Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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14 de dezembro de 2020

Ao fundo ....a memória.


Desenho de J.A.


Ao fundo [ da ladeira que conduz à cidade] está a oficina do Ferrador Zé Paulo para onde entram por um largo portão e vão prender o animal, mesmo atrelado, a uma estaca ao fundo do pátio

A oficina do Ferrador ficava num amplo pátio onde se abrigavam (acoitavam) as carroças, as galeras e as charretes de quem vinha a Tomar: era uma espécie de caravanserai, estrategicamente situada à entrada da cidade, ao fundo da “estrada de Paialvo” que a ligava à Estrada Real de Lisboa a Coimbra em Porto da Lage e de lá seguia para Leiria.

Nesse pátio caravanserai havia uma “estação de serviço” onde um ferrador – Zé Paulo – cuidava das alimárias enquanto esperavam.

E, provavelmente uma hospedaria para quem podia; os outros poderiam ficar no albergue vizinho, fantasio.

 Pelo mesmo portão se entrava para casa da família Coito, da nossa tia Mª José casada com o tio João (dos Olivais), de que recordo uma longa varanda (da antiga hospedaria?) virada a poente como a da tia Anita em Porto da Lage. Era ali que eu procurava boleia para casa aos sábados à tarde. Recordo a forja, o barulho da bigorna, dos cravos na ferradura, das patadas no chão térreo e, sobretudo, do cheiro dos cascos queimados. HCM

9 de outubro de 2013

A Peregrinação dos Três Compadres




Retrocedendo aos anos de 1940, vamos assistir uma peripécia que foi contada por um dos participantes em jeito de queixume mas gozado por quem a ouviu e transmitiu mais tarde em jeito de anedota.
A hilaridade do episódio tem mais haver com a personalidade dos seus intervenientes do que com o seu conteúdo mas, aí vai: sábado de manhã, pelas oito horas de um dia qualquer, os três cunhados entre si, compadre António Rosa, compadre Manuel Augusto e compadre António da quinta vão a caminho de Tomar, na charrete do compadre Rosa.



...a  oficina do Ferrador Zé Paulo para onde entram por um
largo portão [ em frente, depois da descida da chamada Estra-
da de Paialvo]
Vão em peregrinação ao mercado semanal que aí se realiza. O trajeto não é longo e o cavalo que atrelado é fogoso e bom trotador. Cerca de meia-hora depois estão a descer a ladeira que conduz à cidade. Ao fundo está a oficina do Ferrador Zé Paulo para onde entram por um largo portão e vão prender o animal, mesmo atrelado, a uma estaca ao fundo do pátio.





Daqui dirigem-se ao centro do acontecimento: Praça da República, um belo espaço enquadrado por um belo edifício do século XVI onde a câmara municipal está instalada, uma igreja do mesmo século, Igreja São João Baptista, e diversos estabelecimentos comerciais. No centro a estátua do templário Cavaleiro de Cristo Gualdim Pães, fundador do castelo e da cidade. Os produtos expostos para venda, agrícolas em geral, são variados e em pouca quantidade. Vêem-se ovos, galinhas, coelhos, queijinhos de leite de ovelha, couves, batatas, ervilhas, favas, feijão, grão de bico e uma ou outra peça de barro vermelho. Nas épocas dos granjeios das hortas e das vinhas, há molhinhos de Cebolinho, pés de couve e bacelo bravo. No mesmo dia havia também o mercado quotidiano que se situava nas traseiras do edifício da Câmara.
A Peregrinação dos compadres, de boa memória e que há muito tempo deixaram o convívio dos vivos, é rotineira. Observa-se o que está à venda, compra-se algum utensílio da loja de ferragens se for necessário, um funil no latoeiro ou um balde ou ainda um caneco, trocam-se umas opiniões com este ou aquele vendedor, encontra-se um amigo conhecido de longa data, trocam-se umas informações de interesse mútuo e surge o convite indispensável: uns copos de palhete na taberna da esquina da rua que conduz à praça. Vai uma rodada, vai outra que agora pago eu, mais uma  que agora é da minha conta e as conversas começam a ser prolongadas e amistosas. Os estômagos estão vazios e depressa os 11 graus do palhete sobem ao topo.

