Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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14 de março de 2013

Lances de Fé I

Papa Francisco I
Ontem coloquei  aqui um post sobre o meu avô, exemplo de crente que subordinou toda a sua vida, silenciosamente, ao amor a Deus e à Sua vontade, em contraponto com aqueles que querem fazer da sua religião  o centro do esplendor, do poder e do mediatismo. E não me refiro só à Igreja (aquela estrutura cem por cento humana que sobrevive há 2000 anos, no meio dos maiores martírios infligidos a si e por si, hoje personificada pelo Vaticano) e que está agora a viver o protagonismo máximo com a eleição do novo papa, refiro-me também aos seus detractores, principalmente aos que vivem no seu seio. A agressividade e o ressentimento com que oiço falar alguns católicos exigindo “mudanças” e “aproximação aos novos tempos” como se se tratasse de uma sociedade recreativa, clube desportivo ou de um partido político em risco de perder associados, perturba-me. Esta mundanização de que a Igreja Católica é alvo em que o que parece ser importante é torná-la “moderna e arejada” é, ou me engano muito, a razão que leva ao tal afastamento das pessoas. No mundo ocidental onde, Deus seja louvado, a Igreja já não goza de qualquer poder secular, quem se aproxima dela procura espiritualidade e encontro com algo superior, não reivindicações sociais. Para isso existem outros fóruns. É claro que não estou a falar da dimensão social da igreja, isso são outros contos.
Por isso, ontem à noite, fiquei muito impressionada com a actuação do novo papa. Não foi um estadista nem um sumo pontífice que se apresentou à varanda da Praça usando palavras grandiloquentes de ocasião, foi um homem que rezou e pediu para rezarem por ele. O Pai Nosso brotou então de milhares de bocas, acredito com a fé verdadeira com que Jesus o ensinou e milhões o repetem e repetiram ao longo dos séculos por toda a Terra. Esta dimensão de espiritualidade e encontro com Deus fez-me lembrar o meu avô. Talvez seja bom sinal.(MFM)

13 de março de 2013

Lances de Fé


Em época em que o Catolicismo anda nas bocas do mundo pelas razões mundanas que o poder e o pecado obrigam, achei que seria bom esquecermo-nos das entronizações de chefes (mesmo da igreja) e dos  desvarios humanos dos candidatos a estes (e outros) cargos e lembrarmo-nos daquele pó seco e denso que, dizem, move montanhas e, digo eu, mantém felizes e pacificados os seres que venturosamente o aspiram - A Fé!

Eu tive a graça de conhecer um deles - o meu avô João. Cristão por dentro e por fora. Nunca vi ninguém rezar tanto mas também nunca vi ninguém procurar imitar tão esforçadamente aquilo que o seu Salvador ensinara como ele.
Praticou a liturgia e as obras que a sua fé recomendavam com a discrição e a modéstia com que passou por esta vida. Não fazia alardes das penitências e  sacrifícios efectuados no cumprimento dos ritos da sua religião, que outros costumam fazer objecto de vaidades e destaques, da mesma forma que  não divulgava os actos, produto da sua rectidão de consciência e sã moral, que ele justificava como a vontade do Senhor.

Ao longo de quase sessenta anos redigiu, diariamente, o resumo das suas tarefas e as ocorrências familiares. O relato começava invariavelmente por Eu, seguia-se o nome de um ou mais trabalhadores que tinham estado consigo na lide diária, vinha depois a descrição do que tinham feito.

No dia 12 de Setembro de 1959 (faltava uma semana para completar 67 anos), um sábado, trabalhou todo o dia acompanhado da empregada Celeste, que terá lavado roupa de tarde e apanhado os tomates que estavam a apodrecer, enquanto ele despontava o milho para o gado e tratava do mesmo. Ao fim do dia foi ao barbeiro e passava meia hora da meia noite quando se pôs a caminho.
Após quase seis horas da caminhada solitária entrou na igreja de Fátima, rezou, "toda a noute se lá rezou", e confessou-se.  Às oito horas assistiu à missa, em que comungou.
Despediu-se de Fátima, depois de participar na "missa dos doentes", pelas duas horas da tarde. Não refez a pé, totalmente, o regresso a casa, porque o filho o surpreendeu saindo-lhe ao caminho, de carro. "Chegámos aqui pelas cinco horas muito bom". Assim termina este homem simples a exposição deste lance de fé. (MFM)




11 de março de 2013

Mata-Borrão ou Os Bons Ares de Uma Estância de Repouso








O Blog Meu Vidago  (extraordinário de informação e beleza, que recomendo vivamente) diz-nos isto acerca  do Mata-Borrão "apareceu para acompanhar os aparos, tintas e canetas de tinta permanente. Estava assim directamente ligado à escrita. Servia para "chupar" a tinta que ficava no papel e deixou de ser utilizado quando apareceu as esferográficas nas escolas e nos escritórios. Eram conhecidos dois modelos diferentes, mata-borrão de duas faces iguais e os publicitários numa das faces ..."

Aquele, que a imagem mostra, é um dos publicitários, que publicita exactamente Alcool Puro e Desnaturado de Dupla Rectificação fabricado na Fábrica de Porto da Lage, em 1939.

