Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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28 de maio de 2021

As Mulheres e o Seu Inefável Fado de Defrontar Grunhos

 

...  seja lá onde for!


 



                                                                               ...





...

21 de abril de 2021

Silvestre e a Fundação da sua Freguesia da Beselga



S. Silvestre, 33.º Papa.

Amorim Rosa conta-nos que no reinado de D. João III, mais precisamente no regulamento de 4 de Março de 1530, se procedeu à reforma e reorganização paroquial do Isento de Tomar sendo criadas várias paróquias, com rendimentos próprios e pároco residente, entre elas a de Santa Maria Madalena na freguesia de Marmeleiro e Cem Soldos e a de S.Miguel de Porrais que incluía aquelas que viriam a ser as freguesias de Carregueiros e  S.Silvestre da Beselga. Acrescentava aquele autor não se saber em que data se autonomizara esta última freguesia, presumindo que só o teria sido no sec. XVIII.
Desconheço se esta dúvida se mantém ainda entre os académicos ou se já se descortinou a data precisa da fundação da freguesia (que já não é, faz parte daquela invenção altamente criativa da ...União de freguesias de ...) que tinha como patrono o Santo que foi Papa e cuja celebração litúrgica ocorre em 31 de Dezembro (lembram-se das corridas de S. Silvestre nas noites de fim de ano? são por causa dele). Abro aqui um parêntesis para fazer notar que não é por S. Silvestre ter sido o mais alto representante de Cristo na Terra, de ter a provecta idade de quem nasceu em 285 D.C. e de ter subido aos altares, que é tratado com mais aquelas no local de que é padroeiro. Não senhor, parece que por ali a proximidade afectiva impera, é tudo tu cá, tu lá, oh Silvestre, nada de distâncias, muito menos "distanciamentos", que no caso dele nem seriam precisos por já não habitar este mundo da peste há uns bons anos. Naquela conformidade, todas as cerimónias, títulos e deferências foram apagados, a fazer fé na tabuleta.



Adiante, voltando à data do inicio da freguesia, tendo ou não sido já encontrada certo é que, pelo que pesquisei  nos roteiros civis e nos religiosos, neles ainda consta a versão de Amorim Rosa.
Atrevo-me, portanto, a dar o meu contributo para a resolução desta questão que, não sendo de monta nem vá melhorar a vida de ninguém, sempre mostra que este blog também se ocupa de coisas sérias.

Vejamos então. Tanto quanto a caligrafia do Vigário Frei Simão Lousado me deixa perceber, fiquei a saber que no casamento ocorrido em 1567 na Igreja da Madalena entre António Fernandes e Margarida Jorge, filha de Jorge Anes e Margarida Vaz, já defunta, é referido que estes são moradores no lugar da  Ponte da Beselga, ao lado da Igreja de S. Silvestre, Freguesia de S. Miguel, sendo o celebrante o cura de S. Miguel.

Já em  24 de Outubro de 1574, casa-se João Roiz morador no lugar da Longra Freguesia de S.Silvestre e, em 2 de Novembro,  Catarina Gonçalves, moradora na mesma Freguesia de S. Silvestre, no casal da Ponte, casa com João Fernandes, sendo celebrante o cura da Igreja de S. Silvestre António Fernandes.

Verifica-se, assim, que algures entre 1567  e 1574 as coisas mudam quanto à denominação administrativa/religiosa do território onde se situa a Igreja de S. Silvestre e o lugar da Ponte, que deixa de ser Freguesia de S. Miguel (de Porrais?) e passa a ser Freguesia de S. Silvestre. Penso que fica assim esclarecido o período temporal da fundação da ex- Freguesia de S. Silvestre da Beselga. (MFM)





10 de abril de 2021

Santa Bárbara - protectora de tempestades, raios e trovões.


                     

Santa Bárbara (1736-40), Vieira Lusitano



Na secção especializada de uma grande superfície (também especializada):
- Oh menina desculpe, não estou a encontrar produto para tirar o caruncho, pode ajudar-me, por favor.
- Siga-me - dirige-se para uma prateleira onde se perfilam muitos frascos e latas - tem aqui, vários tipos, de diferente intensidade, consoante o local de onde quer fazer a remoção, e a vários preços.
- Mas isto são anti-fungos!
- Exactamente, para remover o bolor, que é o que a senhora pretende!- tem ela, pacientemente, a bondade de me recordar.
- Mas eu queria era remover, já que é assim que se diz, o caruncho.
- Oh minha senhora, caruncho e bolor são a mesma coisa!- Esclarece-me, sem perder a calma com a minha ignorância.


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De viagem numa "página" do face-book sobre Tomar encontro alusão a uma outra, que abro. Impressionada com o rigor, disciplina à séria mesmo, a que os membros daquele "grupo" são sujeitos proponho-me, logo, fazer parte do dito. Assim é que eu gosto: só fotos e curiosidades, sobretudo antigas, sobre Tomar, nada de "política", nada de "faltas de educação", sempre respeito "pelo outro", etc. etc. e quem prevaricar vai porta fora, digo eu, porque na linguagem do "grupo" , vou citar, "é removido de imediato". Reparo agora que o verbo remover me persegue, duas vezes no mesmo dia é obra, deve usar-se e eu andava distraída. Bom, lá trato de "aderir", sendo que a minha "adesão", vai depender de confirmação posterior, acho bem, e ainda de mais, de resposta a perguntas, acho lindamente, e seguem-se as tais. Não sei dizer quantas,  não passei desta:
- Diga se é, ou foi, natural de Tomar?
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Procurei, a sério que procurei, recorri primeiro a livros, eu sou assim, do tempo do papel corro logo aos velhos hábitos, como sabem burro velho ... , não encontrei, fui à esclarecida Wikipédia, a mesma coisa. Não existe, portanto, Santo padroeiro para a questão em causa (quando já não tiveres palavras recorre ao juridiquês, alguém me ensinou), pelo só me resta Santa Bárbara - protectora de tempestades, raios e trovões.(MFM)

7 de abril de 2021

Há duzentos anos: Fim da Inquisição










As Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa (o primeiro parlamento português no sentido actual do termo, instituído na sequência da Revolução Liberal do Porto de 1820, para elaborar e aprovar uma Constituição) extinguiu, em 31 de Março de 1821, o Tribunal do Santo Ofício, comummente conhecido como Inquisição, quase 300 anos depois da sua instituição em Portugal, pela bula "Cum ad nihil magis", de 23 de maio de 1536, do Papa Paulo III.

Foi autor do projecto de Decreto de extinção o deputado Francisco Simões Margiochi de cuja intervenção realço o parágrafo em que o autor expressa o imperativo desejo que, lamentavelmente, o nosso país, em diferentes épocas, e muito do resto do nosso mundo,   mesmo hoje duzentos anos volvidos, continua a não ouvir: voltou a consentir-se na "inquisição" política e, mesmo a religiosa voltou:
“...Lembro mais a este Congresso que já que a Inquisição entrou em Portugal com o pretexto da Religião, e da fé; que jamais se consinta outro igual instituto, por mais plausível que seja o pretexto que o encubra: isto é, que se não substitua a Inquisição Religiosa por Inquisição Política.”

