A Menina Maria do Céu
Esta água foi nascer/Naquela encosta do monte/Para vir dar de beber/A quem passar pela fonte
Não tinha sido pacifica a minha
entrada naquela escola rural, de meninas de bata branca onde se cantava o hino
de Portugal, que eu só conhecia de o ver escrito, e se rezava uma oração ao
início da manhã.
Mulher adormecida-P.Picasso 1932 |
E durante todo o ano, todos os dias.
Para além da surpresa dos primeiros dias também para mim aquela rotina se tornou banal. (1)
A Carolina sabia tudo: os pronomes, relativos, substantivos, conjunções, a, ante… dividia e classificava as orações, conjugava os verbos ser e haver, fazia contas, de dividir com quatro e cinco algarismos, problemas onde a água entrava a correr de uma torneira e saía a fugir de um cano e a gente tinha de descobrir aquela que lá ficava, sabia-se lá para quê. Conhecia os reis, as terras, continentes, ilhas que aquela gente há séculos tinha descoberto, por datas e circunstâncias. E ainda lhe sobrava tempo para saltar a corda e tomar conta da irmã. E com tanto empenho e inteligência a Carolina ficou por ali. Não prosseguiu os estudos, como todas as outras, aliás, porque era esse o seu lugar no arranjo daquelas vidas naqueles tempos.
E na injustiça daqueles amanhos,
eu, a privilegiada, que não seria obrigada a trabalhar quando acabasse aquela
escola, aos dez anos, no campo, em casa, em casas alheias, pagava o preço da
minha superioridade, com a interdição de gozar da companhia delas.
Apenas uma, a Isabel, dos Vales, mais minha vizinha que as outras, pois em dias de lamaçal em que a estrada estava intransitável, atravessávamos a aldeia juntas e ela acompanhava-me até à pequena ponte (quando a ribeira ia cheia e tormentosa, quase a rasar a ponte, divertíamo-nos irresponsavelmente a fazer corridas em cima dela – um corredor de tábuas soltas, onde mal cabia um adulto e sem qualquer guarda lateral!), entrara algumas vezes do portão para dentro e fora-lhe permitido brincar comigo, com as minhas bonecas!
Mas ainda havia castas mais
inferiores! Uma pequenita da minha sala, talvez da 1.ª classe, surgia todos os
dias de manhã, lá do fundo da estrada onde não me parecia que morasse alguém e
ficava parada em frente ao portão. Eu percebi e corri ao seu encontro.
Arranjara companhia para ir para a escola! A alegria durou pouco. Era uma
“maloia”, parecia que com aquela nem andar na rua se podia! A pobre foi mandada
seguir logo na vez seguinte, com o pretexto que eu estava atrasada e iria
depois.
Mas não foi nada que não se
remediasse. Como era crédula a minha avó, imaginando que as suas palavras tinham algum efeito! Depois de a ver passar em frente ao portão, eu corria e
alcançava-a. Íamos as duas a galgar os muros que bordejavam a estrada, sem
dizer palavra, que tinha eu para conversar com uma miúda de seis anos?
Bastava-nos a companhia uma da outra, que quebrava as nossas duas solidões vindas de
ostracismos que nos eram alheios, e a mim, particularmente, saber que estava a
desobedecer. Ai, como era bom!
A Teresa era minha colega na 4.ª classe. Era morena de olhos escuros e cabelo liso pouco farto e escorrido. Tudo o que eu desejaria para mim. A minha pele branca onde todos os dias despontava nova sarda, que encarniçava e enrugava a todo o momento devido ao sol, os olhos que eram obrigados a estar quase sempre semi-serrados por causa da luz, a minha trunfa selvagem que se magoava cada vez que o pente lhe entrava e obrigava a uma parafernália de ganchos e fitas para a domesticar, tudo isso, a pele, os olhos e o cabelo, me causavam tal incómodo e trabalho que me faziam cobiçar os da Teresa.
Mas o que eu invejava sobretudo na Teresa eram coisas que eu até poderia ter mas que me estavam interditas: os socos pretos de florezinhas e andar de burro.
Lembro-me dela, pequena e magrinha, sentada de lado encima do seu burro, com os pés a dar a dar enfiados nos tamancos onde ressaltavam em cada um, em fundo preto, dois ou três ramos verdes donde rebentavam as respectivas florinhas numa paleta que ia do branco ao vermelho passando pelo amarelo e azul. Como eram bonitos os socos da Teresa. E como deveria ser bom ir, como ela, ao fim da tarde, desde o Paço até à fábrica, no burro equipado com seirões com pequenos barris lá dentro, buscar destilado para os porcos. Que vida aventurosa a da Teresa!
