Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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18 de março de 2021

O 15 de Março e Eu

 




Eu estava lá. E lembro-me. Da agitação, da pressa, da correria para embalar as coisas, do medo na cara dos adultos. Do meter dentro do carro, da viagem rápida, do encontro na “pousada” não só com a gente habitual que eu conhecia, a dos domingos na esplanada do clube, a do salão de baile, a que ia ao cinema, mas com muita mais, uma multidão como eu nunca tinha visto, que se apertava, que parecia não caber nos sítios, que nos deixava a nós crianças, submersas, lá em baixo, no meio das pernas altas deles, sem ver nada, sem nos ligarem nenhuma, mas ao mesmo tempo sempre a gritar por nós, sempre histéricos à nossa procura, a ralhar-nos para não nos afastarmos, e agarrarem-nos sôfregos depois de deixarem de nos ver durante dois minutos. Tudo tão diferente da liberdade habitual! Depois, à noite, o grande rebuliço da distribuição para dormir. Um corredor cheio de mulheres e crianças e alguém a enfiar uns e outros para dentro de quartos. Eu e uns tantos miúdos da minha idade ficámos num quarto cheio de colchões no chão, acompanhados por umas tantas mães, não sei se a minha estaria entre elas, talvez não, não me lembro do meu irmão nestas andanças e o mais provável é que ela ficasse com ele, sempre mais mariquinhas e agarrado a ela, apesar de mais velho. Coube-me como companheiro de colchão o Fernandinho, a quem devo a eterna recordação destes momentos históricos, não fosse o martírio da noite que partilhámos e acho que tudo se me teria varrido da mente. Tínhamos os mesmos quatro anos, mas, ao contrário de mim, o Fernandinho era baixinho e roliço, um cilindrozinho de carne que toda a noite rebolou atirando-me contra a parede. Seria porque o colchão, ou o soalho, estavam desnivelados ou porque a natureza da forma do Fernandinho a isso o obrigava, o certo é que eu acordei inúmeras vezes com um peso em cima de mim, peso a quem, eu, por achar não ser a ocasião propícia para recorrer a adultos, pontapeava e dava socos para afastar. Mas, tanto ele reincidiu e tanto eu retorqui que acabei por o fazer chorar. Logo uma mãe, a dele ou outra, o veio acalmar e o fez voltar a adormecer. E eu, cheia de desprezo, afinal ele não passava de um bébé gordo e chorão, continuei a defender-me ainda com mais convicção.
Com o tempo, embora não se falasse nisso, soubemos os motivos daquela nossa aventura antiga, lá longe, muitos quilómetros para norte, tinham acontecido coisas horríveis, tinha sido assassinada gente barbaramente e os nossos pais tinham temido que fosse uma questão de tempo até ser a nossa vez e tinham-se juntado num único local para melhor se defenderem. Não fora a nossa vez, mas ficara como precaução a existência de armas lá em casa, uma delas, a que mais me impressionava e me fazia não olhar, era uma com uma baioneta na ponta, imaginar o uso de uma coisa daquelas horrorizava-me mais do que qualquer outra arma que atirasse muitas balas.
Uma história que ligou sempre a minha família materna a estes acontecimentos foi a notícia que lhes chegou a Tomar, de que nós os quatro, pai, mãe e dois filhos tínhamos sido assassinados com uma morte brutal na qual se destacava a minha, “cortada às postas”. Choraram, puseram luto, mas evitaram que, enquanto houvesse esperanças, a notícia chegasse “aos pobres velhos” a Porto da Lage. Tinham recorrido ao homem do regime, o General Oliveira, para que confirmasse o ocorrido. Morrera, de facto, uma família naquelas circunstâncias, com apelido igual ao nosso e uma filha com o meu nome, mas, ficaram a saber, não éramos nós.
Voltando ao Fernandinho, apesar daquela nossa divergência, fomos sempre bons amigos e são bem diferentes as outras recordações que guardo dele. Como aquela de uma festa de aniversário, com ele de oito ou nove anos, de calções e camisa justa à sua barriga cheinha, gravata a emoldurar a cara redondinha, tal Bolinha da banda desenhada, a oferecer-me um embrulho lindo. Continha um guarda joias prateado e encarnado, de forro de veludo da mesma cor, que ainda conservo. A prova de um tempo que, às vezes, duvido que tenha existido. (MFM)


Foi aqui que nos refugiámos


A minha família e amigos, por esse tempo, eu a última criança à direita.