Atente-se ao número de telefone (o 74 !), ao único dia a vermelho, Domingo, e aos seis (seis!) dias úteis da semana! (oh tempos antigos cada vez a aproximarem-se mais das nossas vidas de hoje!), mas atente-se, sobretudo, à deliciosa descrição de PL na coluna da direita! À excelência  do texto (seria um portalagense a escrevê-lo?) alia-se a maravilha do conteúdo informativo! Dá vontade de lá ter vivido naqueles tempos! - ligado à rede telefónica e o correio levado ao domicílio duas vezes por dia! Uma estação de caminho de ferro no seu seio! Que bela imagem de progresso e conforto! O que se podia querer mais? Nem os bons ares lhe faltavam para, quem sabe, ser uma nova Vidago à beira da Beselga?



9 de março de 2013

Meu Senhor, tende piedade

Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde

O Grito, Edvard Munch, 1893
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.
...

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!



Desespero da Piedade
Vinicius de Morais



6 de março de 2013

Festa com Baile (mandado) em Assentis -1959


Assentis é assim  uma espécie de  avô de Porto da Lage , pelas causas que o link atrás explica e também por outras razões históricas e culturais. Ainda PL seria apenas um moinho e já Assentis  era uma localidade muto populosa e antiga, como vimos nas respectivas Memórias Paroquiais. Já mais recentemente (quer dizer, perto de cem anos) as crianças de PL iam a Assentis aprender a ler.Temos, portanto, além da geografia, mais bem dito, por causa dela, um passado comum. E Assentis sabe, na sua qualidade de avô, muita história e muita tradição. É o que a gente pode aprender em assentis.org, um site se calhar conhecido de muitos mas de que eu tomei conhecimento não há muito tempo. Recomendo-o a quem não o conheça e felicito vivamente o responsável. Pela iniciativa, naturalmente, e pela capacidade agregadora. Consegue colher contributos dos seus conterrâneos e engrandecer assim o espólio de memórias da sua terra. É verdade que também recebe críticas ..  pois...tudo tem o seu preço! Eu, como até agora só recebi elogios ... adiante!

Uma rubrica fantástica do site  é a das crónicas. Vale a pena lê-las. E já agora roubá-las. Não é bonito mas a causa é nobre! (palavra que diligenciei pedir autorização ao dono mas não consegui). E depois ninguém  tira nada do sitio, basta clicar em  http://www.assentis.org/cronicas/index.php? -escolher uma festa e um Padre...(por exemplo) e, talvez, alguns dos que lêm, possam recordar eventos passados. É provável que os ecos do acontecido tenham chegado a Porto da Lage e até  que alguns dos locais se tenham deslocado a Assentis nas tais excursões, para pisar a terra sitiada. (MFM)
.

4 de março de 2013

Hermenegildo

                                                                   
Numa noite de Verão do final dos anos quarenta do século passado,Hermenegildo Narciso saía de casa da irmã Luciana. Céu de trevas, nem um pirilampo no ar sem brisa. Mas dali até sua casa, no Paço, onde o esperavam já ceados a mulher e os filhos, com certeza não teriam esperado por ele como recomendara, era um salto. Luciana quisera acompanhá-lo com a lanterna, insistira até, pelo menos até à ponte, deixa lá! Mas ele não permitira, era o que faltava, conhecia de cor aquela meia dúzia de passos entre a casa e a ribeira, não aprendera ele ali a andar, brincara e se fizera homem? Até troçara - olha lá se a cheia me leva! E dera uma gargalhada a lembrar-se do fio de água que, nos últimos dias, mal dava para as crianças chapinharem. A irmã ia jurar que ainda o ouvia rir quando o baque surdo na escuridão prenunciou o silêncio seguinte. Silêncio logo cortado, ao ínicio pelo seu chamar ansioso, depois pelos gritos aflitos. Mas não houve resposta. Hermenegildo, por uma vez, a única, não acertara na ponte de olhos fechados. Falhara por um pé, caíra e batera com a cabeça numa das pedras onde, pelas tardes, as mulheres torciam a roupa enxaguada nas águas transparentes da ribeira. Morreu em frente à casa onde nascera.


Nota: Contaram-me a história como "um acidente"com nomes, local, noite escura, data aproximada. Não conheço, nem me lembro de ter conhecido nenhum dos personagens (verídicos) sobreviventes, não sei antecedentes nem de factos posteriores. Mas tocou-me esta tragédia, mansa, silenciosa e anónima, que não derivou de pavorosas borrascas humanas nem de invencíveis calamidades naturais e que, no entanto, resulta tão terrivelmente "trágica". Que deuses foram impotentes para impedir este sacríficio, que destino nefasto fora traçado à hora que a mãe deu à luz o pequeno Hermenegildo, à beira da ribeira da Beselga? (MFM)

21 de fevereiro de 2013

Quem é quem?

A São Escudeiro (que não tenho o prazer de conhecer mas a quem deixo mil agradecimentos) fez-nos chegar esta bela foto da bela juventude feminina de Porto da Lage, nos idos anos vinte. Ela sabe que uma delas é sua familiar mas  não sabe qual. Alguém dá uma ajuda? Alguém tem lá por casa fotografias com alguma destas meninas? Alguém tira alguma "pela pinta"?


14 de fevereiro de 2013

Em Portugal também é crime pôr os pés no chão?