Para além desta extraordinária determinação, os deputados produziram outra, que não se lhe compara, que não terá passado, na altura, de uma mera decisão logística, embora polémica, mas que ainda hoje é vital para compreender trezentos anos da vida portuguesa. Quando surgiu a necessidade de determinar o que fazer ao espólio do Tribunal findo, muitos deputados foram da opinião que tudo deveria ser destruído, edificios, arquivos, processos, livros, tudo arrasado e queimado, para que nada restasse de tão sinistra memória. Mas imperou a opinião contrária, havia que preservar património e registos, precisamente para que o povo conservasse na lembrança e podesse conhecer, sempre, aquela época negra. E assim ficou consagrado, no artigo 4.º do Decreto, o fim a dar a tudo o que existisse nos Cartórios da Inquisição. Depois de deixar a Biblioteca Pública de Lisboa, transitou para a Torre do Tombo, onde ainda se encontra, a documentação de todos os Tribunais do Santo Ofício: Lisboa, Coimbra, Évora e Goa.
Dada a riquesa, organização e classificação de todo o arquivo daquele tribunal, que tinha definidos núcleos documentais muito precisos ( livros de delações, decretos de prisão, listas de autos de fé, registros de diligências, livros de correspondências, livros de presos,  etc.) este constitui, ironia da história, um legado inegualável, deixado aos vindouros pela Inquisição, sendo uma das fontes documentais imprecindiveis para o estudo do Portugal do Antigo Regime. Até aqui, no blog, devemos ao Santo Oficio e à sua capacidade de "arrumação" a disponibilidade de consulta dos processos dos seus funcionários, que nos permitiu conhecer gente, costumes e territórios que já nos estavam distantes no tempo.
Quanto aos edifícios, os célebres Palácios da Inquisição, também em 1821 as autoridades determinaram que ficariam abertos para que as populações pudessem com os seus olhos constatar as condições em que tinham sido presos e supliciados inúmeros desgraçados ao longo de três séculos. Porém, a vandalização a que foram, de imediato, sujeitos, fez com que esta pedagógica e generosa decisão fosse revogada, ficando os palácios a ser utilizados como instalações de serviços públicos. Ainda persistem nos nossos dias o de Coimbra, parcialmente, e o de Évora, enquanto o de Lisboa vítima de um incêndio em 1846, foi completamente destruído, encontrando-se hoje no mesmo lugar o Teatro D.Maria II. (MFM)

18 de março de 2021

O 15 de Março e Eu

 




Eu estava lá. E lembro-me. Da agitação, da pressa, da correria para embalar as coisas, do medo na cara dos adultos. Do meter dentro do carro, da viagem rápida, do encontro na “pousada” não só com a gente habitual que eu conhecia, a dos domingos na esplanada do clube, a do salão de baile, a que ia ao cinema, mas com muita mais, uma multidão como eu nunca tinha visto, que se apertava, que parecia não caber nos sítios, que nos deixava a nós crianças, submersas, lá em baixo, no meio das pernas altas deles, sem ver nada, sem nos ligarem nenhuma, mas ao mesmo tempo sempre a gritar por nós, sempre histéricos à nossa procura, a ralhar-nos para não nos afastarmos, e agarrarem-nos sôfregos depois de deixarem de nos ver durante dois minutos. Tudo tão diferente da liberdade habitual! Depois, à noite, o grande rebuliço da distribuição para dormir. Um corredor cheio de mulheres e crianças e alguém a enfiar uns e outros para dentro de quartos. Eu e uns tantos miúdos da minha idade ficámos num quarto cheio de colchões no chão, acompanhados por umas tantas mães, não sei se a minha estaria entre elas, talvez não, não me lembro do meu irmão nestas andanças e o mais provável é que ela ficasse com ele, sempre mais mariquinhas e agarrado a ela, apesar de mais velho. Coube-me como companheiro de colchão o Fernandinho, a quem devo a eterna recordação destes momentos históricos, não fosse o martírio da noite que partilhámos e acho que tudo se me teria varrido da mente. Tínhamos os mesmos quatro anos, mas, ao contrário de mim, o Fernandinho era baixinho e roliço, um cilindrozinho de carne que toda a noite rebolou atirando-me contra a parede. Seria porque o colchão, ou o soalho, estavam desnivelados ou porque a natureza da forma do Fernandinho a isso o obrigava, o certo é que eu acordei inúmeras vezes com um peso em cima de mim, peso a quem, eu, por achar não ser a ocasião propícia para recorrer a adultos, pontapeava e dava socos para afastar. Mas, tanto ele reincidiu e tanto eu retorqui que acabei por o fazer chorar. Logo uma mãe, a dele ou outra, o veio acalmar e o fez voltar a adormecer. E eu, cheia de desprezo, afinal ele não passava de um bébé gordo e chorão, continuei a defender-me ainda com mais convicção.
Com o tempo, embora não se falasse nisso, soubemos os motivos daquela nossa aventura antiga, lá longe, muitos quilómetros para norte, tinham acontecido coisas horríveis, tinha sido assassinada gente barbaramente e os nossos pais tinham temido que fosse uma questão de tempo até ser a nossa vez e tinham-se juntado num único local para melhor se defenderem. Não fora a nossa vez, mas ficara como precaução a existência de armas lá em casa, uma delas, a que mais me impressionava e me fazia não olhar, era uma com uma baioneta na ponta, imaginar o uso de uma coisa daquelas horrorizava-me mais do que qualquer outra arma que atirasse muitas balas.
Uma história que ligou sempre a minha família materna a estes acontecimentos foi a notícia que lhes chegou a Tomar, de que nós os quatro, pai, mãe e dois filhos tínhamos sido assassinados com uma morte brutal na qual se destacava a minha, “cortada às postas”. Choraram, puseram luto, mas evitaram que, enquanto houvesse esperanças, a notícia chegasse “aos pobres velhos” a Porto da Lage. Tinham recorrido ao homem do regime, o General Oliveira, para que confirmasse o ocorrido. Morrera, de facto, uma família naquelas circunstâncias, com apelido igual ao nosso e uma filha com o meu nome, mas, ficaram a saber, não éramos nós.
Voltando ao Fernandinho, apesar daquela nossa divergência, fomos sempre bons amigos e são bem diferentes as outras recordações que guardo dele. Como aquela de uma festa de aniversário, com ele de oito ou nove anos, de calções e camisa justa à sua barriga cheinha, gravata a emoldurar a cara redondinha, tal Bolinha da banda desenhada, a oferecer-me um embrulho lindo. Continha um guarda joias prateado e encarnado, de forro de veludo da mesma cor, que ainda conservo. A prova de um tempo que, às vezes, duvido que tenha existido. (MFM)


Foi aqui que nos refugiámos


A minha família e amigos, por esse tempo, eu a última criança à direita.


