Iria e, através de azinhagas recortadas por entre os olivais chega ao vetusto templo quase escondido, lá em baixo, entre as árvores que lhe dão o nome. Os passageiros saem, os condutores dos carros aquietam os animais nas sombras possíveis, que o sol já vai no meio-dia, e todos transpõem o velho pórtico, descem as escadas e, ao som dos próprios passos sobre as desgastadas lajes, aproximam-se do altar-mor onde, pouco depois, se lhes reúne a noiva, acompanhada pela família, e se realiza o matrimónio de João.
Segue-se a boda, em Porto da Lage na casa de João. A casa em que passará a viver, desde esse dia, com a sua mulher Maria José.
Já é fim do dia. Os convidados, aos poucos, vão abandonando a festa. Os pais e a irmã de Maria José anunciam que se vão embora. Começam a despedir-se de quem fica. Maria José, habituada à companhia de sempre, também pega no xaile e faz menção de se despedir de quem está perto. O jovem marido interpela-a de olhar perplexo:
- Então, não fica cá?
O pai dá uma gargalhada, salva a situação:
-Onde ias tu, rapariga? O teu lugar agora é aqui!
Esta é uma das anedotas do casamento dos meus avós, há mais. Que ela contava com a capacidade de se rir de si própria que só ela tinha, mas em que a cara (de tolo, de tótó, imaginava-mo-la nós, os netos) do meu avô também assumia grande relevância. Ela, afinal, não se ria só de si.
Pois João Pereira da Mota e Maria José eram meus avós, e a casa de que falo, pelo menos o local, os alicerces e as paredes-mestras, é aquela que a foto mostra.
Era a casa que Augusto Pereira da Mota, seu pai, construiu quando veio para Porto da Lage, onde o meu avô nasceu em 1892 e os irmãos mais novos também. João herdou a casa depois da morte do pai ficando aí a morar com a mãe e os irmãos solteiros. Depois do casamento, a mãe passou a viver com o filho mais novo na casa pequenina que ainda existe à direita do jardim.
Em 1935, João cede a casa, por troca, ao irmão Henrique que a altera dando-lhe o aspecto que hoje tem.
Em 2015 a casa deixa de pertencer aos Mota.

É mais que provável que o novo proprietário, que não sei quem é, não conheça este blog nem leia este texto. Mas, de qualquer maneira, não deixo de lho dedicar.

Porque acredito que o que tem história tem alma. Não é necessário que “a história” esteja na nossa memória vivida. Pouco me liga directamente aquela casa, para além dos factos mais ou menos emocionais, como o de lá ter nascido o meu avô, ligam-me as memórias que me transmitiram, como esta, a da pobre miúda de vinte anos que não sabia bem o que estava a fazer, ali, dentro daquelas quatro paredes, no dia da sua própria boda de casamento, há quase cem anos. E outras, tão, menos e mesmo nada cómicas, até dramáticas, que me foram contadas. E muitas, muitas mais, imensas, que aconteceram em quase 125 anos e que eu desconheço. Mas que as paredes conhecem!
Era isto que eu queria lembrar ao novo proprietário, aquelas paredes sabem muita coisa, coisas miúdas, do quotidiano, da vida íntima das gentes, alegrias e angústias, zangas e remissões, nascimentos e mortes.Tudo aquilo que, no fim de contas, compõe a história do Homem. 
Olhe, então, por aquelas paredes. Preserve-as, estime-as. Estou certa que elas irão gostar de si.
Fico-lhe muito agradecida por isso. Felicidades na sua nova casa.(MFM)