 


                                Expedição Portuguesa comparecendo perante o rei do Congo © National Maritime Museum


Li a seguinte citação que José Adelino Maltez faz do rei do Congo, a propósito das obrigações legais que nos aguardam (controlarmo-nos uns aos outros e tornarmo-nos verdadeiras lixeiras particulares) e, muito modestamente, lembrei-me do que já foi dito neste blog sobre Ordenações, neste caso Filipinas :
No século XV, o rei do Congo, depois de ouvir a leitura que lhe fizeram do livro V das Ordenações, voltou-se para o nosso enviado e questionou: "ouve lá, em Portugal também é crime pôr os pés no chão?"

             

12 de fevereiro de 2013

3 de fevereiro de 2013

Porto da Lage - 150 anos






Por volta de 1863 decorriam os trabalhos de construção da chamada linha do Norte. Para além das alusões já descritas neste blog, retiradas das actas da CMT, nada encontrei sobre os trabalhos de implantação da linha férrea na Quinta do Porto da lage que há 150 anos devem ter transtornado as vidas dos habitantes do Paço, Vales e Paialvo, lugares então mais próximos, e de todos aqueles que trabalhavam os campos em redor.
O primeiro comboio  entre Santa Apolónia e Gaia viria a circular em 1864 (em 7 de Junho deste ano fica oficialmente completa a linha do Norte), faz para o ano 150 anos. Significa isto que em 2014 Porto da Lage celebra 150 anos da sua estação, o mesmo será dizer do seu nascimento como localidade. Talvez o lembrete desta data interesse. Cá fica.
A Gazeta dos Caminhos de Ferro na sua edição de 1956, edição comemorativa do centenário dos caminhos de ferro portugueses, para além de nos dar a conhecer o processo político, administrativo e até financeiro da construção daquela Linha dá-nos também  uma visão extraordinária das vicissitudes físicas e humanas que toda aquela obra arrastou consigo. Vale a pena ler o artigo todo, mesmo aqueles que, como eu, não são propriamente apaixonados pelos comboios (excepto para viajar neles) e a quem resulta "chinês"  toda a alusão pura e dura à técnica quer da máquina quer da geologia. E vale a pena mesmo, chegar ao fim, para concluir que a fiscalização funcionava, que o governo se empenhava e a obra  terminou quatro anos antes do previsto, apesar dos contratempos apresentadas, o que era motivo de orgulho e levou um director da Companhia Real a afirmar: «Pode dizer-se, sem receio de desmentido, que nunca em Portugal houve tanta actividade na execução dos trabalhos públicos». Mal sabia ele o que aconteceria mais de cem anos depois!
Porém, para quem só quiser saber o que se passou no percurso da linha próximo de Porto da Lage as pags  414 e 415 da  Gazeta dos Caminhos de Ferro da presente edição, descrevem-no. De realçar o papel que operários irlandeses e italianos tiveram na construção dos túneis e a alegria popular e os brindes burgueses sempre presentes, mesmo em sitios onde só "reinam pedras".
 De qualquer forma, segue um pequeno extracto daquele artigo da Gazeta, intitulado "No centenário dos Caminhos de Ferro" assinado pelo Eng. Frederico de Quadros Abragão:



















 






1 de fevereiro de 2013

Porto da Lage no Dicionário Postal e Chronographico do Reino de Portugal


Dicionário Postal e Chronographico do Reino de Portugal, coordenado por João Baptista da Silva Lopes -Administrador dos Correios e Telegraphos de Lisboa, publicado pela imprensa Nacional em 1894.






31 de janeiro de 2013

Memórias paroquiais de Assentiz e Cem Soldos

....Continuação ....
Não pretendendo que esta seja a transcrição exacta em ortografia actual, das memórias, agradecendo a quem me ajudou a fazê-lo e assumindo toda a responsabilidade pelos erros, aqui vai:

Assentiz

«Esta Freguesia de Assentis está na província da Estremadura e do Patriarcado de Lisboa comarca de Santarém termo da vila de Torres Novas e sujeita as suas justiças e do ducado de Aveiro que dizem é ao presente o excelentíssimo marquês de Gouveia, tem esta freguesia duzentos e setenta e quatro vizinhos e oitocentas e noventa e sete pessoas, a paróquia está situada em um vale junto da serra de Aire fora do povoado, a igreja é de uma só nave tem sua capela mor com sua tribuna de talha sobre o trono da qual está a titular desta igreja, que é Nossa Senhora da Purificação, estão mais no dito trono o Menino Deus e São José que tem duas irmandades, tem mais a dita tribuna duas peanhas, em que estão Santa Luzia e Santa Margarida, tem mais esta Igreja quatro altares, dois colaterais e duas capelas, o colateral da parte do Evangelho é do Espírito Santo, tem sua irmandade de enterro [?] da parte dos Outeiros e tem seu Capelão que diz missa todos os domingos e dias santos pelos irmãos da dita irmandade, estão mais no dito altar São Miguel, e São Sebastião está da mesma parte duma capela da Nossa Senhora do Rosário junta com a irmandade das almas que tem seu capelão que diz missa pelas almas todos os domingos e dias santos. O colateral da parte da epistola é de Santo António que tem seus confrades, e são mais no dito altar São Braz, e São Francisco está do mesmo passe [?] Numa capela de Nossa Senhora da Graça que é da Irmandade de enterro [?] da parte de Fungalvaz, tem seu capelão que diz missa todos os domingos e dias santos pelos irmãos da dita irmandade. A mesma confraria é uma casa no lugar de Fungalvaz a que chamam Albergaria e onde se acomodam os pobres passageiros e se lhe dá o que é necessário à custa da dita confraria. Esta igreja dizem ser das mais antigas que há por estes sítios, não se sabe da sua fundação porquanto se queimou o seu cartório há muitos anos. Dizem que foi sagrada por alguns indícios que nela se vêm como sejam algumas cruzes que estão Esculpidas nas paredes. O Pároco ……….Cura é apresentado todos os anos pelo reverendo Prior da Igreja do Salvador da vila de Torres Novas donde é anexa esta igreja, tem da venda o dito pároco um moio de trigo, uma pipa de vinho e seis mil reis que dá o dito reverendo prior [co-que??? Tende???] O pé do altar, tem essa freguesia os lugares seguintes: para a parte do norte o lugar de Assentiz e o de Fungalvaz tem esse uma ermida de Nossa Senhora da Graça que é do Povo, tem seu capelão que diz missa todos os domingos e dias santos pelo dito povo, e da parte do nascente tem o lugar de Beselga e das Moreiras pequenas e o das Moreiras grandes, tem este uma ermida de Nossa Senhora da Conceição  e de que é Administradora Anna Maria dos Vargos tem seu capelão de obrigação que diz missa na dita ermida  todos os domingos e dias santos e sábados pelo instituidor da dita capela que foi o Capitão António Gonçalves do dito lugar, tem da parte do sul o lugar de Outeiro pequeno que tem sua ermida que é do povo com a imagem de São João com seu capelão que diz missa todos os domingos e dias santos ao povo e está do [mesmo passe???] O lugar de Outeiro grande com sua ermida de Santo Estevão que é do povo também com seu capelão, da mesma sorte e da parte do poente está o lugar de Carvalhal do Pombo  com sua ermida de Nossa Senhora da Luz que é do povo com seu capelão, do mesmo modo e da mesma parte está o lugar de Alveirão, [estas???] Mais perto da freguesia vários casais que todos se habitam. Os frutos que os moradores desta freguesia colhem com mais abundância são pão, vinho e azeite. Dista esta freguesia da cidade de Lisboa vinte e duas léguas, é da parte do Norte a ultima do Patriarcado de Lisboa, confina com o Bispado de Leiria e a Prelazia de Tomar. Tem esta freguesia uma légua de comprido com outra de largo, da parte do Norte está a serra de Aire à distância de uma légua que continua para cima e para baixo em muita distancia, pelo meio da dita serra vem uma ribeira que tem seu principio no termo de Ourém por um vale que chamam o Furadouro e onde tem sua ponte de cantaria por onde passa a estrada de Torres Novas para Ourém, e outras mais terras, é de Inverno de curso muito arrebatado pelos penhascos que tem a dita ribeira, passa pelo lugar de Beselga aonde tem dois moinhos e um lugar de azeite e vai findar na ribeira de São Silvestre junto ao porto da Lage, esta serra se cultiva em algumas partes no limite desta freguesia e os frutos que dela se colhem são pão e azeite, criam-se nela alguns animais ferozes como são lobos e raposas e tem alguma caça de coelho e perdizes. Junto do lugar do Outeiro pequeno está uma fonte com bastante abundância de água a que chamam a Fonte de A…… aonde tem principio a ribeira do mesmo nome, e vai continuando seu curso em distancia de duas léguas até findar no Tejo junto à Quinta da Cardiga que é dos freires de Cristo, tem esta ribeira muitos moinhos e lagares, porém nenhum nesta freguesia, todos usam de suas águas sem impedimento algum. Não sei que haja mais coisa alguma digna de memória, de que possa dar meças. E por me ser mandado passei a presente que assinei aos cinco dias do mês de Abril de mil setecentos e cinquenta e oito anos. O.P.Cura Francisco dos Santos…. »                                                                        



 Cem Soldos

 


O que se procura saber dessa terra é o seguinte:                               
1. Como se chama a Terra?                    
2.Qual é o orago da freguesia?                
3.Que título tem o pároco, se é abade,
prior, reitor, vigário ou cura?
4.Quem apresenta a Igreja?                    
5.Quantorendeao pároco?                  
6.Quantas léguas dista de Lisboa e quantas da vila de Thomar?
7.Quantos fogos tem toda a freguesia? 
Esta terra se chama – Cem soldos – o orago é S.Maria Madalena – os párocos se chamam um vigário e outro coadjutor. El- Rei Nosso senhor é o que apresenta [?] o supremo tribunal da mesa da consciência. Rende cada ano cem mil reis para o vigário e outros cem para o coadjutor. Dista de Lisboa 21 léguas e de Tomar meia légua. Tem 300 fogos. 1762 o Vigário João Alves Ribeiro.             
Na outra folha:
 –fogos são 300 mais ou menos [?] 5 conforme os óbitos ou noivados que ocorram, Cem Soldos … junho de 1762 o vigário [parece ser a rubrica de João Alves Ribeiro]

30 de janeiro de 2013

Porto da Lage nas Memórias Paroquiais


Padre Luís Cardoso [entre 1700 e 1750?]. -Colecção de
 Pintura da BNP. Galeria dos Padres Oratorianos

O Padre Luís Cardoso é o precursor no sec.VXIII (c.1732) de estudos de caracterização do território português, fundamentadas em inquérito, que dão origem à publicação entre 1747 e 1751 de dois volumes do seu Dicionário Geográfico, o qual ficou incompleto.

