William George Gillies (1898–1973) Sisters Emma and Janet |
Do lado direito da casa do meu
avô, nos Olivais, estendia-se, perpendicular à estrada, uma estreita faixa de
terra, sem árvores nem poço, onde, no tempo próprio, crescia apenas algum
cereal e pouco mais. Era a “fazenda das penas”. Ao contrário do que a imaginação
possa imediatamente suscitar, este nome, por que era popularmente conhecida,
não se devia à aridez do terreno nem a qualquer infortúnio ocorrido no local.
Mas, muito simplesmente a ser aquela, muito propriamente dito e articulado, à
maneira da minha avó, “a fazenda das primas Pena”. E as primas Pena eram o que
o nome literalmente indica, primas nossas, de apelido Pena. Duas. Eram duas, as
primas. Secas, solteironas e respeitáveis. Moravam em Assentis de onde eram
naturais, últimos rebentos de um ramo velho da velha árvore de onde brotara
igualmente o meu avô. De que forma aqueles velhos esgalhos tinham nascido e
estavam articulados na antiga vergôntea de modo a chamarem-se primos, não sei
dizer, não perguntei, não era costume perguntar-se tal coisa, ser-se primo era
coisa natural por aquelas paragens e por aqueles tempos.
As primas Pena visitavam uma ou
duas vezes por ano a sua propriedade, que traziam arrendada, e, de caminho,
enquanto faziam horas para a camioneta de carreira, que também as trouxera,
apareciam lá em casa. Graves, reverentes, corteses, vestidas adequadamente,
como era adequadamente pequeno-burguês tudo o que diziam e faziam, em
conformidade com todo aquele mundo a que pertenciam. A que pertencíamos.
Trajavam sempre de casaco, mesmo no pino de Julho, curto, de mangas abaixo dos
cotovelos, à francesa, traziam pendurada da mão ou do antebraço a célebre
“mala-de-senhora”, e, quiçá, uns anos antes, o chapéu também lhes tivesse
encimado a cabeça, embora, no meu tempo, trouxessem já o cabelo, onde a
cabeleireira colocara os competentes rolos, enlacado na requerida permanente.
Eram senhoras, portanto. Que se sentavam, observavam do crescimento das
crianças, perguntavam dos achaques e informavam dos próprios, comentavam das sementeiras
e colheitas, clima e ano agrícola em geral, e partiam. Eram assim as visitas
das primas, como todas as outras.
Em 1974, depois da revolução e da
formação dos novos partidos políticos, a minha avó, sempre atenta e informada,
e, nesta época, mais do que nunca, tratou de nos fazer saber que um sobrinho
das primas Pena se dedicava, agora, à política. Era ele o Dr. Rui Pena, do CDS.
Porque era jovem e ingrata e não
dava a devida importância aquilo que devia, o que, hoje, nunca lamentarei o
suficiente, também aquela informação não me despertou qualquer interesse. Ao
longo da vida pública do senhor, quando o via na TV, ou ouvia falar dele, não
me ocorreu, nunca, a levíssima, ténue, ligação familiar que pudéssemos ter.
Mas, esta semana, ao saber da sua morte lembrei-me, logo, das primas Pena. Que
coisa extraordinária nos traz a idade! Donde raio se levantam estes fumos
desgraçados que nos toldam e exalam um cheiro tão antigo e tão presente, nos
trazem tudo à memória e nos obrigam a penitenciar das nossas falhas? Como eles
me evocam, agora, aquele fim de tempo que eu presenciei. Em que tudo
encaixava e era previsível. Tempo onde tudo cabia. Até a subversão. Que só causava
escândalo. Mais nada. (MFM)
Nota: À família enlutada do Dr. Rui Pena , pretexto deste pequena evocação, apresento as minhas condolências.
De antologia.
ResponderEliminar