Camilo, o grande Camilo Castelo Branco, que, por motivos lá da vida dele, passou algum tempo na cadeia, escreveu a propósito dos episódios e das pessoas que conheceu nesses dias o livro "Memórias do Cárcere". Diz ele no inicio do capítulo XXVI, o que dedica a José do Telhado - "Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países!Todas as vocações morrem de garrote, quando se manifestam e apontam a extraordinários destinos. A Calábria é um desprezado retalho do mundo; mas tem dado salteadores de renome. Toda aquela Itália, tão rica, tão fértil de pintores, escultores, maestros, cantores, bailarinas, até em produzir quadrilhas de ladrões a bafejou o bom génio!.... [em Portugal] Apenas um salteador noviço vinga destramente os primeiros ensaios numa escalada sai a campo o administrador com os cabos, o alferes com o destacamento, o jornalismo com as suas lamúrias em defesa da propriedade, e a vocação do salteador gora-se nas mãos da justiça ... faltava o telégrafo para matar à nascença as iniciativas auspiciosas. Apenas lá das povoações serranas desce à vila ou cidade a nova de um roubo, o arame palpita de horror, e a cara do ladrão é para logo litografada na fantasia de todos os esbirros sertanejos. A civilização é a rasa da igualdade: desadora as distinções: é forçoso que os bandoleiros tenham os mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente. Ladrão de encruzilhada, que traz o peito à bala e o bacamarte apontado ao inimigo, esse há-de ser o bode expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos ao sol benéfico da civilização. Roubar industriozamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo. Os daquela escola tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação; os outros, quando escorregam, acham-se encravados nos artigos 343, 349, 87, 433, 351, e mais cento e setenta artigos do código penal."
Camilo, lá, na nuvem etérea donde nos contemplam os génios, deve estar feliz por saber do desenvolvimento “da civilização” deste nosso Portugal, no 2.º milénio. Se vir televisão, Deus permita que não, seria mau sinal, verá que já não temos razões para nos envergonhar pois já os nossos “ ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países!”---não através “dos bandoleiros, dos que dão o peito às balas” mas dos “seus confrades, mais alumiados e aquecidos ao sol benéfico da civilização …Os daquela escola [que] roubam industriosamente, tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação”, e que, ao que vemos, estão hoje também “encravados” nos artigos do código penal os quais, ao que oiço dizer, se mantêm, mais coisa menos coisa, os mesmos.
As duas imagens abaixo, de 1889 e 1898, dão notícia de dois casos daqueles que se encontravam
encravados nos artigos 343, etc. do código penal,de alguma forma relacionados com a estação de Paialvo-Porto da Lage.
O primeiro, um roubo efectuado precisamente na bilheteira da estação, por um carregador da dita, homem, pelos vistos, de génio assomadiço que não terá gostado, percebe-se porquê, da pena que lhe foi imposta. No segundo caso, o título "Prisão Importante" poderia antes ser "Azar que não lembra ao careca", pois já viram o que é um desgraçado matar outro (sim, desculpem, não sei quais as razões, mas, pela mostra, o assassínio foi um azar: o primeiro de muitos), conseguir apanhar o comboio, sair onde o diabo perdeu as botas (sim, dizem que era uma estação importante, mas o pobre, à semelhança da maioria dos portugueses destes três séculos decorridos, não sabia), depois, ir, sabe-se lá como, direito a Porto Mendo (percebam, o homem não saiu no Porto, não saiu em Coimbra, nem sequer em Espinho, onde poderia ser reconhecido, não, foi para Por-to-do-Men-do, Por-to do Men-do, quem conhece Por-to do Men-do??), e quando se julgava seguro, lá, no meio do nada, e, com a fome a apertar se abeira da alma com a cara mais bronca que encontrou, a pedir um naco de pão, não é que se lhe apresenta o n.º 50, desfardado, da policia de Santarém? Um guarda com memória, ainda por cima, e com vontade de mostrar serviço! Nunca se tinha visto azar assim, como o do Oliveira, em 19 séculos D.C. Tivesse este episódio ocorrido 30 anos antes, teria sensibilizado o nosso grande escritor e hoje estaria também integrado nas suas "memórias". Assim calhou-lhe ser só este blog a lamentá-lo. Mais um azar. Menos mal.Passe a imodéstia, sempre saiu da obscuridade.
Sem dúvida, acabou por ir parar ao degredo, lá para as Áfricas. A propósito de degredo, esta pena, em 1867, ano da abolição da pena de morte em Portugal, foi mantida, mau grado ser considerada condenável, como meio de obtenção de mão-de-obra. Em 1880, A Nova Reforma Penal procedeu à abolição de certas penas, como a expulsão definitiva do Reino, a perda dos direitos políticos, a pena de trabalhos públicos, a pena de degredo e a prisão perpétua. No entanto, o degredo foi sempre mantido, por, supostamente, não haver cadeias de alta segurança suficientes no Continente, até 1932, ano em que se abole, por decreto, o envio de condenados para Angola, sendo que só em 1954 a pena é riscada do Código Penal português.
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31.03.1889 |
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11.09.1898 |
Quem foi degredado em 1863 e morreu em Xissa, Mucari (Malanje, Angola), foi José do Telhado (José Teixeira da Silva). Por lá foi negociante de borracha, cera e sobretudo marfim, tendo fama de homem severo mas sempre pronto a ajudar os mais necessitados. Ganhou prestigio, tendo mesmo servido de elo de ligação entre as autoridades portuguesas e os sobas locais. Quando faleceu, em 1875 com 57 anos, a população construiu um mausoléu na sua sepultura à qual, muitos anos depois, ainda fazia romagens.(MFM)
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A lápide reza assim De um Homem que nasceu obscuro nas Beiras e morreu homenageado pelo povo em Malanje. |
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Estado da campa actualmente |
Imagens retiradas de Memória Digital de Tomar e do Blog Kuanza Sul.
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