O mercado de Tomar no local a que se refere o autor no inicio do sec. XX, ainda sem a estátua de Gualdim Pais

Chega-se a hora de regressar a casa. Apertos de mão e até qualquer dia. Já no Zé Paulo, desprende-se o cavalo que está inquieto e quer regressar à palha, é guiado até ao início da ladeira que desceu na vinda. A subida é longa e cansativa. Quando se chega ao topo é necessário "dar de beber à sede", quer às pessoas quer aos animais. Para saciar, está lá o Elias, ponto estratégico, com paragem obrigatória, de longa tradição. Mais uma rodada para a cumprir e de novo a caminho. O compadre Rosa toma o seu lugar de condutor, rédeas na mão, cigarro barrigudo apagado colado ao lábio inferior canto da boca, rosto congestionado, pálpebras inferiores avermelhadas, alivia o travão, dá rédeas ao cavalo e aí vai caminho de casa. O compadre António da quinta, sem dizer uma palavra, um pouco ensonado, vai sentado ao seu lado. É sóbrio nas bebidas e comidas mas nestas circunstâncias excedeu-se um pouco. É  mais versado na agricultura que nos negócios de ocasião. A segunda etapa do regresso é percorrida mais facilmente. É sempre a descer, salvo uma subida. Entram em Porto da Lage, seguem na direcção da azenha e…. ponto final. Rédeas  no descanso, Um pé no estribo outro no chão e… o compadre Manel? Tinha ficado no Elias. Não teve tempo nem agilidade para subir à charrete. Chegou a casa algumas horas depois. Pelo caminho veio destilando os 11 volumes do palhete. (Ilídio Mota Teixeira) 






11 de abril de 2016

Alfredo Keill



Alfredo Keill,o autor da nossa Portuguesa também, já aqui o dissemos,  deve ter entrado algumas vezes na estação de Paialvo, como desta vez, em que escolheu o local dos Valles, na Sertã, para veranear e trabalhar. Talvez fosse por aqui que encontrou este Telheiro do ferrador e decidiu passá-lo à tela.




20.09.1896

Telheiro do Ferrador, Alfredo Keill



1.12.1895





9 de setembro de 2015

Fruta da Época (de outras épocas) II




Luís Egídio Melandez (1716-1780)
                                                                                ....
12.12.1886



No extremo da Rua dos Oleiros, oposto à Azenha da Ordem, de que já falámos, no topo junto ao Pé da Costa, ficava o célebre Pateo da Sra. Henriqueta -como então se dizia- o maior dos dois que existiam no nosso Bairro, sendo o outro o da Sra. Rosa, sito na Calçada do Convento.
Eram estas as duas grandes «garages azininas» do começo do século, quando os solípedes eram ainda o meio usual de transporte e os burros, mulas, cavalos, carroças, galeras, charretes, breaks, milords e Iandaus, não tinham ainda sido substituídos respectivamente pelos ciclomotores, lambretas, mótos, forgonetas, camionetes, ovos, carros utilitários e espadas.
Era um meio de transporte mais vagaroso, é certo, mas que não enchia os jornais de acidentes de viação e que em vez de gastar combustíveis líquidos estrangeiros, dava adubos sólidos e líquidos para as nossas hortas.
Este assunto é talvez um tanto baixo para ser aqui invocado -mas, a propósito lembra-me a história, já com barbas brancas, dum menino bem, filho de um parisiense que fizera a sua fortuna com a arrematação dos canos de esgoto. Quando o teddy boy censurava o pai, por ter um negócio tão ordinário e malcheiroso, este puxando pela carteira, bem recheada, tirou uma nota das grandes, e passando-a pelo nariz do filho perguntou:
-Cheira-te mal?
                                                                           ...

Mas, paremos com esta digressão a que nos levaram os resíduos da gasolina burrical que o tempo já vai longo - e voltemos à Garage - perdão! - ao Pateo, da Sra. Henriqueta, para recordar uma cena ali passada, ainda no tempo da "Outra Senhora".
Nesses dias, o carneiro com batatas das eleições, não era uma mera figura de retórica, mas um suculento e apetitoso prato, com que os caciques pagavam os votos da sua clientela.
Ora sucedeu que, numa das mais renhidas eleições dos últimos anos da monarquia, o chefe de um dos partidos - já não me lembra se o Progressista se o Regenerador - resolveu oferecer o carneiro com batatas no Páteo da Sra. Henriqueta que, como boa Estação de Serviço, tinha anexo, além de um ferrador, uma casa de pasto. Para que não houvesse roubos nem enganos, mandou imprimir bilhetes de admissão que, escrupulosamente, eram distribuídos pelos eleitores à porta da assembleia de voto.
O Chefe contrário, querendo pregar uma bela partida ao opositor, mandou imprimir cartões exactamente iguais, e disse às suas hostes para estarem na Sra. Henriqueta meia hora antes da marcada. Está-se a ver o que sucedeu à chegada dos legítimos portadores dos bilhetes autênticos: Os contrários tinham acabado com todo o carneiro com batatas!!!
Isto não quer dizer que não tivesse havido comida para todos. Houve, e da boa: Castanha em barda, regada a xarope de marmeleiro.
                                                                              ...
  (Amorim Rosa, Uma volta pelo Bairro das Flores, palestra realizada na Sociedade Nabantina, 
    18-11-1961, Edição do Semanário "O Templário")