Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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12 de janeiro de 2013

Por falar em Paciência



Ex.mo sr. Presidente da
Junta de Freguesia da Madalena


 




 


Serve a presente para manifestar junto de V.Exa o gosto de tive em ver V.Exa,  lamentavelmente apenas deste modo, e apresentar-lhe os meus cordiais e muito sinceros cumprimentos.
Não tenho o prazer de conhecer pessoalmente V.Exa , penitencio-me por nem o nome de V.Exa conhecer, bem como, igualmente, desconhecer a obra que V.Exa , estou certa, leva a cabo, com todo o empenho, na edilidade que os eleitores, muito sabiamente, confiaram à superior direcção de V.Exa.

Estará V.Exa estranhando que eu, desconhecendo-o embora, tenha começado por afirmar o gosto que tive em vê-lo. Pois reitero o prazer que senti, não só em ver, mas, mais do que isso, em ouvir V.Exa.

V.Exa, surpreendentemente, declarou, hélas, num arrebatador minuto, em palavras entendíveis, sãs, escorreitas e, inesperadamente portuguesas (o som não lhe fez justiça mas eu percebi), tudo o que era preciso ser dito. V.Exa é extraordinário!

Bem haja V.Exa não só porque diz o necessário mas também pela seriedade patenteada.

Deslumbrou-se Vexa pelo microfone? Não deslumbrou. Imitou o sr. Presidente da Câmara com palavras irrepetíveis por qualquer ser pensante? Não imitou. Tem V.Exa aspirações a maiores voos políticos? Não tem.
Atrevo-me a responder por V.Exa por estar certa de não estar longe do pensamento de V.Exa . Quisesse V.Exa outro futuro e outro comportamento seria o de V.Exa , mestres e exemplos não escasseiam.


Imploro a compreensão de V.Exa para a feição desusada do estilo desta missiva, mas saberá V.Exa que se apossa de mim, em certas ocasiões, um espírito (de contradição), contra o qual luto ingloriamente desde tenra idade, que me obriga sempre, sempre, a correr contra a corrente. No caso presente, a correnteza leviana da moda das palavras,  que me faz preferir a gongorice rebuscada (que sempre dá uso ao dicionário) ao resmungo (não digo rosnar por respeito a V.Exa ) afectado, soluçante, palavroso mas de léxico pobrissimo e repetitivo, muito popular na linguagem de hoje em dia, sobretudo entre  os colegas de V.Exa (refiro-me aos do governo e de outros poderes desta desditosa pátria, não aos da honrada profissão que V.Exa exercerá e que ignoro qual seja).

Patenteio junto de V.Exa a minha gratidão pela benevolência demonstrada por V.Exa, ao dignar-se ler estas pobres linhas nas quais exorbito destacando este meu malfadado feitio no qual O Senhor, na sua infinita misericórdia, permitiu que o inimigo exercesse o seu demoníaco império, pois já minha querida avó, outrora freguesa da distinta autarquia de V.Exa, me augurava que, se um dia eu caísse  à ribeira, haveria de ir  por ela “acima".

Termino reiterando os meus cumprimentos a V.Exa, almejando que  V.Exa consiga todos os sucessos pessoais e políticos, para o último dos quais, com muito pesar, ao contrário do que seria o meu desejo, não poderei contribuir com o meu voto. Porém, fique V.Exa ciente, que não terá consigo, espiritualmente, mais entusiasta eleitora.



Uma admiradora incondicional






 
Fotografia da Radio Hertz
                http://blip.tv/tv_show/tomar-porto-da-lage-já-conta-com-a-farmácia-ideal-6184662


                                                                                              


10 de janeiro de 2013

Marco da Paciência



Marco da Paciência




Em Porto da Lage chamam-lhe Marco da Paciência. Contam os portalegenses que era usado quando "não tinhamos nada que fazer".



Foto
O Marco Quilométrico da Rua Silva Bueno está em processo de tombamento.