6 de março de 2021

A Quinta da Belida

 



Quando vamos de Porto da Lage para o Paço da Comenda, por aquela que agora é pomposa e oficialmente chamada de Estrada Real, deparamo-nos, imediatamente antes da pronunciada curva à esquerda, com uma pequena casa à beira da estrada, casa antiga mas com aparência muito alegre, recentemente restaurada com gosto, que exibe num canto da fachada uma lápide onde se lê “Quinta da Belida”.

Por que razão lá está a lápide não sei, como também não sei se antes dos arranjos ocorridos na velha casa, que conheci em ruínas, já lá estaria. Aquela não é uma casa de quinta nem por ali existe quinta alguma. Mas o nome não é de todo descabido se atendermos à memória do lugar. Talvez os donos tenham querido, denominando-a assim, fazer perdurar na sua vivenda um nome que foi referência durante séculos por estas bandas, ainda ecoa na memória dos locais e cuja localização se situava por ali, por onde fica aquela casinha.

A quinta da Belida, se não oficialmente mas de certeza oficiosamente existiu como entidade  até ao inicio do sec.XX, pelo que não é nenhum impossível que os mais velhos a conheçam, pelo menos de ouvir falar. Há tempos, perguntei nos Gaios a uma habitante daí, que teria no máximo setenta anos, onde ficaria a Belida, ela levou-me até à berma da estrada que vai para Porto Mendo fez-me olhar para o vale que se estendia à nossa frente e, apontando cabeços, árvores e canaviais foi-me mostrando os limites e os campos que ficavam dentro da Belida. Noutra ocasião, um conhecido meu no Paço apresentou-me três mulheres sentadas numa das mesas da Associação local, uma delas a sua, três irmãs que, segundo me disse, “eram da quinta”, isto é, descendiam dos últimos habitantes da quinta da Belida. Estes dois casos são, quanto a mim, dois exemplos de como ela perdura ainda no quotidiano de muitos.

Mas se se sabe ainda identificar mais ou menos o seu território e alguns dos descendentes dos últimos proprietários, são vagos e incertos os elementos conhecidos sobre a  história da Belida. Conto, de seguida, o que consegui descobrir.

É conhecido que a Ordem dos Templários, como recompensa por ter ajudado o nosso primeiro rei na reconquista, deste recebera extensos domínios situados em torno da «linha do Tejo», com objetivo de defender e povoar aquele território, o que não era novo, pois já antes, em 1128, D. Teresa tinha doado à Ordem o Castelo de Soure e seus termos, procurando repovoar a região e defendê-la das investidas almorávidas.
O papel desta ordem, nos finais do sec. XII e durante o século XIII, foi, mais do que militar, o de colonizador, fundando e dinamizando centros rurais e urbanos, como é o caso de Tomar e seu termo, local onde, nestes dois séculos angariou considerável riqueza patrimonial, proveniente de compras e de doações particulares, cuja concentração permitiu a constituição de um monopólio no que se refere à administração e exploração de bens imóveis, o que lhe conferiu poder e prestígio com visíveis repercussões no futuro. O estabelececimento de Comendas foi uma forma de a Ordem incentivar o povoamento e fixação de povoações (que seriam de anteriores comunidades locais de origem moçárabe ou de colonos provenientes de fora?), em 1321 só para a região de Tomar são estabelecidas as Comendas de Pias, Prado, Beselga, Paul e Tomar. Nelas eram cultivados, pelos seus foreiros, diferentes produtos como vinha, oliveira, legumes, linho, cereal, e criados cavalos, vacas, porcos e galinhas que seriam, para além de consumo próprio, escoados para venda na vila.


Quando, em 1319, a Ordem de Cristo sucede à dos Templários herda as suas propriedades e privilégios, continuando a tirar proventos das comendas anteriores e instituíndo outras. Porém, para o que nos interessa, fiquemo-nos pela da Beselga. O topónimo Beselga (cuja origem moçárabe deriva de basílica, igreja cristã), que além da designação do curso de água que ainda tem este nome e desagua no rio Nabão e do que alguns dizem ter sido uma povoação romana, surge pela primeira vez dentro da nossa nacionalidade, na carta de doação de D. Afonso Henriques do Castelo de Ceras aos Templários em 1159, quando estabelece como limite geográfico do território doado, a estrada entre Santarém e Coimbra. Sendo que esta estrada coincide com aquela que ainda existe (ou existia antes dos viadutos que substituíram as passagens de nível nos nossos dias) proveniente de Paialvo, passando por Porto da Lage e S.Silvestre, direita a Chão de Maçãs, não é de estranhar que o limite inferior da dita Comenda da Beselga fosse sensivelmente por aí, estendendo-se depois pelo Casal dos Galegos, Paço da Comenda (que seria o lugar da casa do comendador), Além da Ribeira e depois, aproximadamente, por aquela que foi a antiga freguesia da Beselga.


É na Comenda da Beselga que em 1504 Rodrigo Anes Velido (Velido virá de bellido que significará bello) e os dois filhos, João e Diogo, amanham alguns dos Casais de que já falámos aqui. Naquelas terras cultivam cevada e trigo, colhem uvas e fazem vinho, apanham as azeitonas que são obrigados a levar aos lagares dos Freires de Cristo para transformar em azeite, apesar dos do termo de Torres Novas ficarem mais perto, e criam gado. No Natal, e no Verão quando o trigo está na eira, pagam o foro ao Comendador, que varia na quantidade de alqueires de trigo, de azeite, de carradas de lenha e de número de galinhas, conforme a dimensão e a produtividade de cada Casal.


O cognome de Rodrigo fornece-nos aquele que poderá ser o primeiro indício do que virá a chamar-se o Casal da Velida ou Belida. Não conhecemos a sua descendência directa (embora existam hipóteses já formuladas) mas o mais provável é que a tenha tido, para lá dos filhos que já falámos, e que ela se tenha distribuído pelos Casais que se vão formando pelo século XVI adiante dentro da Comenda da Beselga e nas límitrofes, Paúl, Sonegado, Pussos e Póvoa.


Destes Casais, em1570 tomamos conhecimento do Casal de Catarina Jorge, belida de alcunha, viúva de Álvaro Anes, gente que mostra algum desafogo económico pois dentro dos seus bens consta também, pelo menos um escravo. Se Catarina era descendente directa de Rodrigo, se o belida lhe chegaria por parte do marido ou se se trata apenas de grande coincidência não o sabemos, fica o registo. Sabemos sim, que naquele ano casa ela a sua filha Maria Jorge com um Jorge Fernandes*, cuja descendência é conhecida.


Um neto de Catarina, proveniente desse casamento, de nome Jorge Fernandes como o pai, é indicado como vivendo, na década de noventa desse século, com sua mulher Leonor de Sousa, na comenda do Saldanha (por esta época o comendador era frei António Saldanha), ou na ribeira ou ainda no seu casal na ribeira. Por fim, em 1609, Leonor de Sousa é referida como morando no Casal da Velida. O Casal da Velida assume aqui pela primeira vez, o nome pelo qual vai ser conhecido mais alguns séculos, continuando a pertencer à mesma família.


