Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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12 de fevereiro de 2021

Memórias - A Casa

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O meu desejo, bem egoísta reconheço, de ter netos*, consiste, além das outras razões igualmente egoístas que faz com que a maioria das pessoas com filhos os queira ter, consiste, dizia, em encontrar sentido para as minhas memórias. Para que as quero eu se não tenho a quem as deixar?
São um património que só pode encaminhar-se para quem o entenda. Eu sei que é assim porque foi assim que sucedeu comigo.
Os meus netos viverão num mundo novo, o tal admirável, cujos contornos não consigo imaginar.
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. 
Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.

Mas não é desse mundo que retiro as memórias que quero transmitir, é de outro, de outro tempo, quiçá de outra dimensão, que passou fortuitamente por mim em criança e cuja lembrança me assalta agora num fundo agridoce de dor e de maravilha. E, como recordações de criança que são, entendo que apenas outras crianças parecidas comigo, como terão de ser forçosamente os meus netos, as compreenderão.


Vivi uns tempos numa aldeia que pertencia ao presente daquele tempo, tempo de transição que se encaminhava para um futuro que traria progresso e melhores condições de vida; conheci uma família alargada que se amava entre si, mas que fora disso não parecia ter particulares estimas no lugar, que tinha fumos de grandeza que se sustentavam no facto de os restantes, muito pobres, os considerarem ricos; e habitei numa casa com dois avós que pertenciam, eles e a casa,  à categoria do mundo encantado.
É dessa terra, dessa famíla e dessa casa enfeitiçada, cujo sortilégio me acompanha os sonhos e desses dois velhos fascinantes, ele cismador, devoto e trabalhador, ela inteligente, fantasiosa e de humor corrosivo, que eu hei-de, um dia, falar aos meus netos. 

Crianças que, pertencentes a outro mundo, hão-de apreciar conhecer este outro, que era triste e alegre, justo e injusto, rico e pobre, como o deles, como o de todos os tempos, mas onde as pessoas iguais às de sempre, viviam de outra forma, tinham outros hábitos, usavam outros objectos e, sobretudo, tinham outros sonhos. E onde, bem no centro desse mundo, para mim, estava a casa dos avós. Começarei por ela.

Era uma casa de lavoura. Sede da agricultura praticada em menos de uma dúzia de parcelas de terra, que por ali se chamam fazendas, dispersas pela freguesia, algumas, mas a maioria próxima da casa. Nas fazendas  mantinham-se, desde que havia memória, oliveiras centenárias, vinhas e figueiras e plantavam-se cereais na época própria. Em frente à casa, atravessada a estrada de terra, havia a “horta”, perpendicular  
à ribeira lá ao fundo, e sobre esta, uma pontesinha aparentemente frágil permitia a ligação rápida da casa ao centro da povoação. Na horta medravam as árvores de fruta e os legumes de época, destinados à família, regados pela água do poço que tinha fama de ser a melhor nascente daquela várzea, talvez mesmo da região, nunca secava. Nos anos em que a secura apertava era ver os vizinhos virem abastecer-se de água ao nosso poço, o único que permitia, ainda, que os alcatruzes a transportassem fresca e transparente, das suas profundezas, puxados pela nora que a mula fazia movimentar.
Logo à entrado de casa, à direita do pátio, ficava a casa de habitação no andar superior, a adega no piso térreo, com o competente lagar de vinho, de pedra, contiguo à única janela estreita, no meio do qual estava disposta uma prensa, destinada a espremer o mosto do bagaço das uvas. No resto do espaço, sempre fresco na calma do Verão, ficavam as alfaias agrícolas, a carroça e a charrete que em tempos servira para levar a avó às compras a Tomar, e, viam-se com dificuldade lá ao fundo, no meio da escuridão, encostados às paredes barris de madeira de vários tamanhos desde os gigantescos até aos pequenitos que hoje se vêm a servir de decoração nas casas típicas. Mas tudo isso, lagar e barris, já não tinha uso no meu tempo, apenas as grandes dornas entravam ao serviço uma vez por ano para transportarem as uvas, na carroça ou num tractor emprestado, até à adega cooperativa em Tomar, durante a vindima.
As acomodações, destinadas aos animais e a diversos arrumos, sucediam-se lá para dentro, separadas em lojas, quando no piso térreo, ou sótãos, quando no de cima. Havia o sótão das batatas e das cebolas, onde estas se dispunham em réstias e as outras se espalhavam pelo chão sobre sacas de sarapilheira. O "palheiro" ficava igualmente num sótão, localizado numa grande arrecadação de passagem, de alto pé direito onde, em cima, se colocavam os fardos de palha ou erva seca e por baixo residia a pobre mula, quase às escuras, por vezes acompanhada de uma vaca ou boi quando, não sei porquê, passavam acidentalmente lá por casa

Mas havia também um sótão como todos os que conhecemos, onde se guardavam as velharias, móveis antigos, alguns bons demais para estarem a uso, argumento formidável que só poderia vir da boca da avó (não era ironia,os móveis eram de facto bons) objectos de uso pessoal, espelhos e quadros provenientes de um primo de um bisavô de Tomar, que fora criado de quarto do rei D.Luís, o qual lhe teria dado aquelas prendas – a importância que se dava aquilo era nenhuma!, uma pequena arca encoirada a que eu sempre aspirei e que os deuses, invejosos, mais tarde terão desviado para o Olimpo, e outras coisas consideradas sem préstimo de momento, tudo envolto nos competentes reposteiros tecidos pelas aranhas, mas que eu não hesitava em transpor para entrar naquele mundo maravilhoso, onde havia, entre outros tesouros uma arca cheia de revistas de moda dos anos trinta e quarenta e de livros antigos, alguns escolares, que eu adorava folhear.


