Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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4 de junho de 2012

Porto da Lage by night






A fotografia, que consta na net, não faz justiça à fulgência portalegense quando o sol se põe. Depois dos candeeiros públicos ligados, não imaginam o esplendoroso brilho que raia sobre toda a várzea da ribeira! O verde das canas e dos favais refulge exibindo prados prateados donde aqui e ali emergem os braços doirados dos altos candeeiros eléctricos.


A sorte de Las Vegas mudará quando, graças a este blog, Porto da Lage assumir o seu justo lugar no podium das localidades famosas e, mais ainda, neste caso, o seu merecidissimo posto no ranking dos sítios mais iluminados do planeta!

A C.M.T e a REFER andam em gloriosa competição (como grandes accionistas da chinesa EDP, que só podem ser, não vejo outra razão) para que, alfinete que caia das mãos de costureira portalegense, no meio da rua, pela meia-noite, não seja alfinete perdido (que me perdoem as costureiras portalegenses, se as há, eu pô-las a passear pela tresnoite de alfinetes em punho, mas não me ocorre outro exemplo, a imaginação transtornou-se-me depois de noite perdida, com tanta luz).

É claro que, montado este lindo serviço, não ocorre àquelas duas virtuosas instituições, saber dos seus efeitos, para além dos causados na algibeira própria, a qual, não sendo exactamente própria, mas comum a milhões, lhes faz pouca mossa, como é costume nestas ocasiões.

Se lhes chegasse aos ouvidos a existência deste clarão permanente sobre tudo o que respira durante o período em que os restantes mortais dormem (pelo menos neste fuso horário), ficariam felicíssimos, como grandes defensores que se consideram da segurança dos cidadãos, ao serviço dos quais colocam milhões de quilowatts. E eu, aqui vergo-me, acho que têm razão. Cidadão amigo da coisa alheia, que entre em casa de terceiros, o que em PL é fácil, com tanta casa com dono ausente, não corre o risco de tropeçar, ou pôr a mão em algo que não queira. A abundância de luz será um precioso auxiliar na consecução do seu intento.

Criaturas habitualmente atentas aos constrangimentos (e a constranger) a vida da nossa querida Terra (refiro-me ao astro) são os ecologistas. Que é feito deles que não os ouço nesta luminosa perturbação? Ocupados a choramingar a pésada ferida de um sáurio qualquer ou a reivindicar o caminho perdido dos ratinhos que impede a construção da estrada imprescindível para levar miseráveis humanos ao médico? Ainda não repararam que os pássaros não sossegam, que os gatos ficam aparvalhados a verem ratos a passarem-lhes desavergonhados pela frente, nos telhados (Isto eu vi! Já vos disse que não dormi) e não se mexem, de pasmados! que os galos cantam ao meio-dia e as rãs pararam de coaxar! Já para não falar nas plantas que, sem distinguirem noite do dia, não podem andar lá muito saudáveis!


Eu bem sei que Porto da Lage não é propriamente uma aldeia, é um subúrbio limpinho e ajardinado (honra a quem lá vive!) a quem as casas arruinadas e a linha do comboio dão um certo charme.

Mas caramba! Será caso para tanto? Terá, lá por isso,  que se tornar visível aos satélites que se passeiam por esse espaço fora?

Quem lá mora não gostaria, antes, de repousar, ignorada, sem concorrer com a Torre Eiffel? De ter candeeiros públicos à escala humana, sem ser confundido, lá dos céus, com porta-aviões; e de ter ruas e não pistas de aeroportos?




Eu, por mim, toda a noite me lembrei das noites negras da minha cidade, para onde voltei saudosa, e cheia de sono.
E consegui dormir, enfim, ao sentir a escuridão na vidraça, e ao lobrigar as estrelas no céu azul escuro de Lisboa, longe do casino portalegense.
E sonhei, sonhei com Cesário e o seu mundo certinho (e tradicional!?), em que a cidade era doentia, cinzenta, suja, ociosa (à luz do gás)  em contraste com o campo (da noite estrelada),  pleno de vida saudável, alegria e beleza.

Tudo muda, neste mundo redondo.



«Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E a Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo).
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na city, que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejecções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros armamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!


II


Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!»


Cesário Verde, Nós (1884)







3 comentários:

  1. Há setenta anos não havia iluminação pública. A noite só não era escura quando havia luar; para sair usávamos lanternas de petróleo cujo vidro resistia ao vento e à chuva. Os cães ladravam e poucos ousavam sair sozinhos. O Ulisses era excepção – saía sem medo, quando ainda não dizia bem os quês.
    - “Ó “lisses” não tens medo de andar à noite na rua?
    - “Mêdiê”?
    - De algum cão que te morda.
    - Levava uma pedrada nos “êxos...”.
    Teria alguma dislexia que ultrapassou; dizia “Urisses”, motivo de troça dos ignorantes; só há pouco dei conta que já os gregos trocavam o l pelo d, usando indistintamente Ulisseia e Odisseia.

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