Jorge Fernandes e Leonor de Sousa tiveram, pelo menos, cinco filhos, que seriam pequenos quando o pai morre no final do sec. XVI. Ela volta a casar com Domingos Dias também viúvo, continuando os dois a viver no dito Casal com os respectivos filhos. Mas, ou porque os restantes tivessem morrido ou porque herdariam outros bens, apenas se tem notícia posterior de dois filhos dos primeiros, Maria de Sousa casada com Inácio Escudeiro em 1619, com vários filhos nascidos no Casal da Velida entre 1621 e 1639 e cujo futuro de todos se desconhece, a menos que outra Leonor de Sousa (casada com António Alvares que vive nos Gaios a partir de 1641 e aí tem vários filhos) seja sua filha, e de Diogo de Sousa (a partir daqui o sobrenome Fernandes ou Jorge desaparece da família sendo substituído por Sousa, talvez mais prestigioso) que se apresenta como sucessor do pai ao foro do Casal da Belida ainda que prescindindo dele a favor de seu filho Diogo Alvares de Sousa.


Este último, em meados do sec. XVII, requer ao Comendador da Beselga, então o Conde de Soure, que lhe conceda o foro do Casal da Velida o qual, embora não tendo dele título algum por escrito afirma ter estado na posse dos seus antepassados, sendo a última vida a de seu avô Jorge Fernandes. Acrescenta que o sucessor directo do foro deveria ser o seu pai, Diogo de Sousa, mas que, tanto ele como a sua mãe, Margarida Vieira, fizeram um termo de desistência e renúncia a favor dele. E, por ocasião da assinatura do contrato, lá estão eles a declará-lo de viva voz, dizendo a mãe, que não assina por não saber escrever, que o faz da melhor vontade pois não tem outro filho e deste até já tem um neto, Manuel.


Disto se retira, ligando com o que atrás dissemos, que Jorge Fernandes o novo, antes dele Jorge Fernandes pai (por via de sua mulher Maria Jorge) e, ainda antes, Catarina Jorge por si ou por seu marido, teriam sido as “vidas” anteriores foreiras do agora chamado Casal de Belida, geração que porventura se poderá estender lá para trás até Rodrigo Anes Velido, por onde começámos.


No sentido de ser passada a renovação do foro solicitado, o Casal da Belida, é sujeito a um cadastro, o chamado tombo, no qual é mencionado terem sido colocados 32 marcos nos seus limites, os quais, depois de medidos, terão de perímetro 5310 varas (c.5,8Km) e que as suas terras estão prontas para semear pão (trigo) e amanhar vinhas, bem como possuem 160 pés de oliveiras “entre grandes e pequenas”, 69 pés de sobreiros e carvalhos e outras árvores de fruto nas quais se contam pereiras e figueiras.


Lá se situam também as casas de morada de Diogo de Sousa e seu filho Diogo Alvares de Sousa que, do que lemos, podemos, se soubermos, desenhar o seguinte: uma escada de pau com 9 degraus que dá acesso a uma varanda assoalhada de madeira coberta de telhado forrado de cortiça medindo 3 varas de comprimento por 2 varas de largura (cerca de 7,26 m2), por onde se entra para uma “casa assobradada com quatro águas”, que mede cinco por quatro varas (cerca de 24,2 m2) de telha forrada de madeira de pinho, junto à qual há outra “casa” com duas águas com telha forrada de cortiça e uma janela virada a poente, medindo também cinco por quatro varas. São estas casas (o que chamamos agora de divisões ou quartos) de sobrado, por se situarem  num piso superior debaixo do qual se situam as correspondentes “lojas” com as mesmas dimensões.


Para além destas casas de morada, o tombo enumera as seguintes : uma casa térrea de telha vã com um portal de pedraria tosca que mede cinco por três varas (cerca de 18,15 m2) com paredes de terra e barro, e uma porta, com uma loja de sal; uma casa térrea de uma água que serve de adega, mede quatro por quatro varas (cerca de 19,36 m2) e tem uma porta a nascente; dois palheiros cobertos de telha com paredes de terra e barro que medem cinco por três varas (cerca de 36,3 m2); uma casa ou lagar de fazer uvas com paredes de pedra e barro que mede cinco por duas varas (cerca de 12,1 m2) com porta e janela virada a nascente; um curral de ovelhas mais de meio coberto, que mede cinco por quatro varas (cerca de 24,2 m2).


Fica então Diogo Alvares de Sousa foreiro à Comenda da Beselga através do Casal da Belida, por três vidas, que se sucederão da seguinte forma: ele Diogo nomeará quem lhe sucederá ao morrer, o qual, por sua vez, fará o mesmo, não podendo, no entanto, serem nomeadas “pessoas proibidas em delito”. Morrendo a terceira vida, ficará o Casal devoluto, tendo a pessoa que nele habite, se quiser, de pedir a renovação do foro.


O foreiro terá a obrigação de lavrar e semear o casal, bem como de amanhar as vinhas, mandar plantar oliveiras e fazer as benfeitorias que puder, bem como, o mais importante, pagar o foro. Este fica estabelecido em 9,5 alqueires de trigo, 8 galinhas, um alqueire de “bollo” e 1/3 ou ¼ de todos os frutos, consoante a época. O pão (o trigo) será entregue na eira e as galinhas no Natal.


Os rendimentos da família de Diogo Alvares de Sousa, n. 1624, provenientes do cultivo deste Casal e eventualmente de outras terras, tinham-lhe permitido tornar-se bacharel em Cânones (por vezes também surge como licenciado) em Coimbra em 1650, o que o terá feito subir socialmente, embora não se tenha notícia que tenha exercido qualquer cargo relacionado com a sua formação académica. Será senhor da sua fazenda, isto é, viverá dos rendimentos da agricultura, não a trabalhando directamente como os seus antepassados tinham feito. O seu casamento com Inácia Correia, que terá durado muito pouco (quando o filho é muito pequeno já não se fala na mãe, terá morrido de parto?) será mais um degrau na sua ascensão social. Através dela, que fora familiar do Morgado da Beselga (ser-se familiar não significava ser-se parente de sangue ou afim, seria alguém que viveria em casa do morgado, sobre a sua protecção) consegue a aproximação à nobreza, descolando mais do meio onde nascera, herdando também, por via da mulher, a quinta da Mata, onde passa a viver deixando a Belida ao filho. Vive limpa e abastadamente, apresentando-se com vestuário e habitação apresentável nos parâmetros exigidos a um homem honrado, tendo criados e cavalo. Morre relativamente tarde (é vivo em 1690) já com netos do seu único filho, sem voltar a casar mas não livre de relações sentimentais, como mostra, em 1 de Outubro de 1673, uma rapariga solteira do casal do Bregil quando, ao baptizar o filho, que morre pouco depois, dá como pai o Licenciado Diogo Alvares de Sousa.


