(continuação)
Estava a banda a tocar quando me lembro da possível existência de algum outro marco esquecido, morto e enterrado.
Então, fiz sinal ao maestro, este finalizou a música e eu fiz um exaltante improviso ao marco desconhecido que pode jazer à beira da estrada noutro local esquecido, claro que fui muito aplaudido, mas consegui interromper os aplausos para pedir um minuto de silêncio em sua homenagem.
E o silêncio fez-se, imaginem esse silêncio...
Ao longe, muito ao longe ouve-se um som que se vai percebendo tratar do trote de um cavalo.
Começa-se o descortinar nesse longe um tremeluzir que se vai aproximando, percebe-se que será um carro de tracção animal.
Estranhamente não se ouve o rodar sobre o pavimento, estranho pavimento que também ainda não foi inventado, mas se não se ouve o rodar, ouve-se gritar; como é ao longe, muito ao longe, adivinha-se mais do que se ouve.
Mas com o aproximar da carruagem, vê-se quem vem lá dentro a berrar:
-PAREM! PAREM!PAREM! Essa inauguração é minha!
-Eu sou/fui o ministro encarregado desta inauguração, por isso eu é que vou proceder ao descerramento da bandeira payalvense à falta da azul e branca. Vendo o meu ar, vendo as caras dos assistentes, mas sobretudo o cenho franzido da “DE PAYALVO”, resolveu explicar-se:
- Vou tentar explicar o que na verdade sucedeu; Para começar é falso que eu tenha inaugurado o Marco da Paciência (marco de Porto da Lage - Estação de Payalvo).
É verdade que foi marcada a inauguração d'ESTE marco, seria desta estrada se o orçamento do meu ministério o permitisse, e o problema foi mesmo de orçamento, não havia dinheiro para as ajudas de custo. Pois, para um ministro de sua majestade se deslocar no reyno, era preciso libertar verba, era preciso despacho do Ministro da Fazenda. E foi ai que tudo se complicou. Estava o meu secretário à espera do despacho quando o governo caiu. Mas ainda conseguiu o despacho em meu nome, como ministro das Obras Públicas. Só que, como o governo caiu, eu já não era ministro das ditas. Fui à cocheira Real requisitar um meio de transporte, que não podia ser, que não batia a bota com a perdigota; que sim, que lá figurava o meu nome, mas que já não era ministro. Já viram o problema? Pois, caso bicudo. Tão bicudo que pedi um parecer à Procuradoria Geral do Reyno. Esse parecer veio, só que a cocheira Real já não era cocheira real, já era museu dos coches. Que fazer? Pois, que fazer? Pus-me a ler o parecer a ver se tinha alguma inspiração. O parecer, ao fim de cinquenta e duas páginas de considerandos concluía que o importante era inaugurar o marco, que o hábito não faz o monge, mas desde que fosse alguém de fraque, a inauguração podia e devia fazer-se. E lá voltei à cocheira real, digo, museu dos coches, para tentar um empréstimo duma carruagem e lá o consegui só que, já não tinham cavalos. Mais um contratempo. A minha sorte, ou o meu azar, foi que entretanto se deu a revolução do 5 de outubro de 1910 e, ao rebentar uma bomba, espantaram-se uns cavalos e um fugiu para o museu dos coches...
Foi logo atrelado, este que aqui vêm.
- Então e demorou um século a aqui chegar? Perguntais vós com toda a razão.
E eu tento explicar. Há cem anos não havia estradas, muito menos placas a indicar as localidades; mas eu nem sequer sabia a localidade em que estava este marco, se ele estava nalguma localidade; só adivinhava que estaria na fronteira entre os distritos de Santarém e de Leiria
Se a carruagem tivesse GPS (coisa que, como pressupõem, ainda não foi inventada), marcava as coordenadas (mas se nem as sabia, nem existiam ainda) e aqui vinha eu.
Imaginam o que penei se souberem que o único guia de viagem foi “Viagens na minha terra ” dum tal Almeida Garrett. Foram tantas as peripécias que dava para um livro. O que sofri pela Serra d'Aire à procura dalguma coisa que se assemelhasse a uma estrada, alguma pedra que pudesse passar por marco.
Lembro-me que, acho que era nos anos de 1917, houve grandes aglomerações de povo por um sítio não muito longe daqui, presumo; mas como tenho andado perdido, não o posso confirmar.
