[Redacção onde se conta a assombrosa história da assombrada relação de uma miúda de dez anos com a sua especialissima tia-avó portalagense, mais uns apontamentos posteriores que nem interessam nem se percebem mas que a autora não quis cortar porque a redacção já é antiga e ela (a autora) também e tem destas coisas (de velha) de não querer mexer no que já está.]
A tia Conceiçãosinha exercia em mim um fascínio avassalador. Não conseguia deixar de a procurar, de a espreitar. Mas aterrava-me. A tremer, procurava todas as vezes fazer-me encontrada com ela para, logo de seguida, fugir apavorada.
Vi-a, a primeira vez, quando desfolhava o álbum de fotografias de família. Mesmo no fim, preso à contracapa, ocupando-a quase toda, um envelope fechado, grande, azul, de cartolina.
Quando o abri saltaram-me prontamente aos olhos os sapatos de saltos, brancos. Estranhei - era pouco habitual aquele primeiro plano. Vendo melhor, verifiquei tratar-se de uma mulher, de branco, rodeada de flores. Mas os sapatos continuavam a ressaltar, pior, as suas solas viam-se bem demais. A senhora só podia estar deitada! Algo me intuía a ficar pouco tranquila.
Fui perguntar. Resposta – é a tia Conceiçãozinha! E se eu ainda não a conhecia era pelo motivo aparentemente simples de estar morta. Ora, o estado de morta não era inédito naquele álbum, muito poucos dos presentes ainda pertenciam a este mundo. Mas porque estava ela naquela posição? Porquê tanta cerimónia, porquê dentro do envelope azul fechado?
Era o respeito e a saudade filha, a tia Conceiçãosinha estava realmente morta ali, repousada, onde eu a estava a ver. Não era, portanto, como os outros que tinham ido pelo seu pé, ao colo, de burro, sei lá, pelo menos respiravam, quando se tinham posto em frente à câmara fotográfica, julguei perceber eu.
A tia Conceiçãosinha já tinha fa-le-ci-do quando lhe tiraram o retrato!!!!???? E o que estava à minha frente era um ca-dá-ver, vó? – Não se diz assim filha, este é o corpo da tia Conceiçãosinha, coitadinha quando faleceu nunca tinha tirado um retrato, antigamente era assim, e a mãe para ficar com uma recordação mandou tirar-lhe o retrato, o fotógrafo até foi lá a casa. Vês como está linda, vestida de branco, dizem que as feições eram assim mesmo, que está tal e qual ….
O facto de a tia Conceiçãosinha não se ter incomodado a andar em bolandas, depois de morta, a caminho do fotógrafo, o qual tinha feito o favor de se deslocar, coisa a que a minha avó parecia dar tanta importância, não me comoveu. Também não me convenceu a ideia bizarra ditada pela dor da pobre mãe. Mas aquilo que me levou ao estado de completo agastamento foi o de ter de se considerar a tia Conceiçãosinha linda!
Linda, aquela coisa a preto e branco, reparando bem, morta e esticada, de olhos fechados, era aquilo belo em qualquer momento, fosse onde fosse? Mesmo antigamente, mesmo dando o desconto que tudo se passara antigamente, aquilo sítio longínquo justificativo para onde me remetiam e que devia ficar ao lado do “quando fores crescida” quando a explicação não estava ao meu alcance!
E mantive-me irredutível! Aquela tia era feia e tudo o que a rodeava horrível e medonho. Se eu conhecesse a palavra teria dito macabro. Era o que eu sentia perante aquela cena gótica, que transpira funebridade por todos os lados, o vestido, as flores nos cabelos, as mãos postas com o bouquet de noiva entre as mãos, tudo envolto em mesclas de cinzas sombrios! Não deixa a desejar nenhum quadro pré-rafaelita, digo eu agora, pelo contrário, a falta de cor fá-lo ganhar em autenticidade mórbida.
Não posso negar qualidade ao retratista, fosse lá quem fosse, que se dignou, por compaixão ou interesse, pôr-se em viagem com toda a sua parafernália até uma aldeia, tirar um retrato para minorar as mágoas de uma mãe. Conseguira captar de tal modo a atmosfera sepulcral que eu, mal grado a minha bravata ao chamar, alto e bom som, feia à tia, tinha tanto medo dela que nunca mais peguei no álbum da sua morada sem me tremerem as mãos.
Mas tinha uma compulsão em fazê-lo. Sonhava com isso e com a oportunidade de o levar a cabo. A oportunidade residia em estar sol, as janelas bem abertas e eu saber que estava alguém em casa suficientemente distraído para não ver a minha triste figura.