O seu filho Manuel Pereira de Sousa que casa, muito novo, em Assentiz, com Grácia Maria parente da casa de Vargos, não segue as pisadas do pai indo para Coimbra, prefere criar a sua numerosa família com quem parece viver feliz e alegremente entre as freguesias da Madalena e Assentiz, sendo padrinho de inúmeros casamentos e baptizados, ocupação em que, logo que crescem, os filhos o seguem. Deve ser um homem simples, da terra, que gosta de se dar com os seus conterrâneos e protegê-los, já que os seus meios lhe permitem. Quando morre em 1731 é, como outros parentes,  enterrado na Igreja de Sta Maria Madalena em sepultura dos seus antepassados (na cova do altar-mor).


No início do sec. XVIII deixa de ser feita alusão, nos assentos paroquiais da Madalena, à Belida como Casal passando a ser referirida como Quinta. Manuel Pereira de Sousa, ele, a mulher e os filhos, passam a ser moradores na Quinta da Billida ou na Quinta de Porto da Lage (neste caso por esta localidade já ter algum desenvolvimento e ser a mais próxima da quinta). A mudança da denominação de Casal para Quinta terá a ver com o desejo de elevação de estatuto social dos donos. A denominação de “quintas” que tem a sua origem nas casas de campo dos citadinos nobres ou, pelo menos, dos endinheirados, que as visitam e utilizam como recreio em determinadas épocas do ano, depressa é apropriada por aqueles que nelas vivem e as usam como única habitação e como fonte de rendimento, por essa designação os associar a gente com estatuto social superior.


E chegamos à terceira vida a quem foi concedido o foral da Belida, outro Manuel Pereira de Sousa, nascido em 1681, filho do anterior. Este não será um académico como o avô nem um homem de família como o pai, mas um ambicioso empreendedor que compra casas na vila de Tomar, e terrenos fora do domínio dos freires de Cristo, de forma a adquirir propriedades livres. Pretende, também, confirmar o prestígio que a sua família goza localmente com um estatuto que, não o fazendo elevar-se à nobreza, lhe viria a conferir poder e autoridade. Candidata-se a Familiar do Santo Ofício obtendo a respectiva carta em 1713, a qual atesta, como tinha de ser, a sua limpeza de sangue e a dos seus ascendentes, a inquirição a que se procede nas freguesias de Assentiz e Madalena, de onde provêm os seus antepassados, confirma sem sombras de dúvida que se tratou sempre de cristãos. Não há nele réstia de sangue judeu, mouro ou mulato. É um Cristão Velho cuja família, tanto quanto se lembram as testemunhas, nunca botou a mão no trabalho, não eram mecânicos viveram à lei da nobreza com carruagens e criados. Está conseguido o estatuto pretendido. Só mais tarde, já com 46 anos, se casa com Maria Teresa sua parente em 2º e 3º grau de consanguinidade, nascida no Alvorão, Assentiz (a noiva, uma vez que ele já é Familiar do Santo Ofício, é também objecto de inquirição em 1727, de forma a ser autorizada a com ele contrair matrimónio). Ser Familiar do Santo Ofício, para além de gozar do privilégio de ser julgado por instâncias próprias da Inquisição (o que não era de somenos num tempo em que qualquer um estava sujeito a ser denunciado por insignificâncias) passava por estar sempre ao serviço do santo ofício, controlar o cumprimento de penitências a que fossem condenados os seus conterrâneos, por vigiar e denunciar situações que estivessem sob a alçada do Tribunal da Inquisição, executar prisões e outras diligências que lhes fossem ordenadas e participar em autos de fé envergando o seu hábito. Se Manuel Pereira de Sousa usou ou não, e de que forma, estes poderes, na sua longa vida que termina sem incómodos em princípios de Dezembro de 1760, não o sabemos.


Ainda nesse mesmo mês de Dezembro, o filho do falecido, outro Manuel Pereira de Sousa, também ele Familiar do Santo Ofício, faz um requerimento ao comendador da Beselga a solicitar renovação do prazo, uma vez que o Casal da Belida se encontra vago, sem foreiro (o seu pai era a terceira vida). Tal é-lhe concedido em Junho de 1761.


Mais de cem anos após o foral anterior, a moradia dos Sousa da Belida faz a sua diferença, já não é a casa de um lavrador medieval. A sua simplicidade que assentava e tinha como fins a protecção e a funcionalidade, deu lugar ao conforto, quiçá ao luxo. Tem agora uma fachada de mais de quinze metros de onde se destaca a velha varanda em madeira de castanho forrada de cortiça, agora ladrilhada de tijolo virada para o vendaval, de onde desce uma escada de pedra lavrada para um pátio com laranjeiras e limoeiros. Da varanda entra-se para uma casa sobradada quadrada, que serve de sala, com cerca de 254 m2, de madeiramento de castanho forrada de pinho, com a largura da frontaria da casa, com uma porta e uma janela que dão para a varanda. Seguem-se quatro casas de madeiramento de castanho forradas de cortiça com aproximadamente 24,2m2 de área cada uma, com janelas em redor da casa, e duas delas com portas para a rua, uma outra casa de 6m2, mais outra que serve de cozinha com aproximadamente 10 m2. Por baixo existem lojas com a mesma dimensão do andar superior.
Cá fora deparam-se a adega, os palheiros, o lagar e o curral do gado, redondo, que mede 49 varas de perímetro.


Nas terras do Casal crescem 350 sobreiros e 209 outras árvores de que fazem parte figueiras, pereiras e ameixoeiras, para não falar das vinhas e oliveiras.
Na década de que falamos (60 de XVIII) este "prazo ou quinta" paga de décima sobre os seus prédios rústicos 3$540 réis e sobre os urbanos 765 réis. A décima foi um imposto criado em 1641 por D.João IV no sentido de prover às necessidades da defesa do reino, incidindo sobre 10% de todas as rendas [rendimentos], «assim de bens de raiz, juros e tenças, como de ordenados de ofícios (…) sem excepção alguma, nem privilégio».

Até aos anos noventa do sec. XVIII os Pereira de Sousa, Manuel e a irmã Ana Maria Teresa, entretanto casada com o Doutor Simão José de Faria Pereira, da Quinta do Carneiro, da Colegiada de Ourém, continuam a viver na Quinta da Belida até o primeiro se mudar para Vargos. Herda então aquela casa por falecimento sem descendência dos anteriores proprietários, os seus primos o Capitão Manuel Lopes Moreira e sua mulher Maria Madalena da Silva.


Será a partir desta circunstância que tem início o mito de que a Quinta da Belida pertenceria desde sempre à casa de Vargos. Como vimos, foi precisamente o contrário, foram os foreiros da Belida que, se quisermos, se apossaram de Vargos. Este último Manuel Pereira de Sousa morrendo sem filhos, terá como herdeiros a sua irmã e posteriormente os seus sobrinhos, senão residentes pelo menos sempre ligados a Vargos. Assim, na memória mais recente seria esta família a possuidora de sempre da Belida.