Que eu tinha
sorte em ter sapatos para calçar e de não ter de trabalhar (afinal a Teresa
preferiria andar com os pés quentinhos – eu não pensara nisso, que os socos não
aqueciam - e aquilo que para mim seria uma aventura era para ela, talvez, uma
triste obrigação) compreendi. Mas o não conhecer o meu lugar foi sempre o
grande ponto de divergência com a minha avó enquanto vivi com ela.
Eu só soube o
que eram preconceitos e descriminação (termos actuais) naquela aldeia nos
finais dos anos sessenta. Antes, e depois também, honra seja feita aos meus
pais, eu convivera com toda a sorte de gente, de tal forma que, mesmo na
diferença de cor, como já disse, eu achava que quem estava em desvantagem era
eu.
Naquele microcosmos, lugar onde mais ouvi: aos olhos de Deus somos todos iguais… respeitava-se o concerto social do tempo vigente, a bem do qual, visando manter a paz e a ordem estabelecida, se educavam as criancinhas desde pequeninas para que o reproduzissem para sempre. Conseguiram?(MFM)
O rapaz no burro - Fyodor Bronnikov (1827–1902) |
OS REIS MAGOS
Muitos lamentam que a essência do Natal se tenha perdido. Carpem o Natal Cristão pois, dizem, o outro esqueceu Jesus. Mas o Natal "profano", o que comemoramos nos nossos dias, sem fé nem rito, se calhar, bem vistas as coisas até nem é mau, é mais verdadeiro, mais natural. Como aquelas coisas de que fazemos uso diariamente sem nos lembrarmos da sua origem. A água, a luz, o gás, a TV, a internet, entram-nos pela casa dentro sem que a gente se preocupe em saber como lá chega ou quem fez o quê, num tempo qualquer, para que tal fosse possível. Assim nós, uma vez por ano, sem já saber porquê, corremos afogueados a lembrarmo-nos dos outros, a comprar-lhes coisas, a juntarmo-nos a eles! E sofremos quando o não fazemos, quando não podemos por qualquer circunstância ou mesmo, até, quando não queremos. Sabem aquelas pessoas que não gostam do Natal? Nunca vi ninguém dizer com desapego que não gosta do Natal. É sempre com desagrado, com raiva mesmo. O Natal é para nós, ocidentais que crescemos neste caldo cristão que rejeitamos, algo que ultrapassa o nosso entendimento, mas que não discutimos e, muito menos, recusamos deixar cair em desuso como nos habituámos a fazer com o que é velho. E persistimos com todo o entusiasmo a comemorá-lo, cada vez com mais veemência, com o formato e a maneira dos nossos tempos, como outros, antes de nós, o fizeram à maneira deles. Porque sé ele nos permite, por um dia, mostrar o ser gregário que somos e sentir em relação ao outro o mandamento novo de dois mil anos, o ferrete que nos marcou à nascença – o amor.
Desejo-vos a todos um Bom Natal, na companhia de um pintor/ilustrador do sec.XX que retratou como ninguém (com cor, fantasia, harmonia, humor e optimismo, o que levou a que não fosse levado muito a sério) o quotidiano da América do seu tempo, e nos mostra aqui o Natal como nós ainda o vivemos: com a alegria da preparação da partida/chegada para as Festas (na ilustração, não obstante se tratar de tempo de guerra) e do contentamento exultante do reencontro, cuja expressão máxima é o rosto feliz de uma criança. (MFM)
Ilustração de Norman Rockwell (1894-1978) retirada daqui |
Desenho de J.A. |
Ao fundo [ da ladeira que conduz à cidade] está a oficina do Ferrador Zé Paulo para onde entram por um largo portão e vão prender o animal, mesmo atrelado, a uma estaca ao fundo do pátio.
A oficina do Ferrador ficava num amplo pátio onde se abrigavam (acoitavam) as carroças, as galeras e as charretes de quem vinha a Tomar: era uma espécie de caravanserai, estrategicamente situada à entrada da cidade, ao fundo da “estrada de Paialvo” que a ligava à Estrada Real de Lisboa a Coimbra em Porto da Lage e de lá seguia para Leiria.
