Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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17 de fevereiro de 2021

Memórias - A Anita

 

A Anita era uma amiga de sempre da avó. Tinham sido vizinhas em Tomar e tinha-se aproximado e aprofundado amizade com a nossa família,  especialmente com a avó apesar de alguns anos mais nova do que esta, depois de ter perdido os pais muito jovem 

Era uma senhora alta, com porte distinto, modos sofisticados, muito alegre e simpática, sempre muito bem vestida e de cabelo arranjado, visita regular lá nos Olivais, algumas vezes acompanhada do filho.

A história da vida da Anita era surpreendente. Ela própria ma contou, já eu era crescida, mas, antes, quando vivera em Porto da Lage já eu tivera ocasião de embasbacar, não era para menos, ao saber o modo peculiar como a Anita regulava, digamos assim, a sua vida.

A Anita vivia em Lisboa* quando ficara viúva de um militar de baixa patente que a deixara com fracos recursos e um filho pequeno, um rapazinho atrasado mental de menos de dez anos de idade. Contava ela que tinha passado dias de desespero, sozinha sem família que a apoiasse, sem saber como havia de prosseguir a sua vida, pois sentia-se obrigada a trabalhar para sobreviver mas não via como o fazer, por não ter a quem deixar o filho, criança com comportamento difícil e que não aceitava estranhos.

Aqui interrompo para contar o conto de outro ponto, vivia eu em Porto da Lage e já tinha conhecido a Anita que se correspondia muito com a avó. Num dia em que se recebeu carta e, à hora de almoço, a avó a leu em voz alta ao avô e à tia Alice, eu ouvi, ao contrário do que era costume. Acho que se terão esquecido que eu estava por ali. Eram cartas pormenorizadas, as daquele tempo, depois de se perguntar pela saude e informar da própria, recomeçava-se onde se tinha terminado a anterior missiva, contando-se todas as peripécias ocorridas entretanto, ...tinha-se ido ali, ...fulano dissera, ...cicrano acontecera. Mas reparei durante a leitura na referência sistemática a um mesmo nome de que eu nunca tinha ouvido falar, quase em todos os assuntos tratados, que dissera, que aconselhara, o que me intrigou. Claro que eu não tinha direito a meter o bedelho, primeiro porque não, a gente não se metia nos assuntos dos adultos enquanto eles falavam ou tratavam do que fosse lá deles, segundo porque intuía que estava ali por engano e o que eu menos queria era que dessem por mim. Pretendia ouvir o final, mas, chegado a ele, fiquei na mesma sem saber quem seria o tal.
Mas não esqueci. Confiante no efeito surpresa e na salvaguarda da tia Alice, sempre pronta a defender-me, assim que achei oportuno perguntei- Avó, quem é o Víctor? – Qual Víctor, filha? – Ora, aquele de que a Anita falava na carta? E a tia Alice deu uma gargalhada – Descalça lá agora essa bota, Maria José! A avó acabou de lavar a loiça, sentou-se. A avó tinha uma maneira particular de estar sentada, com as costas muito direitas e as mãos cruzadas deitadas com as palmas para cima,  sobre o regaço, penso que deveria ter os braços muito compridos para conseguir aquela posição, e disse – Olha filha, tu já és crescida – o que para mim antecipava a vinda de coisa séria. E lá informou, com um suspiro, que o Víctor era o marido da Anita. E o que é que isso tinha? Casou-se outra vez, pronto! Tanta coisa para isto! -Não filha, é o mesmo marido. – O mesmo, mas não tinha morrido? – Morreu sim!