Tão perdido andei que encontrei um marco, digno marco, tão digno que tinha a cruz de Christo. Logo percebi que estava junto à terra dos Templários, depois chamada ordem de Christo (se tivesse GPS tinha registado as coordenadas e alguém me agradeceria). Desci continuando a procura da arca, digo, do marco perdido, fui dar a Chão-de Maçãs, estavam a instalar uma placa em que acrescentavam Fátima ao nome da estação (se eu tivesse ouvido o discurso precedente, teria concluído estar perto, mas como o não ouvi, continuei a descer...).
Fui-me orientando pela linha dos caminhos de ferro, que de estrada, quase nada vi. Sei que passei por Fungalvaz, também foi doada por D.Isabel ao convento, mas só agora, ao ver o documento acima citado, o sei.
Continuei a descer, passei pela igreja de S.Silvestre, Paço da Comenda e fui dar a uma aldeia que tinha estação de comboio, Thomar -Payalvo, estavam a mudar a designação para Porto da Lage - Payalvo (se não era com um Y, era com I, não garanto). Ia a chegar à estação quando vejo um miúdo sentado numa pedra, virei-me para ele e perguntei-lhe:
-Ó menino, de quem és tu filho?
- Do sr. meu pai, respondeu.
Enchi-me de paciência para continuar o interrogatório quando reparo que a pedra em que o puto se sentava tinha uma inscrição:
ERNº 15
DE SANTARÉM A LEIRIA
ALTITUDE 68.64M
Seria esta a pedra? |
Era a ERNº15 (aquela cujo marco eu ia inaugurar). Só que continuava sem saber para que lado me dirigir, lá consegui que o puto me levasse ao pai que me falou na hipótese de ser depois de Vila Nova de Ourém, mas espere por quinta-feira que eu vou para esses lados e indico-lhe o caminho.
Fui procurar a estalagem da terra, que, ao que me diziam, o nome da terra vinha duma estalagem, que a aldeia até se devia chamar de Portalagem (Porto da Estalagem – passagem da ribeira a vau junto a uma estalagem).
Lá ia eu à procura da dita estalagem se o dito pai da dita criança não me tivesse adivinhado o pensamento e não me tivesse oferecido alojamento:
-Esteja Vª Exª descansada que palha não falta para o cavalo de Vocelência.
Isto dito no quintal de sua casa enquanto ensaboava demoradamente as suas grossas mãos.
Chegada a quinta-feira, depois de almoçarmos, lá encetámos a viagem, já me imaginava a proceder à inauguração.
Curiosa a carruagem em que se deslocava, sem cavalos!
Que não, que não tinha nenhuma máquina a vapor, que tinha um motor a gasolina, disse-me; que mais irão inventar? Perguntei eu para os meus botões.
Penso que fiz a viagem precedente em sentido inverso; Porto da Lage, Paço da Comenda, Fungalvaz, aqui meteu-se pela terra e parou. Se eu tivesse sequer um mapa actualizado, teria continuado por minha conta e risco, mas como o não tinha, esperei.
Ao fim de alguma horas, lá seguimos o caminho, voltámos a passar por Chão-de-Maçãs, primeiro pela gare, aí, numa ponte, que não era ponte, antes um viaduto sobre a linha do comboio, mostrou-me lá em baixo a entrada dum túnel que me disse ir sair a Chão-de-Maçãs propriamente dita, do outro lado mostrou-me um canal que acompanhava aponte/viaduto que conduzia a água dum ribeiro (curiosa construção que fazia inveja a muito aqueduto). Seguindo, antes da povoação tivemos de parar na passagem de nível para a passagem do comboio, impressionante a velocidade que atinge, falou-me em muitos quilómetros por hora, que se fazia viagem de Lisboa ao Porto em menos de meio dia; e eu há quase um século a percorrer os caminhos deste país...
A paragem foi junto a Seiça; preparava-me para agradecer e seguir viagem quando recebo um convite formal:
-É uma honra para esta casa receber um governante de sua majestade, mesmo que já o não seja, mesmo que já tal não exista.
Depois duma farta refeição e de recordações várias sobre a realeza, fui conduzido a uma magnífica cama, e no dia seguinte, pela manhã, parti para a derradeira etapa da viagem inaugural.
Só que... (lm)
(Continua)
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