Após o Terramoto de Lisboa, o seu projecto é retomado em 1758, agora com iniciativa estatal, e o questionário de base (destinado a ser respondido pelos párocos) ampliado e dividido em três grandes partes: a paróquia, a serra e o rio.
Sobre a primeira gizaram-se 27 perguntas. Queria-se saber, por exemplo, onde ficava situada, de quem era a jurisdição da localidade, qual a sua população, que título tinha o pároco e que rendas tinha a igreja; se havia conventos, hospitais, misericórdias, ermidas e romarias; se tinha alguma feira, privilégios e antiguidades, fontes ou lagoas, ou muralhas e castelo, bem como personagens ilustres. Perguntava-se também pelos serviços de correio, pelas produções da terra e pelos danos do sismo de 1755.
No respeitante às serras, o objectivo seria conhecer o nome, dimensões, cursos de água ou minas que ali nascessem,   plantas, tipo de clima, gado ou caça que ali existissem.
                                                                                                                                                                   
Sobre os rios apurava-se o nome, o fluxo e volume das águas, a navegabilidade, bem como as pescarias, o cultivo das margens e o aproveitamento e propriedades das águas. Inquiria-se também sobre a existência de pontes e se em algum tempo se retirou ouro de aluvião das suas areias.De notar que qualquer uma das partes encerrava com a recomendação: “E qualquer outra coisa notável que não vá neste interrogatório”.
Ao todo, a Torre do Tombo guarda 44 volumes de Memórias Paroquiais, todos manuscritos e disponíveis online  http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4241804 . As paróquias apresentam-se, de modo geral, ordenadas alfabeticamente, embora algumas vezes apareçam na letra do actual concelho, ou antiga comarca, como é o caso das de Tomar, que aparecem em T(a quem interessar, as paróquias de Tomar fazem parte do n.º52, constante do tomo 36).


 A forma da resposta dada pelos párocos varia,  podendo constituir um excelente repositório sobre a zona, dependendo da prolixidade do pároco. Enquanto uns copiaram de novo as questões, outros limitaram-se a responder de forma ordenada, mantendo o número da pergunta no seu texto. Outros redigiram um texto compacto sobre o inquérito sem assinalar as perguntas.

Três exemplos desta circunstância estão muito próximos de Porto da Lage – os párocos de Assentis, Cem Soldos e Beselga (imagens dos manuscritos representadas abaixo). Este último colocado aqui apenas a título de exemplo (cópia da pergunta seguida da resposta) pois infelizmente pouco mais se pode concluir dado que só esta página se encontra legível.
Os dois primeiros, duas almas desconhecidas que nos deixaram há muito mas sobre as quais não nos será difícil, sem inventar muito, dizer que não devem ter tido muito em comum, salvo os respectivos cargos. Enquanto num ressalta o empenho, a vontade de mostrar o que se passa na sua jurisdição, o outro dá a impressão que despachou (despachou é como quem diz) a obrigação mal e porcamente e depois de muito instado.Basta olhar para as datas, enquanto um escrupulosamente respondeu logo no ano em que recebeu as perguntas, quiçá no próprio mês, o outro esperou por...1762, só quatro anos depois.  Feitios. Dou de barato que o primeiro seria um manga de alpaca “avant la lettre”, um coca-bichinhos chato, sempre a cumprir e a querer agradar aos superiores e o segundo um rebelde que "se estava nas tintas" para as modernices iluminadas vindas da capital. Talvez no seu tempo este suscitasse mais simpatias que aquele, mas, duzentos anos depois, como dá jeito aquele padre ... certinho e cumpridor.
Só mais uma achega (especulativa)  para ajudar a compreender o comportamento dos dois párocos. O de Assentiz, sendo esta uma paróquia de Torres Novas, estava na dependência do patriarca de Lisboa, poder da capital e portanto mais próximo da tutela do poder central. Por outro lado, o da Madalena pertencia à Prelazia de Tomar, território canonicamente independente dos bispados portugueses, cujo Prior era frei da Ordem de Cristo e só respondia perante o Papa. Talvez em 1758 a Ordem ainda estrebuchasse perante as ordens do Marquês de Pombal!

Esta "arrogância" dos freis de Cristo continuará talvez ainda, nos dias de hoje, nos responsáveis tomarenses. As "memórias paroquiais" são verdadeiras fontes históricas populares em quase todos os concelhos portuguesas. Remotas freguesias conhecem a sua história de há duzentos anos graças às "memórias" que as suas Câmaras Municipais em boa hora editaram, exemplo disso é Assentiz que popularizou as suas "memórias". Em Tomar nada disto sucede. Nem digitalizadas existem na Biblioteca Municipal! É um facto que são, a maioria delas, a de Santa Maria dos Olivais incluida, pouco informativas, mas sempre dizem alguma coisa sobre a terra de cada um e as pessoas ligam mais importância a isso do que, à primeira vista, se julgará. mas outras há, como Asseiceira e Paialvo que mereceriam publicação! 








