Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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11 de janeiro de 2018

As primas Pena


 William George Gillies (1898–1973) Sisters Emma and Janet



Do lado direito da casa do meu avô, nos Olivais, estendia-se, perpendicular à estrada, uma estreita faixa de terra, sem árvores nem poço, onde, no tempo próprio, crescia apenas algum cereal e pouco mais. Era a “fazenda das penas”. Ao contrário do que a imaginação possa imediatamente suscitar, este nome, por que era popularmente conhecida, não se devia à aridez do terreno nem a qualquer infortúnio ocorrido no local. Mas, muito simplesmente a ser aquela, muito propriamente dito e articulado, à maneira da minha avó, “a fazenda das primas Pena”. E as primas Pena eram o que o nome literalmente indica, primas nossas, de apelido Pena. Duas. Eram duas, as primas. Secas, solteironas e respeitáveis. Moravam em Assentis de onde eram naturais, últimos rebentos de um ramo velho da velha árvore de onde brotara igualmente o meu avô. De que forma aqueles velhos esgalhos tinham nascido e estavam articulados na antiga vergôntea de modo a chamarem-se primos, não sei dizer, não perguntei, não era costume perguntar-se tal coisa, ser-se primo era coisa natural por aquelas paragens e por aqueles tempos.

As primas Pena visitavam uma ou duas vezes por ano a sua propriedade, que traziam arrendada, e, de caminho, enquanto faziam horas para a camioneta de carreira, que também as trouxera, apareciam lá em casa. Graves, reverentes, corteses, vestidas adequadamente, como era adequadamente pequeno-burguês tudo o que diziam e faziam, em conformidade com todo aquele mundo a que pertenciam. A que pertencíamos. Trajavam sempre de casaco, mesmo no pino de Julho, curto, de mangas abaixo dos cotovelos, à francesa, traziam pendurada da mão ou do antebraço a célebre “mala-de-senhora”, e, quiçá, uns anos antes, o chapéu também lhes tivesse encimado a cabeça, embora, no meu tempo, trouxessem já o cabelo, onde a cabeleireira colocara os competentes rolos, enlacado na requerida permanente. Eram senhoras, portanto. Que se sentavam, observavam do crescimento das crianças, perguntavam dos achaques e informavam dos próprios, comentavam das sementeiras e colheitas, clima e ano agrícola em geral, e partiam. Eram assim as visitas das primas, como todas as outras.

Em 1974, depois da revolução e da formação dos novos partidos políticos, a minha avó, sempre atenta e informada, e, nesta época, mais do que nunca, tratou de nos fazer saber que um sobrinho das primas Pena se dedicava, agora, à política. Era ele o Dr. Rui Pena, do CDS.

Porque era jovem e ingrata e não dava a devida importância aquilo que devia, o que, hoje, nunca lamentarei o suficiente, também aquela informação não me despertou qualquer interesse. Ao longo da vida pública do senhor, quando o via na TV, ou ouvia falar dele, não me ocorreu, nunca, a levíssima, ténue, ligação familiar que pudéssemos ter. Mas, esta semana, ao saber da sua morte lembrei-me, logo, das primas Pena. Que coisa extraordinária nos traz a idade! Donde raio se levantam estes fumos desgraçados que nos toldam e exalam um cheiro tão antigo e tão presente, nos trazem tudo à memória e nos obrigam a penitenciar das nossas falhas? Como eles me evocam, agora, aquele fim de tempo que eu presenciei. Em que tudo encaixava e era previsível. Tempo onde tudo cabia. Até a subversão. Que só causava escândalo. Mais nada. (MFM)



Nota: À família enlutada do Dr. Rui Pena , pretexto deste pequena evocação, apresento as minhas condolências.

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