Nos primeiros anos do sec. XIX, com excepção de pouco mais de uma década, até aproximadamente 1820, em que é habitada por um casal que aparenta ter fumos de alta burguesia, Luís Alves de Sousa Lima e Ana Matildes Pereira, parentes dos Preto de Magalhães da Quinta do Milheiro em Ourém, na Belida vivem apenas trabalhadores. Constituem exemplo destes, José Rodrigues e Maria Joaquina Narciso que vêm de Vargos recém casados e aqui dão início a uma dinastia. Esta, que ainda hoje perdura, é depois continuada no Paço da Comenda, através também do segundo casamento de José Rodrigues com uma prima da primeira mulher, oportunamente chamada de Joaquina Maria evitando assim enganos, assente nos seus treze filhos.


Em 1834, com a nacionalização dos bens das ordens religiosas, sendo os da ordem de Cristo, como todos os outros, secularizados e incorporados na fazenda nacional, o que terá acontecido à Belida? Provavelmente os foreiros, na altura os proprietários da quinta de Vargos, tê-la-ão comprado em conta. Tudo foi vendido ao desbarato, a dívida pública era colossal, havia que, pelo menos, arranjar dinheiro para pagar os juros. Como exemplo, lembremo-nos da mais rica das herdades dos freires de Cristo, a famosa Quinta da Cardiga (tão extensa e rica que D.João III autorizou a alteração do percurso do Tejo para que este passasse a banhá-la), que foi comprada por "mil contos", enquanto em 2017, só a sua parte urbana assente em 4,2 hectares, dizem os jornais, estava à venda por dez milhões de euros.É provável que os de Vargos também tenham beneficiado do negócio da venda dos bens da Ordem, à semelhança daquele que veio a ser 1.º ministro de Portugal em 1842 e feito Conde de Tomar, que adquiriu grande parte do edificado do Convento de Cristo mais muitas das terras que o rodeavam.

Trinta anos depois, ocorre o início do último estertor da longa vida do “Casal da Velida” que volta às suas origens de casa de lavoura cultivada directamente por quem a habita. Será ele, talvez um provável descendente de quem a amanhou há 400 anos, Manuel de Sousa Rosa proveniente de Assentiz, que a arrenda, lá passa a viver com a família e a compra em 1880. Mas os tempos são outros, Manuel de Sousa Rosa enriquece, mas faltou-lhe o golpe de asa, a ambição ou a arte de ver que era tempo de mudar, como fez, por exemplo, o seu contemporâneo e compadre Manuel Mendes Godinho. Permaneceu um homem do outro tempo, e assim morreu. Tal como a Belida que em 1920 é abandonada, quando os últimos membros da família que ainda a habitavam, uma filha e um neto, a deixam. Esse neto será a lembrança viva da Belida, conhecido enquanto viveu como o António da quinta. (MFM)

* Estas asserções têm origem em assentos paroquiais que me foram dados a conhecer por  Edmundo Vieira Simões, a quem agradeço.




19 de fevereiro de 2021

Memórias* - A Lança em África


A Lança em África

 

Quando fomos fazer o exame da 4.ª classe a Tomar, à escola da Várzea Grande, a minha turma encontrava-se muito desamparada, a professora estava doente há algum tempo e não viera. Estávamos para ali sozinhas, cada uma com as suas famílias, é certo, mas sem a nossa galinha a unir-nos, a nossa professora, como a dos outros a dar-nos as instruções finais.
 Nas últimas semanas antes do exame, nós, as da 4.ª classe, íamos mesmo a casa dela ter aulas, sentávamo-nos na sala de jantar no chão, enquanto ela estava num cadeirão de braços com uma manta nas pernas (acho que esta imagem só pode ser fantasia minha- cobertor no Verão com as temperaturas daqueles sitios??). 


Penso que a culpada daquele esforço da professora e das aulas extras das minhas colegas era eu! Como além daquele exame, eu teria que fazer mais dois, para os quais eu tivera que arranjar mais uns livros de exercícios, todas elas, por solidariedade forçada, foram arrastadas para aquelas divisões de orações e problemas de capacidade dificílimos que não lhes serviriam de nada pois o seu caminho escolar acabava ali. Mas elas não se queixavam, sabiam tanto ou mais que eu, gostavam de aprender e não teriam que vir a provar nada, como eu. O que se calhar lhes tornava aquela tarefa  mais leve.

E lá estávamos todos nós, em Tomar, à espera de exame, afiambrados nos fatos novos, os rapazes de fatinho, as meninas de vestidinho a estrear.

Depois de entrarmos na sala que nos estava destinada, grande sala que partilhávamos com outras meninas provenientes de outras aldeias, e de nos sentarmos após cantarmos o hino, uma das professoras presentes, a imagem que guardo era que seriam imensas professoras, perguntou-nos se trazíamos cantigas e quem queria começar. Um grupo de outra escola arrancou logo com uma cantiga infantil. 
O meu grupo entreolhou-se, para nós aquilo era uma novidade, não estávamos prevenidas, não trazíamos nada preparado. E, entretanto, todos as outras escolas representadas na sala, iam cantando - debaixo da ponte nascem violetas ao comprido…, foi na loja do mestre André…, a célebre Procissão, etc. estava a chegar a nossa vez. Ora nós tínhamos o nosso reportório, que cantávamos no recreio lá na escola, dele até constavam algumas das já cantadas, não seria por não termos ensaiado que nos íamos negar. E, enquanto as outras cantavam, decidimos. 


E foi assim que aquelas vetustas e institucionais paredes de uma sala de um respeitável estabelecimento de ensino português, de onde pendiam a Cruz de Nosso Senhor e o retrato de Sua Excelência o Sr. Contra-Almirante Américo Thomás, aquelas paredes, dizia, ouviram, pela primeira vez, e única quero crer, o maior e mais pungente dramalhão cantado na época pelos ceguinhos nas feiras, saído com toda a garra e circunstância de dentro de oito gargantas infantis empenhadíssimas em deixar bem vista a sua escola mãe. Consistia o libretto na trágica história de uma criancinha que chorava a sua amarga orfandade à beira da campa térrea da mãe. Nada mais triste, nada mais pesaroso, nada que partisse mais os corações do que aquela dolente área, cantada com toda a alegria e entusiasmo por oito rapariguinhas de aldeia! Juntou-se gente. Vieram professores de outras salas ouvir-nos. Um sucesso.


Mas, afinal, não fora bem assim, apercebemo-nos depois. A presença da nossa professora tinha-nos feito mesmo falta! Disse-nos ela, quando soube, que não deveriamos ter cantado, não éramos obrigadas, só cantava quem queria! A nossa cantoria não parecera própria (hoje interrogo-me se isso se lhe trouxe alguma consequência profissional) iamos lá nós perceber porquê. Então não tínhamos feito bem, aquilo não era um exame, não tínhamos todos de estar igualmente preparados e a escola não tinha que estar representada em todos os aspectos? Comentámos entre nós indignadas, certas do nosso valor e da injustiça de que éramos vítimas. E que não se atrevessem a convencer-nos do contrário. A mim pelo menos, até hoje, ainda ninguém se atreveu!

Depois, eu, a única da classe, fui fazer exame de admissão à escola técnica e ao liceu.