Assentiz







Madalena (documentos aparentemente misturados com Casais)

Beselga 





27 de janeiro de 2013

Valha-nos Nossa Senhora da Piedade


Altar da Capela de Nossa Senhora da Piedade, Tomar



Quando entendi que devia tomar aqui posição sobre esta coisa repulsiva que Henrique Monteiro descreve de forma que subscrevo totalmente, lembrei-me da Pieta de Miguel Angelo, para a ilustrar.
Porque nunca a dor resignada de uma mãe foi tão bem representada como nesta estátua do artista renascentista e porque resignação para uma mãe não é aceitação, é a revolta contida que eu  compartilho inteiramente com esta mulher a quem o Estado se arroga o direito de determinar o que ela deve fazer com um direito natural e humano (e, no caso dela, até divino, segundo a sua fé)  que só a si diz respeito: o de dar à luz. Primeiro, "contratualizando" a sua esterilização e, de seguida,   retirando-lhe os filhos.
Mas depois, por associação de ideias, ao analisar as razões que técnicos e juízes pronunciaram para justificar tão peregrinas ideias, lembrei-me, como sempre me  sucede perante a emergência dos recentes valores que levianamente mandam às ortigas principios estruturantes da nossa civilização,lembrei-me, dizia,   da velha história da humanidade,  e do que pensariam sobre isto  gerações de mulheres que pariram mais de uma dezena de filhos cada uma, sabe-se lá em que condições, para dar origem a esta qualidade de gente actual que desempoeiradamente  produz decisões destas! Pena não terem[aquelas decisões] efeitos retroactivos!
Dessas mulheres, lembrei-me particularmente das que me são próximas, gerações de avós com verdadeiras ninhadas que iam exibir à Senhora na primeira saída que faziam após o parto, lá ao alto do monte, em Tomar. As minhas avós, as mães delas, a minha e eu própria, fomos à Senhora da Piedade pedir a benção para os nossos filhos!
E graças a esta cadeia de lembranças, a humilde e tosca imagem da Pietá da minha terra ocupa o lugar da do grande génio, e, na presença Dela, em memória das minhas duas avós tomarenses, eu repito o que tantas vezes ouvi da boca delas e rogo, perante os desvarios deste perigoso mundo - Valha-nos Nossa Senhora da Piedade.



Pietà, Michelangelo, Vaticano


21 de janeiro de 2013

A tia Conceiçãosinha

[Redacção onde se conta a assombrosa história da assombrada relação de uma miúda de dez anos com a sua especialissima tia-avó portalagense, mais uns apontamentos posteriores que nem interessam nem se percebem mas que a autora não quis cortar porque a redacção já é antiga e ela (a autora) também e tem destas coisas (de velha) de não querer mexer no que já está.]
John Everett Millais-1829, 1896 “Ophelia”   retirado daqui





A tia Conceiçãosinha exercia em mim um fascínio avassalador. Não conseguia deixar de a procurar, de a espreitar. Mas aterrava-me. A tremer, procurava todas as vezes fazer-me encontrada com ela para, logo de seguida, fugir apavorada.

Vi-a, a primeira vez, quando desfolhava o álbum de fotografias de família. Mesmo no fim, preso à contracapa, ocupando-a quase toda, um envelope fechado, grande, azul, de cartolina.

Quando o abri saltaram-me prontamente aos olhos os sapatos de saltos, brancos. Estranhei - era pouco habitual aquele primeiro plano. Vendo melhor, verifiquei tratar-se de uma mulher, de branco, rodeada de flores. Mas os sapatos continuavam a ressaltar, pior, as suas solas viam-se bem demais. A senhora só podia estar deitada! Algo me intuía a ficar pouco tranquila.

Fui perguntar. Resposta – é a tia Conceiçãozinha! E se eu ainda não a conhecia era pelo motivo aparentemente simples de estar morta. Ora, o estado de morta não era inédito naquele álbum, muito poucos dos presentes ainda pertenciam a este mundo. Mas porque estava ela naquela posição? Porquê tanta cerimónia, porquê dentro do envelope azul fechado?

Era o respeito e a saudade filha, a tia Conceiçãosinha estava realmente morta ali, repousada, onde eu a estava a ver. Não era, portanto, como os outros que tinham ido pelo seu pé, ao colo, de burro, sei lá, pelo menos respiravam, quando se tinham posto em frente à câmara fotográfica, julguei perceber eu.

A tia Conceiçãosinha já tinha fa-le-ci-do quando lhe tiraram o retrato!!!!???? E o que estava à minha frente era um ca-dá-ver, vó? – Não se diz assim filha, este é o corpo da tia Conceiçãosinha, coitadinha quando faleceu nunca tinha tirado um retrato, antigamente era assim, e a mãe para ficar com uma recordação mandou tirar-lhe o retrato, o fotógrafo até foi lá a casa. Vês como está linda, vestida de branco, dizem que as feições eram assim mesmo, que está tal e qual ….

O facto de a tia Conceiçãosinha não se ter incomodado a andar em bolandas, depois de morta, a caminho do fotógrafo, o qual tinha feito o favor de se deslocar, coisa a que a minha avó parecia dar tanta importância, não me comoveu. Também não me convenceu a ideia bizarra ditada pela dor da pobre mãe. Mas aquilo que me levou ao estado de completo agastamento foi o de ter de se considerar a tia Conceiçãosinha linda!

Linda, aquela coisa a preto e branco, reparando bem, morta e esticada, de olhos fechados, era aquilo belo em qualquer momento, fosse onde fosse? Mesmo antigamente, mesmo dando o desconto que tudo se passara antigamente, aquilo sítio longínquo justificativo para onde me remetiam e que devia ficar ao lado do “quando fores crescida” quando a explicação não estava ao meu alcance!