Por baixo existia o celeiro, onde, dentro de grandes arcas de madeiras repousavam o milho e o feijão, que se mediam através de caixas de madeira – “os alqueires” - cada uma com seu tamanho correspondente a determinada capacidade que se media precisamente em alqueires. Já o azeite, ali também guardado em talhas de barro, media-se em almudes e, talvez por isso, as bilhas de latão com tampa, de diversos tamanhos, nas quais também se colocava o azeite, se designavam genericamente por “almudes”. Mas estas antigas unidades de medida, o alqueire e o almude, seriam só usadas por hábito e para uso doméstico, já tinham sido ultrapassados, oficialmente,  pelo litro e pelo quilograma, pois também existiam uma balança e um "litro" se a intenção fosse vender.
O pátio lá atrás, onde também havia um poço com nora e um tanque, onde a prima Anita lavava a roupa, estava rodeado de alpendres, um aberto com gamelas baixas onde se avistavam as cabeças dos porcos sempre ocupados a comer, e onde, mesmo ao lado, descansavam há décadas as enormes galeras cheias de pó, antigos carros puxados por bois que tinham servido para transporte de mercadorias entre a estação local de caminhos de ferro e Tomar. Nos alpendres fechados, situava-se, num, o forno onde, depois de amassado pela Celeste, se fazia o pão ao sábado, no outro, ao lado, era o local onde se preparavam os alimentos que requeriam mais espaço e provocavam sujidade, se matavam e depenavam as galinhas, se faziam as compotas, as caldas de tomate e pimento para todo o ano, a avó fazia queijo fresco quando havia leite de cabra ou ovelha, apertando com as duas mãos a coalhada até sair o soro e colocando-a depois em cinchos de aluminio, se retalhavam azeitonas e cortavam finas as couves incapazes para a cozinha, misturando-as com farelo para dar às galinhas. 
Quando passaram a ser servidas à mesa dos restaurantes as migas com couve como fazendo parte da “cozinha tradicional portuguesa”, não pude deixar de recordar em como era percursor e requintado o menu das galinhas de Porto da Lage. Aliás, eram mesmo bem tratadas, aquelas galinhas. Passavam o dia numa capoeira grande e arejada neste pátio e, quando se punha o sol, abria-se-lhes a porta e elas iam sozinhas, atravessando o redil das cabras e ovelhas e o palheiro da mula, até ao pátio da frente onde se situava o seu dormitório todo emparedado, que as mantinha fora do alcance dos predadores. 
Por essa hora, também os pombos estavam de regresso de um longo dia fora de casa e aguardavam que lhes fosse aberta uma guarita no mesmo local para, um a um, por uma ordem que só eles saberiam, se instalarem para dormir.
Era aquele o último, talvez único, acto que, a avó ou eu, estávamos obrigadas antes de “ir para cima”, fechar a porta do galinheiro e a guarita dos pombos. O que não queria dizer que o avô não fosse, depois, confirmar quando “fechasse tudo”.


Já há muito que o pessoal se fôra, viera das fazendas, deixara o que trouxera, colheitas, mato, erva, e o material, a enxada, a forquilha, o que fosse, se despedira “até amanhã se Deus quiser” e partiam para suas casas levando fruta se a havia ou lenha se fosse Inverno, “Vá com Deus, primo” respondia o avô. Muitos dos trabalhadores, gente muito pobre, do Paço da Comenda, eram família, povo sem sorte que ficara pelo caminho, mas não deixavam de ser parentes e assim tratados. Agora restava ao avô tratar do gado, dar-lhes comida, “tratar das camas”
 era de manhã quando tivesse ajuda, percorrer todos os cantos com a lanterna acesa assegurando-se que tudo estava como deveria e voltar a ver se os portões, os três que franqueavam o seu forte ao exterior, estavam bem fechados. Só depois subia. Ao cimo das escadas, onde havia um lavatório, lavava as mãos, apagava a lanterna e deixava-a aí. “Boa noite se Deus quiser” dizia  entrando finalmente na cozinha alumiada pelo candeeiro a petróleo.(MFM)
     
(continua)






*Isto foi escrito antes de ter netos. Hoje a última coisa para que "os quero" é para lhes transmitir memórias, mas admito que já os levei a fazer "visita guiada" ao que aqui descrevo.

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