O meu avô comentava estes meus feitos, a toda a família e a quem o queria ouvir, como algo nunca visto, "uma lança em África", palavras dele. Eu tinha "saído vencedora", também segundo ele, “em quatro provas”, quatro. Às três escolares o meu avô João juntava, o que para ele não era de somenos, o meu exame de catecismo, de que francamente não me lembro, mas se ele o dizia! 

E, em Outubro, saí lá de casa, deixei Porto da Lage! (MFM)




*Termina hoje a publicação destas croniquetas escritas há muitos anos. Quando decidi publicá-las, uma vez que eram retalhos (eu não escrevo romances), achei por bem pô-las todas sob um mesmo "chapéu", sob um nome que as contemplasse e unisse e desse ideia do que se tratava. E assim, procurando afanosamente por entre as mais subtis e inspiradoras designações, chamei-lhes "Memórias"!!! Não arranjei melhor nem mais imaginativo, valha-me Deus, até na nostalgia sou pragmática e prosaica!
Já as publicações iam a meio quando me lembrei que também há alguns anos, mas mais recentes, alguém me disse que a memória que tinha de mim era de uma miúda atrás das grades do portão dos Olivais; ora aqui estava um título, que à parte ser roubado, teria sido, para além de exacto, belo e apelativo! Já não vou a tempo de o alterar, mas pegando nessa imagem, peço aos leitores cuja paciência os obrigou a chegar a este maçador e dispensável  pé de página que, se por acaso não tiverem nada mais para fazer e lhes der para lembrar ou reler estas "Memórias", o façam tendo em mente uma criança 
guardada e espantada a olhar de boca aberta para tudo o que era velho como o mundo. Agradeço em nome dela.(MFM)

18 de fevereiro de 2021

Memórias - A Tagarela

 

                                                                               A Tagarela


Era muito animada aquela estrada. Passava e passava-se, sempre, muita gente e muita coisa  por ali. Automóveis, era raro, a estrada era de terra, com fundas poças no Inverno e muito pó no Verão, mas os tractores já eram comuns por lá e as carroças e bicicletas então, era um virote, já para não falar de gente a pé a caminho dos seus trabalhos no campo. Eu costumava imaginar o que haveria lá para o fundo, da estrada, onde eu nunca fora, que arrastaria tanta gente. No Verão, quando o milho e o tomate cresciam, ouviam-se, mal rompia o dia, os motores de rega, sinal da modernidade, ou o chiar das noras puxadas por mulas ou burros, a providenciarem a água que os ajudaria a suportar o calor infernal da tarde. Naquela várzea ao longo da ribeira, as pequenas propriedades, as fazendas, sucediam-se em fatias, paralelas umas às outras, cada uma com o seu poço, algumas com grandes tanques, outras nem tanto, mas todas verdejantes, todas prósperas, com horta, milho e pomar. Isto de ambos os lados da estrada, embora do lado direito, ao longo da ribeira, as hortas predominassem, Do outro, as vinhas estendiam-se, à medida que o vale acabava para a esquerda, para a encosta, e entremeavam com os campos de oliveiras e figueiras, semeados de cereal seco que se colheria no pico da estação.

Ao fim do dia, eu punha-me com a cabeça enfiada nas grades do portão ou ao cimo das escadas, com a tia Alice, a minha madrinha, quando ela estava connosco, a ver a retirada do campo. Vejo agora que este seria (será que já é?) um bom nome para um quadro naturalista, uma estrada à luz estreita quase de crepúsculo por onde rodam pessoas e animais alquebrados, a caminho do merecido descanso nocturno. Os boas tardes, até amanhã se Deus quiser, o vá com Deus ecoavam no silêncio do final do dia e faziam sombras no portão, na estrada, em todos os corpos, de tal forma que aqueles sons se corporizavam e existiam, ainda existem e me correm no sangue.
Umas figuras patuscas que passavam todos os dias pela estrada eram uns pais e uma filha, eles de meia idade, ela pelos vinte anos, muito alta, mais alta do que qualquer rapariga que eu já tivesse visto, esgalgada e ossuda. Iam os três sempre de manhã, de carroça, a cuidar do amanho da terra; ao cair da noite, à volta para casa, quando traziam muito carrego, vinham apeados, quanto muito arranjava-se um lugarzinho na carroça, no meio do feno, das hortaliças ou da lenha, para a mãe, a mais fraca de todos.


Mas, invariavelmente, a pé ou sentada na tábua da carroça, pela manhã, ou ao cair da noite, sempre, sempre, a rapariga ia a falar animadíssima. Estou a vê-la, a pé, a figura alta e magra de saia rodada de flores, e botas grossas, sempre a esbracejar e a atirar com as pernas, entusiasmadíssima com as próprias palavras. Chamávamos-lhe lá em casa a máquina falante.
Nunca percebi nada do que dizia, parece que ninguém percebia. 
A minha madrinha dizia que gabava a paciência dos pais por estarem constantemente a ouvi-la, eu achava que eles tinham muita sorte em tê-la, pois não era a vida deles animadíssima com uma filha daquelas?
Mas a madrinha também tinha pena dela, dizia, embora não explicasse porquê, que ela tinha uma história triste, estava condenada a viver para sempre aquela vida, sempre para cá e para lá com os pais a tratar da sua fazenda, sem vida de rapariga, sem ir passear com as outras, ao café ou aos bailes ao domingo à tarde, sem ter namorado nem casar, e um dia, depois, a ficar definitivamente sozinha. Valia-lhe a sua alegria. 
E eu, conquanto fingisse que não e não fizesse perguntas, sabia o motivo da compaixão por ela, conhecia, através das minhas fontes habituais, as minhas colegas de escola, um pormenor íntimo sobre a rapariga do qual, parecia, toda a gente das redondezas estava inteirada. Eu ouvira-as perplexa - a pobre da tagarela tinha nascido homem e mulher ao mesmo tempo, diziam, e tinham sido os pais a escolher que ficasse com sexo feminino! Eu acreditara, mas não compreendera, nem como se processava fisicamente um fenómeno daqueles, nem, muito menos, porque é que isso a afastava do convívio dos demais!(MFM)

Luigi Gioli ( 1854-1947) Ritorno dai campi 1912

 NOTA: Outras imagens de pinturas: Van Gogh (1853-1890) e Tomás de Anunciação (1818-1879)


17 de fevereiro de 2021

Memórias - A Anita

 

A Anita era uma amiga de sempre da avó. Tinham sido vizinhas em Tomar e tinha-se aproximado e aprofundado amizade com a nossa família,  especialmente com a avó apesar de alguns anos mais nova do que esta, depois de ter perdido os pais muito jovem 

Era uma senhora alta, com porte distinto, modos sofisticados, muito alegre e simpática, sempre muito bem vestida e de cabelo arranjado, visita regular lá nos Olivais, algumas vezes acompanhada do filho.

A história da vida da Anita era surpreendente. Ela própria ma contou, já eu era crescida, mas, antes, quando vivera em Porto da Lage já eu tivera ocasião de embasbacar, não era para menos, ao saber o modo peculiar como a Anita regulava, digamos assim, a sua vida.