Em outras partes, marcos destes são tombados. O de Porto da Lage estará "tombado" um dia, quando, literalmente, cair para o lado, for removido para parte incerta ou mesmo destruído porque marcos há muitos, sua palerma ....


6 de janeiro de 2013

A Tigela de romã


Era uma casa feia, cinzenta, de dois pisos, com uma porta ao meio e duas janelas de cada lado*. Não me lembro como fui lá parar, sei que fui sozinha e que entrei. Da porta da rua para dentro, na porta do lado direito do patamar, era ali, tinham-me ensinado. Terei batido à porta, haveria campainha? Sei que ma abriram, sem surpresas, me mandaram sentar numa cadeira da sala de jantar e ali fiquei, de pernas a bambar, em frente à mesa, a reparar nos dois aparadores de cor castanha reluzente com vidrinhos, donde transpareciam chávenas com passarinhos e copos azulados. A mãe da Clarisse entrou, vinda da porta da esquerda, com uma grande tigela, também com passarinhos, assente nas duas mãos aconchegadas, cheia de uma matéria translúcida encarnada, atravessada por uma colher. Pôs-ma à frente, sobre a mesa. Eu olhava para aquilo e a Clarisse perguntava - não gostas de romã?

Eu não sabia o que era uma romã, nunca tinha ouvido falar em romã, era aquilo uma romã? Gotas de vidro rosadas cobertas de açúcar? Pelos vistos era de comer, peguei na colher cheia daquelas partículas e levei-a à boca.

À hora da minha morte, se comer romã, e hei-de comer se tiver pelo menos um amigo e partir no Outono como espero, a ultima colherada há-de saber-me aquela primeira da minha vida que comi em casa da professora Clarisse. Hei-de sentir as pequenas sementes a desfazerem-se entre a língua e o céu-da-boca enquanto o sumo (o molho, como mentalmente lhe chamei então), me há-de deixar toda lambuzada e cheia de prazer por ter degustado a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas aí já saberei o que hei-de fazer às sementes chupadas, e não as empurro, hesitante, de um lado para o outro dentro das bochechas. Pois a Clarisse já não irá estar lá para me dizer - se não quiseres engolir, podes deitar fora. Ai era para engolir? E toda a vida engoli as sementes das romãs. E em Outubro, pela feira, começava a comer romãs até as haver na romãzeira da horta ou alguém as oferecer lá para casa.

Agora compro-as, espanholas, às vezes durante o Outono, mas compro, sempre, sempre, no DIA DE REIS. Parece que garante dinheiro para todo o ano comer romã neste dia. São espanholas, também, estas que garantem o dinheiro.

Aquela primeira, da casa da Clarisse, asseverou-me não o dinheiro, mas o amor para toda a vida da fruta mais saborosa do mundo, a mais bela de todas.

A  Clarisse ou a mãe, uma delas, apontou para cima do aparador onde repousava por cima do naperon de renda, um prato de vidro amarelo com cinco criaturas lindas, bojudas, de coroa, coloridas na sua paleta entre o verde amarelado e o vermelhão, e eu ouvi que tinham sido duas iguais aquelas, cheias de vida antes de serem sacrificadas, que, depois de esventradas, se tinham tornado o objecto da minha gula.

E saímos daquela casa cinzenta, feia, a Clarisse e eu depois da romã comida. Era Outubro e o céu estava pequeno, ouvia-se o toque da passagem de nível fechada, quase ao lado da casa feia, depois a passagem afogueada do comboio enquanto continuávamos a nossa caminhada pelo meio da aldeia.

Os meus sentidos parece que ainda experimentam aquele primeiro dia do primeiro Outono da minha vida: a tarde quente, o embrulho dos cheiros das últimas uvas com o dos figos destilados e dos abrasadores carris de ferro; mas, mais do que tudo, o supremo deleite da primeira romã. (M.F.M)

*Já não existem estas casas, filas cinzentas, de dois pisos, onde se alojavam as famílias dos ferroviários. A REFER demoliu-as para alargar o cais, que se exibe ostensiva e desnecessariamente grande, e um parque de estacionamento. Ficavam à esquerda, na imagem