Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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27 de julho de 2012

A Moleirinha



Pela estrada plana, toc, toc, toc,                               
Guia o jumentinho uma velhinha errante.                   
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc,
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol


               Vai sem cabeçada, em liberdade franca
Jerico ruço duma linda cor;
               Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
             Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca
                Com o galho verde duma giesta em flor

                                                                                             

Livro de Leitura da 4.ª Classe
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!... 

....
Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
P’ra vestir os netos, p’ra acender o lume...

Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, p’ra a fazer cristã!

...

Toc, toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d’outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toc, toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d’astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d’oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!


Guerra Junqueiro (1850, 1923)