E mantive-me irredutível! Aquela tia era feia e tudo o que a rodeava horrível e medonho. Se eu conhecesse a palavra teria dito macabro. Era o que eu sentia perante aquela cena gótica, que transpira funebridade por todos os lados, o vestido, as flores nos cabelos, as mãos postas com o bouquet de noiva entre as mãos, tudo envolto em mesclas de cinzas sombrios! Não deixa a desejar nenhum quadro pré-rafaelita, digo eu agora, pelo contrário, a falta de cor fá-lo ganhar em autenticidade mórbida.

Não posso negar qualidade ao retratista, fosse lá quem fosse, que se dignou, por compaixão ou interesse, pôr-se em viagem com toda a sua parafernália até uma aldeia, tirar um retrato para minorar as mágoas de uma mãe. Conseguira captar de tal modo a atmosfera sepulcral que eu, mal grado a minha bravata ao chamar, alto e bom som, feia à tia, tinha tanto medo dela que nunca mais peguei no álbum da sua morada sem me tremerem as mãos.

Mas tinha uma compulsão em fazê-lo. Sonhava com isso e com a oportunidade de o levar a cabo. A oportunidade residia em estar sol, as janelas bem abertas e eu saber que estava alguém em casa suficientemente distraído para não ver a minha triste figura.

Dadas estas condições a cena passava-se assim: eu entrava na saleta onde estava o álbum, de preferência à hora de entrarem a jorros os raios do sol, de uma das janelas, punha-o no chão no local onde a luz batia no soalho encerado, abria-o na contracapa e olhava para o envelope azul. Levantava-me e ia certificar-me se a avó ou a tia Alice estavam cá em cima (nunca eu abriria o malfadado álbum sozinha em casa) e estariam a coser ou a fazer qualquer outra coisa que as impedisse de me aparecerem de repente. Confirmado isto, abria a porta da rua e deixava-a escancarada. Voltava ao álbum e abria o envelope de mãos frias e garganta seca. Procurava abarcar mais uma vez toda aquela teatralidade funéria, enquanto sustinha a respiração. Aguentava esta visão até o pavor e os pulmões mo permitirem. Quando não podia mais, fechava o envelope, atirava com o álbum para o lugar dele e corria espavorida escada abaixo. Eu sabia que o atropelo causado por este meu ímpeto causaria um – mas o que é que se passa menina, o que é que te deu? que me traria à realidade e me acalmaria sem ninguém adivinhar nunca a causa.
E esta aventura não se repetiu só uma ou duas vezes. A tia Conceiçãosinha esteve muito presente na minha vida enquanto morei naquela casa. Aliás, como era seu direito, pois não era ela responsável pela minha existência?






[A tia Conceiçãosinha, não sendo minha ascendente directa (era minha tia-avó, morrera em 1918 ou 19, vítima da gripe espanhola), contribuiu necessariamente para o meu passeio por este mundo,  pois foi por causa do seu luto que o seu irmão, o meu avô, conheceu a minha avó.]


Eu devia-lhe, portanto, a vida. Coisa, ao que parece, bem valiosa, a julgar pela dívida  pesada que tive de pagar. O que eu sofri.

Mas depois da infância nunca mais a vi.

Mais tarde, tornámo-nos a encontrar, pela última vez, espero, em circunstâncias que tornaram a tia Conceiçãosinha célebre.

Estava eu na faculdade quando, um dia, entrei apressada numa aula. Tinha-me atrasado a tirar fotografias numa máquina, para entregar na secretaria. Sentada na sala, impunha-se, de imediato, olhar para as fotos, nem as tinha visto devido à pressa. E reparei. Era uma fila de quatro rostos iguais, brancos marmóreos, emoldurados por sombras de várias tonalidades de cores acinzentadas que tornavam a trunfa esguedelhada completamente desagarrada da cabeça, fazendo-a parecer uma coroa. Dei um salto - irra, mas é a tia Conceiçãosinha! Ao silêncio imediato do professor, seguiu-se-lhe o – como minha senhora? (era a Universidade doutras eras, os professores tratavam-nos assim), o meu sorriso amarelo, o burburinho dos colegas.

Mas a imprecação do professor foi o que menos me ralou (interrompido, com razão, na prelecção da sua ciência certa de política económica, a que, infelizmente, não pude dar o devido valor, quando foi ministro, possivelmente dada a minha desatenção àquela aula) pôs-me doente, isso sim, ver-me igual à tia Conceiçãosinha. Fiquei chocada, todo o tremor antigo me  reentrou no corpo. E, para o esconjurar, tive que, imediatamente dar conta desse receio ao vizinho do lado. Toda a turma se inteirou, interessada, logo ali. Estou em crer que foi então, por causa da tia Conceiçãosinha, que toda a minha geração perdeu a oportunidade de gerir o país em condições, não fui a única a perder a aula. O que nos valeu foram os outros, os que não tiveram a tia Conceiçãosinha presente nas suas aulas, tomarem conta deste nosso lindo Portugal da forma que sabemos

Pois a partir daí, até ao fim do curso, todo o elemento feminino se dizia ficar uma tia Conceiçãosinha quando se não gostava de ver nas fotografias e pior, o masculino (a grande maioria, sim, que eu ainda pertenço a parte de um século em que a gente vivia rodeada deles por todo o lado) passou a classificar de tia Conceiçãosinha todas as infelizes que não lhes caíam em graça, diziam eles, mas que não passavam de grandessíssimas dores de cotovelo.