Regresso dois parágrafos atrás, estava a Anita sem saber o que fazer à sua vida de viúva sem rendimentos quando, uma noite estando a dormir, se sente abanada na cama, acorda e quem é que vê? O falecido marido, que a conforta, lhe diz que tudo vai correr bem e lhe dá um endereço de um local onde ela deverá ir pedir que lhe acolham o filho. Ela assim faz, lá chegada sabe que era uma instituição dirigida por frades que educavam crianças com problemas da natureza dos do filho. O rapaz ali ficou até ser um homem, sempre acompanhado pelo pai que o vigiava e ia dando notícias à mãe, quando acontecia estar doente ou ser menos bem tratado lá se punha ela a caminho e chegava, para surpresa dos frades, para o acarinhar e  regularizar as coisas.  
Quando os conheci era contínuo num escritório de advogados, cargo que levava muito a sério, usando sempre fato e gravata além da inseparável pasta, onde, orgulhoso, levava os preciosos documentos ao tribunal ou onde fosse.  

E muitas noites se seguiram, depois, a esta de reencontro da Anita com o marido, nada era decidido, nada era feito sem o acordo do Víctor, muitas vezes era ele a propor iniciativas que conduziriam a melhorias na família. Por conselho dele, passara ela a ser membro de uma igreja espírita qualquer de onde trazia sempre livros e algum proselitismo, a única conversa da querida Anita para que não havia ouvidos nem retorno. Ninguém por ali estava interessado em conhecer a raíz da sua crença, em questioná-la ou contrariá-la.Nunca ouvi o avô falar sobre isso, mas tenho a certeza que sustentaria que seria aquele o modo que Deus arranjara para a ajudar a vencer a prova que a vida lhe enviara. Os restantes, embora não se atrevessem a envolver o Senhor em matéria tão sensível, pensavam o mesmo. Ela era nossa amiga e aquilo, fosse o que fosse, ajudava-a. Seguia-se no assunto o lema da tia Alice "cada um era feliz à sua maneira".

Entretanto, depois de ver o  filho entregue em boas mãos, passara ela a ser costureira de dentro. Trabalhava em casa de senhoras das quais retirava o seu rendimento e também, parecia-me, aquela desenvoltura e aquele gosto em se vestir.

Depois de, em miúda, ter passado a saber deste “segredo”, que só o seria para nós pois a Anita não tinha pejo nenhum em falar dele (havia sempre muito cuidado com os encontros entre ela e a tia Maria**, apesar da Anita estar avisada, a avó não confiava e procurava que estivessem juntas o menos tempo possível), pelo contrário, aquilo era a sua vida, passei, já mais velha, a pedir à avó para ler as cartas. Sozinha dissecava aquelas descrições de conversas com o Victor, que era, como lhe hei-de chamar? um ser sensato, inteligente, que se exprimia bem.

Eu adorava conversar com a Anita, sempre que sabia que ela estava em Porto da Lage arranjava maneira de também lá ir, para além da alusão por tudo e por nada ao Victor, o que me deliciava (era da gente se esquecer que ele não estava no mundo dos vivos) e a Anita sabia tudo sobre moda, trazia revistas, conhecia intrigas sobre os artistas da televisão. Trabalhava na Lapa, em casa da marquesa de …  prima de …. que tinha muitas filhas, meninas que se davam, namoravam algumas até, com actores e cantores e lhe contavam tudo sobre aquelas vidas  divertidas, modernas, libertas, tão diferentes da minha, provinciana.

A última vez que me lembro de falar com ela, em 1975 ou 1976, estava ela empenhadíssima na construção de uma casinha em área protegida na Fonte da Telha ou Lagoa de Albufeiranão sei bem, motivo pelo que se fizera sócia de uma cooperativa. Dizia ela que tudo estava encaminhado para ser  legalizado. Não foi. Enganou-se o Víctor, ou ela não lhe deu ouvidos. Quando eu soube da noticia da demolição daquele bairro, lembrei-me dela e desejei que já cá não estivesse, pelo menos fisicamente, para ver. (MFM)


* Numa rua linda, na Madragoa, muito perto do palácio de S.Bento. Rua, onde eu, mais tarde também vivi sem saber que tinha sido a dela. Quando finalmente fiz a ligação (através do remetente de uma carta dela, já todos tinham morrido) interroguei-me sobre a forma como ela explicaria isto.

** Já aqui falei nela, católica apostólica romana com tolerância não incluída, nunca aceitaria nem a Anita nem que ela fosse recebida lá em casa.