A Anita vivia em Lisboa* quando ficara viúva de um militar de baixa patente que a deixara com fracos recursos e um filho pequeno, um rapazinho atrasado mental de menos de dez anos de idade. Contava ela que tinha passado dias de desespero, sozinha sem família que a apoiasse, sem saber como havia de prosseguir a sua vida, pois sentia-se obrigada a trabalhar para sobreviver mas não via como o fazer, por não ter a quem deixar o filho, criança com comportamento difícil e que não aceitava estranhos.

Aqui interrompo para contar o conto de outro ponto, vivia eu em Porto da Lage e já tinha conhecido a Anita que se correspondia muito com a avó. Num dia em que se recebeu carta e, à hora de almoço, a avó a leu em voz alta ao avô e à tia Alice, eu ouvi, ao contrário do que era costume. Acho que se terão esquecido que eu estava por ali. Eram cartas pormenorizadas, as daquele tempo, depois de se perguntar pela saude e informar da própria, recomeçava-se onde se tinha terminado a anterior missiva, contando-se todas as peripécias ocorridas entretanto, ...tinha-se ido ali, ...fulano dissera, ...cicrano acontecera. Mas reparei durante a leitura na referência sistemática a um mesmo nome de que eu nunca tinha ouvido falar, quase em todos os assuntos tratados, que dissera, que aconselhara, o que me intrigou. Claro que eu não tinha direito a meter o bedelho, primeiro porque não, a gente não se metia nos assuntos dos adultos enquanto eles falavam ou tratavam do que fosse lá deles, segundo porque intuía que estava ali por engano e o que eu menos queria era que dessem por mim. Pretendia ouvir o final, mas, chegado a ele, fiquei na mesma sem saber quem seria o tal.
Mas não esqueci. Confiante no efeito surpresa e na salvaguarda da tia Alice, sempre pronta a defender-me, assim que achei oportuno perguntei- Avó, quem é o Víctor? – Qual Víctor, filha? – Ora, aquele de que a Anita falava na carta? E a tia Alice deu uma gargalhada – Descalça lá agora essa bota, Maria José! A avó acabou de lavar a loiça, sentou-se. A avó tinha uma maneira particular de estar sentada, com as costas muito direitas e as mãos cruzadas deitadas com as palmas para cima,  sobre o regaço, penso que deveria ter os braços muito compridos para conseguir aquela posição, e disse – Olha filha, tu já és crescida – o que para mim antecipava a vinda de coisa séria. E lá informou, com um suspiro, que o Víctor era o marido da Anita. E o que é que isso tinha? Casou-se outra vez, pronto! Tanta coisa para isto! -Não filha, é o mesmo marido. – O mesmo, mas não tinha morrido? – Morreu sim!

Regresso dois parágrafos atrás, estava a Anita sem saber o que fazer à sua vida de viúva sem rendimentos quando, uma noite estando a dormir, se sente abanada na cama, acorda e quem é que vê? O falecido marido, que a conforta, lhe diz que tudo vai correr bem e lhe dá um endereço de um local onde ela deverá ir pedir que lhe acolham o filho. Ela assim faz, lá chegada sabe que era uma instituição dirigida por frades que educavam crianças com problemas da natureza dos do filho. O rapaz ali ficou até ser um homem, sempre acompanhado pelo pai que o vigiava e ia dando notícias à mãe, quando acontecia estar doente ou ser menos bem tratado lá se punha ela a caminho e chegava, para surpresa dos frades, para o acarinhar e  regularizar as coisas.  
Quando os conheci era contínuo num escritório de advogados, cargo que levava muito a sério, usando sempre fato e gravata além da inseparável pasta, onde, orgulhoso, levava os preciosos documentos ao tribunal ou onde fosse.  

E muitas noites se seguiram, depois, a esta de reencontro da Anita com o marido, nada era decidido, nada era feito sem o acordo do Víctor, muitas vezes era ele a propor iniciativas que conduziriam a melhorias na família. Por conselho dele, passara ela a ser membro de uma igreja espírita qualquer de onde trazia sempre livros e algum proselitismo, a única conversa da querida Anita para que não havia ouvidos nem retorno. Ninguém por ali estava interessado em conhecer a raíz da sua crença, em questioná-la ou contrariá-la.Nunca ouvi o avô falar sobre isso, mas tenho a certeza que sustentaria que seria aquele o modo que Deus arranjara para a ajudar a vencer a prova que a vida lhe enviara. Os restantes, embora não se atrevessem a envolver o Senhor em matéria tão sensível, pensavam o mesmo. Ela era nossa amiga e aquilo, fosse o que fosse, ajudava-a. Seguia-se no assunto o lema da tia Alice "cada um era feliz à sua maneira".

Entretanto, depois de ver o  filho entregue em boas mãos, passara ela a ser costureira de dentro. Trabalhava em casa de senhoras das quais retirava o seu rendimento e também, parecia-me, aquela desenvoltura e aquele gosto em se vestir.

Depois de, em miúda, ter passado a saber deste “segredo”, que só o seria para nós pois a Anita não tinha pejo nenhum em falar dele (havia sempre muito cuidado com os encontros entre ela e a tia Maria**, apesar da Anita estar avisada, a avó não confiava e procurava que estivessem juntas o menos tempo possível), pelo contrário, aquilo era a sua vida, passei, já mais velha, a pedir à avó para ler as cartas. Sozinha dissecava aquelas descrições de conversas com o Victor, que era, como lhe hei-de chamar? um ser sensato, inteligente, que se exprimia bem.

Eu adorava conversar com a Anita, sempre que sabia que ela estava em Porto da Lage arranjava maneira de também lá ir, para além da alusão por tudo e por nada ao Victor, o que me deliciava (era da gente se esquecer que ele não estava no mundo dos vivos) e a Anita sabia tudo sobre moda, trazia revistas, conhecia intrigas sobre os artistas da televisão. Trabalhava na Lapa, em casa da marquesa de …  prima de …. que tinha muitas filhas, meninas que se davam, namoravam algumas até, com actores e cantores e lhe contavam tudo sobre aquelas vidas  divertidas, modernas, libertas, tão diferentes da minha, provinciana.

A última vez que me lembro de falar com ela, em 1975 ou 1976, estava ela empenhadíssima na construção de uma casinha em área protegida na Fonte da Telha ou Lagoa de Albufeiranão sei bem, motivo pelo que se fizera sócia de uma cooperativa. Dizia ela que tudo estava encaminhado para ser  legalizado. Não foi. Enganou-se o Víctor, ou ela não lhe deu ouvidos. Quando eu soube da noticia da demolição daquele bairro, lembrei-me dela e desejei que já cá não estivesse, pelo menos fisicamente, para ver. (MFM)


* Numa rua linda, na Madragoa, muito perto do palácio de S.Bento. Rua, onde eu, mais tarde também vivi sem saber que tinha sido a dela. Quando finalmente fiz a ligação (através do remetente de uma carta dela, já todos tinham morrido) interroguei-me sobre a forma como ela explicaria isto.

** Já aqui falei nela, católica apostólica romana com tolerância não incluída, nunca aceitaria nem a Anita nem que ela fosse recebida lá em casa.