Foi na boca deles que a tia Conceiçãosinha, impoluta menina cujo único pecado fora, depois de morta, ter sido dada a conhecer por esta desbocada e desleal sobrinha neta, passou a ser sinónimo de megeras fantasmagóricas que encantavam os pobres rapazes e os deixavam para sempre convertidos em tristes sapos à espera do beijo da próxima. E muitos ainda hoje se encontram nesse estado.

Andam por aí errantes, professores catedráticos de borla e capelo a desfilar nas solenes cerimónias académicas, executivos de camisas de riscas e punhos brancos, mais recentemente, brilhantes comentadores de televisão, que tiveram ao longo das suas arriscadas e voláteis vidas sentimentais muita tia Conceiçãosinha que lhes assombrou o coração e devido às quais, não fugindo a tempo, choraram depois no ombro da seguinte.

É o que dá não se terem precavido a tempo, não se terem colocado debaixo de um protector raio de sol quando olhavam para ela e, depois, fugido a sete pés. (MFM)

Nota final: se a tia Conceiçãosinha fosse bonita e a cores como a "Ophelia", parece-me que a nossa relação não teria sido diferente. A "coisa" continua lá, apesar dos olhos arremelgados e dos nenúfares. 

13 de janeiro de 2013

Vida de cão Tuga

Vida de cão I

A doidice colectiva que anda a varrer este país nos últimos dias (que só pode ser  explicada como uma manobra de evasão para fugir da realidade, os psicólogos dirão) em que, por motivos absolutamente trágicos que nem me atrevo a repeti-los, tal o horror que sinto, é protagonista um cão em processo de abate, não tem melhor descrição que a de Daniel de Oliveira.

Além de concordar inteiramente com ele (o que é quase inédito) acrescento mais: nasci, cresci, vivo e espero viver sempre com a companhia daqueles fiéis e queridos amigos, alguns dos quais vi partir para lhes quebrar o sofrimento, outros porque a sua vida era incompatível com a nossa (para prevenir situações como a da notícia), e não me considero menos sensível do que as vozes histéricas que conseguiram arrastar atrás de si milhares de generosos impulsivos que se comoveram com esta particular  vida de cão. Mas isto da sensibilidade é coisa discutível. O que não se discute é que eu tenho, e felizmente a maioria sensata também tem,  uma coisa que lhes falta: humanidade.
 
 
Vida de cão II
 
Outra maluqueira de massas, esta sim já a posso classificar de rídicula (se tenho que explicar porque é que a outra não é rídicula, meu caro leitor, decididamente não nos entendemos) é aquela de sacrificar uma pobre coitada só porque ela fala com os dentes cerrados e quer juntar dinheiro para comprar uma mala Chanel, o seu desejo de 2013!
As pensantes almas nacionais, as modernas, as que andam nas redes sociais, indignaram-se, acharam uma afronta! Queriam que ela, qual miss universo, pugnasse pela paz no mundo ou, mais  patrioticamente, pelo fim da troika?
Nada a fazer, isto está-nos no sangue, quem não vive "com o credo na boca" de acordo com a religião do momento, fogueira com ele!
A desgraçada lá se arrastou ao santo ofício, perdão, à TV, ajoelhou, fez a sua contrição, jurou e trejurou que sabia que havia pobrezinhos, que a família dela tinha baixado muito de nível de vida, que só ganhava 700€, que a chanel pronto, tá bem, era uma fantasia, enfim, perdoável, não concretizável, que tudo estava descontextualizado. Prometeu que ia ajudar toda a gente que lhe pedisse,  no mundo da moda (vou aproveitar e vou-lhe pedir/exigir  umas dicas, toma que tavas a pedi-las, já que pecaste, agora pagas) e finalmente (como se esperava, abjurou a sua fé, que a rapariga é fraca e a tortura horrível)  contextualizando, desejou para 2013 uma vida melhor para os portugueses, que os jovens arranjem emprego, etc, etc (a oração toda).
 
E agora, estão satisfeitos? Tudo hipocritamente consertadinho, à vontade do tuga? 
 

As idades do mar





Retirado de http://www.gulbenkian.pt/object160article_id3787langId1.h 
Sou uma planta de sequeiro, de longínquas planícies douradas que aspiram, sequiosas, por água, para frutificar e  crescer.
Por isso o mar, aquela mole imensa de água inútil, sempre me foi um corpo estranho. Quando o procurei conhecer, e tentei, tirando o prazer físico do mergulho nas suas ondas,  reconheço que não ficámos amigos.
Não me transmite tranquilidade nem acalma, não me faz rir nem sequer companhia e, quando conversamos, só me consegue angustiar.
E no entanto, sendo-me estranho, não me é indiferente pois provoca-me emoções, desagradáveis, mas emoções. Penso que não será indiferente a ninguém.
A exposição que está a acabar na Gulbenkian  mostra-nos, de um modo peculiar, como estes 7/10 do nosso globo terrestre agem sobre a humanidade, sob o olhar de pintores de várias correntes estéticas.
E, mais uma vez, perante a mestria da pintura, nalguns quadros e pintores mais do que noutros, naturalmente, senti a voracidade daquele espaço enigmático que oprime, sufoca e pode levar à vertigem os nossos pobres seres insignificantes. Mas não foi só isso que senti. E fiquei com esperança.
Talvez, um dia, eu consiga sentir, através dos meus próprios olhos, o que vi através dos de outros, a bonança libertadora das águas luminosas do mar.