Nesse pátio caravanserai havia uma “estação de serviço” onde um ferrador – Zé Paulo – cuidava das alimárias enquanto esperavam.
E, provavelmente uma hospedaria para quem podia; os outros poderiam ficar no albergue vizinho, fantasio.
Pelo mesmo portão se entrava para casa da família Coito, da nossa tia Mª José casada com o tio João (dos Olivais), de que recordo uma longa varanda (da antiga hospedaria?) virada a poente como a da tia Anita em Porto da Lage. Era ali que eu procurava boleia para casa aos sábados à tarde. Recordo a forja, o barulho da bigorna, dos cravos na ferradura, das patadas no chão térreo e, sobretudo, do cheiro dos cascos queimados. HCM
Eu sou o Dezembro-
Engordo o meu porco
E como torresmos,
Regalo o meu corpo
Dezembro ou seca as fontes ou levanta as pontes
Em Dezembro ande o frio por onde andar, pelo Natal há-de chegar.
Homenagem de uma "urbana com memória rural", republicana que votou PPM. Que tenha, finalmente, encontrado a sua cidade. (MFM)
Eu sou o Novembro,
O mês dos Santinhos.
Em que os lavradores
Provam os seus vinhos.
Hoje, dia 2 de Novembro, que a liturgia católica dedica aos fiéis defuntos, lembro-vos as exéquias de um notável portodalagense da sua época. Figura esquecida no tempo, tal como o serão aquelas que o acompanharam na sua última viagem, quando os que ainda as recordam já cá não estiveram e tal como o seremos nós, um dia, quando o pó da lembrança desaparecer de vez com a partida dos nossos contemporâneos. Para todos, os que eu conheci e os outros que, num tempo passado qualquer, contracenaram as suas vidas no palco de Porto da Lage (as pedras são maiores que nós), vai a minha homenagem e o desejo de eterno descanso, onde quer que estejam (MFM)
Numa noite de Outono de há perto de cem anos, um lúgubre mas imponente cortejo deixava Tomar em direção a Porto da Lage. Tratava-se do grandioso acompanhamento fúnebre do cadáver encerrado num rico caixão daquele que em vida se chamara João dos Santos Faustino.
O falecido, comerciante benquisto e muito conhecido, que fora dotado de invulgares qualidades sendo, por assim dizer o procurador de toda a gente que precisava de serviços na Estação de Paialvo e a quem muita gente devia favores, teve funeral condizente com o estatuto e amizade que todos aqueles predicados tinham granjeado em vida.
Nesta conformidade, priores de várias freguesias, representantes de diversas forças vivas, desde a Confraria do Smo. Sacramento, passando pela Banda dos Carrascos até um dr. e um engenheiro naval, mais muitas senhoras e muitíssimos cavalheiros, o acompanharam, no dia seguinte, desde Porto da Lage até à sua última morada, em Cem Soldos.
O sr. João dos Santos Faustino seria o mesmo Faustino dos Santos (ou um filho seu?), que vinte anos antes, comprara uma casa a João Maria de Sousa, para que este nela instale uma taberna, permanecendo os antigos donos ainda com o pátio mas comprometendo-se a não o utilizar de forma a fazer concorrência ao negócio. Esta taberna, por transmissão direta entre herdeiros, seria aquela que as últimas gerações ainda conheceram como "a do José Jaime".(MFM)
Eu sou Outubro,
O mês dos Outonos.
Engrosso as terras
Proveito dos donos
Eu sou Setembro
Que tudo recolho
Trigos e milhos
Palhas e restolhos
Em Setembro, ardem os montes e secam as fontes.
Dias depois da publicação da trágica notícia, sai
no mesmo jornal uma pungente crónica em que o autor (que não necessita
apresentação) nos testemunha a eclosão do inferno vermelho naquela que, tudo fazia prever, seria mais uma noite calma de
aldeia, e nos
transporta ao horror arrepiante vivido pelas vítimas e a todos os
outros funestos incidentes do incêndio.
Espero que consigam ler apesar da má imagem que se
deve, segundo me explicaram, à defesa da saúde pública. Não percebi de que
forma, mas como aquela começa a ser a justificação para quase tudo nos
tempos que correm, e, à semelhança da fé noutros tempos e do futebol hoje
(segundo me dizem), qualquer dúvida sobre o assunto é vilipêndio, calei-me (a
velhice faz-nos aprender tudo!) MFM
Jornal "Cidade de Tmar", 29.05.1948 |
Fátima 13.10.1948 |