Trinco da porta caindo
Sobre a partida de alguém...
Oh, quantos vão e não voltam?!
São os que a morte lá tem!
António Sardinha (1888-1925)
António Sardinha (1888-1925)
Constantin Brancusi, O beijo, 1909 |
Eu, que só entendo que as coisas se alterem se for para melhor, e que por isso me dizem ser conservadora (o que em Portugal não é bem visto e faz com que os meus próximos temam pela minha reputação), tenho-me interrogado sobre recentes hábitos dos meus contemporâneos.
Um deles, assunto muito sério e melindroso, é a crescente cavalgada para a cremação dos corpos. O que leva cada vez mais pessoas a tomarem essa decisão? Conheci uma jovem mãe de família que, prestes a deixar-nos, escolheu ser cremada e não ter funeral – porque sabia que o marido e os miúdos não iam aguentar todo aquele cerimonial e, mais, seria um peso para eles saberem que tinham uma campa para cuidar. E assim foi, o corpo foi entregue à agência funerária mal o hospital o libertou e nunca mais houve rastos dele. A presença física da morte foi afastada, desconheço, acho que ninguém saberá dizer, de que forma esta circunstância alterou, ou não, a dor da ausência.
Penso que a resposta, pelo menos uma delas, para a minha interrogação, estará na decisão desta minha querida amiga: afastar o sofrimento, o sacrifício, o que incomoda, daqueles que amamos. Na única situação da nossa existência em que é impossível intervirmos, expulsamos os vestígios da dor, na tentativa de fingirmos que a partida definitiva não aconteceu. Não nos confrontarmos com o cadáver e depois, com os restos mortais que sabemos enterrados num local determinado, traduz, quanto a mim, o medo imenso que a gente dos nossos dias tem, e que os nossos antepassados desconheciam, de nos depararmos com o inevitável: a nossa condição de mortais.
Os nossos avós, que sofriam e se sacrificavam muitíssimo mais do que nós pois a vida era mais dura em todos os aspectos, aceitavam a dor como parte dela, e, dentro daquela, a dor maior - a da morte. Não acredito que sofressem menos ao perder alguém, a diferença consistia em não repudiarem esse sofrimento.Conheciam também, e esta será outra resposta à minha pergunta inicial,o seu papel no ciclo da vida, certamente por estavam mais próximos da natureza. Tinham verdadeira consciência da sua dependência da terra, o que hoje é impensável e ignorado. Esquecemos que a terra é a nossa dimensão, que a pisamos todos os dias, que nela nos transportamos, nela respiramos, dela nos alimentamos. Estes antigos versos das planícies alentejanas, nascidos da terra prenhe do pão que matava a fome, mostram a inter-dependência dos nossos antepassados com a terra-mãe que nos alimenta em vida e à qual alimentamos em morrendo.
Eu sou devedor à terra
A terra me está devendo
A terra paga-me em vida
Eu pago à terra em morrendo
Um testemunho belíssimo da consciencialização do contrato entre o Homem e a Natureza. Que eu consigo entender, o resto não. (MFM)
É isso mesmo - o instantâneo paradigma actual: um presente sem passado e sem futuro. Sem futuro.
ResponderEliminarDos tempos dos verbos só se conjuga o presente e nunca nas segundas pessoas.