Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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6 de fevereiro de 2019

A Propósito



Parábola da pediatra como não há outra 
ou de como a culinária pode ser xenófoba 
ou ainda 
de como este blog também tem uma história para contar a propósito dos tempos que correm.




Virgem de Granada, de Fra Angelico (1387-1455)


Um casal com filhos, de quem sou muito próxima, vive há algum tempo em Itália. Por lá beneficia, como todos os residentes, do respectivo Serviço Nacional de Saúde cuja implementação, não sendo nacional mas regional, varia de qualidade segundo as regiões, sendo, na cidade a que me refiro, considerado excelente, o melhor do país. A cada família é atribuído um médico, o qual recebe os doentes no seu consultório, não existindo aparentemente diferença entre os particulares e os outros, as contas são feitas entre o Estado e o médico, o qual pode prescrever todos os exames e especialistas quando vir necessidade. Nesse caso, o doente só tem que ir à farmácia (sim, à farmácia!) e pedir para lhe marcarem o indicado. No prazo máximo de uma semana já estará no consultório do médico da especialidade ou a fazer o exame prescrito. À semelhança do médico de família é também atribuída a cada criança um pediatra, exactamente nos mesmos moldes.
Voltando à família em causa, esta viu-se aumentada com mais um elemento, a MT, que nasceu no inicio do Verão passado. Tal nascimento teve acompanhamento médico pré e pós parto, segundo a  mãe, fabuloso, tendo a menina passado a ter a mesma pediatra que os manos já tinham. Uma pediatra como não há outra, palavras da mãe com as quais, estou certa, todos os que me lêm irão concordar. A senhora, já considerada excelente à conta dos irmãos, reforçou a sua fama, e acho que também proveito, com a MT. Na consulta própria, penso, dos quatro meses, deu ela ordem para a bébé começar a comer sopas, enumerando o tipo de elementos que dela deviam fazer parte, como é costume. Fiada na sua experiência a mãe deu pouca atenção ao desfile de legumes e batata e cenouras e etc, e respectiva periodicidade, que a doutora ia enumerando, até que acordou da sua distracção ao ouvir – por fim, não se esqueça de ralar um pouco de parmasiano sobre o caldo. O quê, ralar queijo na sopa de um pouco mais que recém - nascido? Pensou a mãe para consigo, mas não retorquiu. Já conhece suficientemente bem os italianos!
E claro, o queijo ralado na sopa dos bébés italianos (coisa que a dita mãe averiguou ser hábito, não um devaneio da médica) passou a ser piada entre os tugas circundantes e tema de conversa no pátrio Natal seguinte; estava explicado porque aquela gente não passa sem o queijo, corre-lhe literalmente nas veias, juntamente com o leite materno, desde a mesma tenra idade!
E seguiu-se a consulta seguinte, a criança estava lindamente, auguri belíssima bambina, brava ragazza! toda a explosão italiana rompia da boca da exultante médica que, via-se, se envaidecia do seu contributo no feliz e visível resultado na criação de um bébé de catálogo – bochechas rosadas, olho azulado risonho, sorriso desdentado até às orelhas.
E seguiu-se a conversa, monólogo, conclusivo. A boa alimentação era tudo, via-se que a bambina comia tal e tal e tal, e mais o queijo e mais a farinha, etc. A tola da mãe (eu já lho disse!), constrangida com tantos complimenti não teve mão em si que não esclarecesse – pois que desculpasse a sr.ª doutora mas não sendo hábito português, de todo lhe esquecera o queijo, quanto à farinha, a mesma coisa, não costumávamos pôr farinha na sopa, logo, nunca pusera farinha na sopa da filha. – Como, a bambina não comia farinha!? Espantou-se.- Como é que ela conseguia comer a sopa sem queijo? Coisa insípida! Muito se admirava! - A menina comia só a farinha na papa, misturada com carne e legumes não! E, sim, gostava muito de sopa, mesmo sem queijo!-respondeu, já irritada, a mãe.
A médica suspirou, recostou-se na cadeira, mirou a interlocutora, procurou as palavras e falou calmamente (para quem desconhece, quando um italiano fica calmo depois da indignação, quando não grita, não se encoleriza, não insulta o interlocutor, o caso é grave, muito grave e ele está sério, muito sério).
Pois muita pena tinha ela, que aquela família, com tão belos filhos, gozando do privilégio de os criar em Itália, não aproveitasse devidamente a cultura deste belo país. Que não os criasse conforme a cultura italiana, ou que, pelo menos, não os alimentasse com os costumes italianos. A comida italiana era a melhor do mundo, a mais rica, a que fazia uso dos melhores ingredientes. Não havia agricultura como a italiana, capaz de produzir os melhores produtos, e o mesmo se podia dizer da carne e até do peixe. Quando os elogios chegaram ao peixe italiano, o ânimo da pobre e humilhada mãe portuguesa, já disposto a acreditar em todas as loas à magnífica Itália e a pisar todos os hábitos e costumes lusitanos como próprios de povo primitivo e ingrato, pois, naquela hora, aquele ânimo rebaixado levantou-se, nem foi por patriotismo, foi por puro amor à verdade – contou ela depois-  e retorquiu - Desculpe, mas quanto ao peixe não concordo. A Itália não tem peixe nem em qualidade nem em quantidade, nada que se compare a Portugal. Nós aqui nunca encontramos peixe bom, o pouco que há não presta. - Mas isso é uma questão alheia à Itália, o nosso peixe é bom, se agora se não pode comer é por causa dos imigrados do norte de África que se afogam no mar e por lá ficam a apodrecer! - respondeu a médica.
- E tu continuas a confiar os teus filhos a uma criatura que diz estas enormidades?- perguntei eu àquela mãe, fazendo minha a pergunta dos meus caros leitores e de toda a gente sensata em geral.
- E faço o quê? Vou procurar um italiano não nacionalista onde? Não existe. E depois, não há ninguém perfeito e ela é uma pediatra como não há outra. (MFM)

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