Dadas estas condições a cena passava-se assim: eu entrava na saleta onde estava o álbum, de preferência à hora de entrarem a jorros os raios do sol, de uma das janelas, punha-o no chão no local onde a luz batia no soalho encerado, abria-o na contracapa e olhava para o envelope azul. Levantava-me e ia certificar-me se a avó ou a tia Alice estavam cá em cima (nunca eu abriria o malfadado álbum sozinha em casa) e estariam a coser ou a fazer qualquer outra coisa que as impedisse de me aparecerem de repente. Confirmado isto, abria a porta da rua e deixava-a escancarada. Voltava ao álbum e abria o envelope de mãos frias e garganta seca. Procurava abarcar mais uma vez toda aquela teatralidade funéria, enquanto sustinha a respiração. Aguentava esta visão até o pavor e os pulmões mo permitirem. Quando não podia mais, fechava o envelope, atirava com o álbum para o lugar dele e corria espavorida escada abaixo. Eu sabia que o atropelo causado por este meu ímpeto causaria um – mas o que é que se passa menina, o que é que te deu? que me traria à realidade e me acalmaria sem ninguém adivinhar nunca a causa.
E esta aventura não se repetiu só uma ou duas vezes. A tia Conceiçãosinha esteve muito presente na minha vida enquanto morei naquela casa. Aliás, como era seu direito, pois não era ela responsável pela minha existência?
[A tia Conceiçãosinha, não sendo minha ascendente directa (era minha tia-avó, morrera em 1918 ou 19, vítima da gripe espanhola), contribuiu necessariamente para o meu passeio por este mundo, pois foi por causa do seu luto que o seu irmão, o meu avô, conheceu a minha avó.]
Eu devia-lhe, portanto, a vida. Coisa, ao que parece, bem valiosa, a julgar pela dívida pesada que tive de pagar. O que eu sofri.
Mas depois da infância nunca mais a vi.
Mais tarde, tornámo-nos a encontrar, pela última vez, espero, em circunstâncias que tornaram a tia Conceiçãosinha célebre.
Estava eu na faculdade quando, um dia, entrei apressada numa aula. Tinha-me atrasado a tirar fotografias numa máquina, para entregar na secretaria. Sentada na sala, impunha-se, de imediato, olhar para as fotos, nem as tinha visto devido à pressa. E reparei. Era uma fila de quatro rostos iguais, brancos marmóreos, emoldurados por sombras de várias tonalidades de cores acinzentadas que tornavam a trunfa esguedelhada completamente desagarrada da cabeça, fazendo-a parecer uma coroa. Dei um salto - irra, mas é a tia Conceiçãosinha! Ao silêncio imediato do professor, seguiu-se-lhe o – como minha senhora? (era a Universidade doutras eras, os professores tratavam-nos assim), o meu sorriso amarelo, o burburinho dos colegas.
Mas a imprecação do professor foi o que menos me ralou (interrompido, com razão, na prelecção da sua ciência certa de política económica, a que, infelizmente, não pude dar o devido valor, quando foi ministro, possivelmente dada a minha desatenção àquela aula) pôs-me doente, isso sim, ver-me igual à tia Conceiçãosinha. Fiquei chocada, todo o tremor antigo me reentrou no corpo. E, para o esconjurar, tive que, imediatamente dar conta desse receio ao vizinho do lado. Toda a turma se inteirou, interessada, logo ali. Estou em crer que foi então, por causa da tia Conceiçãosinha, que toda a minha geração perdeu a oportunidade de gerir o país em condições, não fui a única a perder a aula. O que nos valeu foram os outros, os que não tiveram a tia Conceiçãosinha presente nas suas aulas, tomarem conta deste nosso lindo Portugal da forma que sabemos
Pois a partir daí, até ao fim do curso, todo o elemento feminino se dizia ficar uma tia Conceiçãosinha quando se não gostava de ver nas fotografias e pior, o masculino (a grande maioria, sim, que eu ainda pertenço a parte de um século em que a gente vivia rodeada deles por todo o lado) passou a classificar de tia Conceiçãosinha todas as infelizes que não lhes caíam em graça, diziam eles, mas que não passavam de grandessíssimas dores de cotovelo.
Foi na boca deles que a tia Conceiçãosinha, impoluta menina cujo único pecado fora, depois de morta, ter sido dada a conhecer por esta desbocada e desleal sobrinha neta, passou a ser sinónimo de megeras fantasmagóricas que encantavam os pobres rapazes e os deixavam para sempre convertidos em tristes sapos à espera do beijo da próxima. E muitos ainda hoje se encontram nesse estado.
Andam por aí errantes, professores catedráticos de borla e capelo a desfilar nas solenes cerimónias académicas, executivos de camisas de riscas e punhos brancos, mais recentemente, brilhantes comentadores de televisão, que tiveram ao longo das suas arriscadas e voláteis vidas sentimentais muita tia Conceiçãosinha que lhes assombrou o coração e devido às quais, não fugindo a tempo, choraram depois no ombro da seguinte.
É o que dá não se terem precavido a tempo, não se terem colocado debaixo de um protector raio de sol quando olhavam para ela e, depois, fugido a sete pés. (MFM)
Nota final: se a tia Conceiçãosinha fosse bonita e a cores como a "Ophelia", parece-me que a nossa relação não teria sido diferente. A "coisa" continua lá, apesar dos olhos arremelgados e dos nenúfares.