"Nada mais que na primeira página de O Século” de 10.01.1947. Continuo a citar ao acaso: “Ao fundo, canto inferior da última coluna do lado esquerdo, naquelas folhas enormes … a Dulcinda conhecia a dita família Graça, e a respectiva casinha no Paço da Comenda, ... a tal senhora Brasoneira também tinha existência certificada, mas,… não é que (…) era verdade, que o pai comprara a casa por dois tostões nas circunstâncias descritas no jornal! Grande correspondente de O Século que deu a conhecer o exemplo de generosidade que dispensava comentários …” (MFM)
Sim, o editor deu-lhe o destaque merecido de primeira página e logo a primeira coluna da
parte baixa. Agora, os jornais estão dobrados ao meio sobre as bancadas. Naquele tempo
apresentavam-se de corpo inteiro, suspensos por molas de madeira. A parte alta era para
ser lida pelos mais altos, mas o editor colocou a história de H. Mota logo na primeira coluna
da parte para os mais baixos. De facto, “a gente de hoje nem imagina como a gente as lia”.
Aquela história do milagre dos tremoços de dois tostões. Belíssima alegoria daqueles
tempos de tristeza do após grande guerra. Contou-a Henrique Pereira da Mota aos seus
quatro filhos de então, à lareira, naquela noite de passagem do ano. Aguardavam o
nascimento do José António, mais outro filho. Deitadas as crianças, H. Mota passou-a a
escrito, o rascunho a lápis em duas costas de envelopes velhos. Seria enviada depois para o
jornal, revista e reescrita com caneta de aparo, em papel timbrado “H. Mota, consultas da
9h às 12h”.
Mas dois contos, de verdade? Dois contos, verdadeiramente. O de, cito “José da Graça,
trabalhador que vive naquela casinha com a mulher e dez filhos pequenos…. – Ora! Se eu
mal tenho dois tostões para tremoços – que é quanto me ficou da féria!”. Exclamações a
mais? As bastantes. Em Lisboa, os operários ganhavam 17 escudos por dia e, no campo, as
jornas seriam muito menores. Cito de algures “No sul, a maioria dos jornaleiros gastava
70% dos salários de todos os membros da família com a alimentação”. Alimentação
insuficiente.
Naqueles anos de 1947 ainda estariam bem vivos os tempos das senhas de
racionamento que se prolongaram por vários natais após a grande guerra.
Senha de racionamento. |
Na foto, o adulto lê notícias da catástrofe. A criança lê o outro conto, o daquele natal em que os dois irmãos de Lisboa estiveram no Paço da Comenda e, cito, “Então, é tua a casa. Dá cá o meio tostão de sinal e entregarás o resto quando se fizer a escritura. … que dispensa comentários.“ Não, a senhora J. de Jesus não disse toma lá a prenda de natal, mas disse, dá cá o meio tostão - comentou a criança.
Esta história de natal foi contada e escrita na lareira da saleta na noite de passagem
daquele ano, podem crer; que o testemunhem os meus irmãos mais velhos. Eu, por mim,
lembro-me muito bem. Daquelas noites de inverno à lareira, à luz frouxa do candeeiro de
petróleo. Candeeiro de sala, que os de vidro eram para os quartos e para a cozinha.
Chaminés limpas a papel de jornal O Século.
Ou teria sido contada no natal? H. Mota pensaria muito em M. da Graça, muito pobre e
com muitos filhos; mas a casa H. Mota não era muito rica; era bem governada, com muito,
muito trabalho. Mais um filho, pensaria. E mais outro e mais outro, haveria de pensar três
vezes mais. Cito de algures “entre 1941 e 46 … o custo de vida aumentou de forma
exponencial. Por exemplo, entre 1943 e 1944, o quilo do arroz e das batatas aumentaram,
respectivamente, de 3$50 para 4$80 e de 1$20 para 2$40, o peixe, de 10 para 20$00, a
manteiga de 4$20 para 9$20, o açúcar de 3$60 para 4$20 e um par de sapatos de 180$00
para 300$00. Os meus pais comiam pão escuro, que o de primeira era para as crianças.
Cito “A notícia acima esteve quase, quase, a não o ser. Aqui no blog, evidentemente”. De
verdade? Perdida depois de descoberta? [...] Eu gostei muito e estou grato.
Finalizo com a estatística: dois contos, dois tostões, dois casas de duas famílias, uma muito pobre a outra remediada, dois irmãos, dois José António, duas personagens, da Graça ele, de Jesus, ela."
Finalizo com a estatística: dois contos, dois tostões, dois casas de duas famílias, uma muito pobre a outra remediada, dois irmãos, dois José António, duas personagens, da Graça ele, de Jesus, ela."