Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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9 de setembro de 2015

Fruta da Época (de outras épocas) II




Luís Egídio Melandez (1716-1780)
                                                                                ....
12.12.1886



No extremo da Rua dos Oleiros, oposto à Azenha da Ordem, de que já falámos, no topo junto ao Pé da Costa, ficava o célebre Pateo da Sra. Henriqueta -como então se dizia- o maior dos dois que existiam no nosso Bairro, sendo o outro o da Sra. Rosa, sito na Calçada do Convento.
Eram estas as duas grandes «garages azininas» do começo do século, quando os solípedes eram ainda o meio usual de transporte e os burros, mulas, cavalos, carroças, galeras, charretes, breaks, milords e Iandaus, não tinham ainda sido substituídos respectivamente pelos ciclomotores, lambretas, mótos, forgonetas, camionetes, ovos, carros utilitários e espadas.
Era um meio de transporte mais vagaroso, é certo, mas que não enchia os jornais de acidentes de viação e que em vez de gastar combustíveis líquidos estrangeiros, dava adubos sólidos e líquidos para as nossas hortas.
Este assunto é talvez um tanto baixo para ser aqui invocado -mas, a propósito lembra-me a história, já com barbas brancas, dum menino bem, filho de um parisiense que fizera a sua fortuna com a arrematação dos canos de esgoto. Quando o teddy boy censurava o pai, por ter um negócio tão ordinário e malcheiroso, este puxando pela carteira, bem recheada, tirou uma nota das grandes, e passando-a pelo nariz do filho perguntou:
-Cheira-te mal?
                                                                           ...

Mas, paremos com esta digressão a que nos levaram os resíduos da gasolina burrical que o tempo já vai longo - e voltemos à Garage - perdão! - ao Pateo, da Sra. Henriqueta, para recordar uma cena ali passada, ainda no tempo da "Outra Senhora".
Nesses dias, o carneiro com batatas das eleições, não era uma mera figura de retórica, mas um suculento e apetitoso prato, com que os caciques pagavam os votos da sua clientela.
Ora sucedeu que, numa das mais renhidas eleições dos últimos anos da monarquia, o chefe de um dos partidos - já não me lembra se o Progressista se o Regenerador - resolveu oferecer o carneiro com batatas no Páteo da Sra. Henriqueta que, como boa Estação de Serviço, tinha anexo, além de um ferrador, uma casa de pasto. Para que não houvesse roubos nem enganos, mandou imprimir bilhetes de admissão que, escrupulosamente, eram distribuídos pelos eleitores à porta da assembleia de voto.
O Chefe contrário, querendo pregar uma bela partida ao opositor, mandou imprimir cartões exactamente iguais, e disse às suas hostes para estarem na Sra. Henriqueta meia hora antes da marcada. Está-se a ver o que sucedeu à chegada dos legítimos portadores dos bilhetes autênticos: Os contrários tinham acabado com todo o carneiro com batatas!!!
Isto não quer dizer que não tivesse havido comida para todos. Houve, e da boa: Castanha em barda, regada a xarope de marmeleiro.
                                                                              ...
  (Amorim Rosa, Uma volta pelo Bairro das Flores, palestra realizada na Sociedade Nabantina, 
    18-11-1961, Edição do Semanário "O Templário")

8 de setembro de 2015

Fruta da Época (de outras épocas) I


Juan de Espinoza (1629-1688)


                                                               ELEIÇÕES EM TOMAR

Por fins da década de 1860, segundo tradição oral, ao serem marcadas novas eleições, o Capitão-Mor do Pintado, cargo já extinto mas pelo qual ainda era designado J. Delgado da Silva (?), morador na dita povoação, dirigiu-se a casa de Plácido Esteves de Brito de Meio e Castro Gameiro - meu avô materno, senhor da quinta dos Ganados, onde habitava, e da Pesqueira e de casa e avultados bens em Alpedrinha (Fundão), mais tarde vendidos para comprar em Tomar as quintas da Granja e das Avessadas - ambos influentes políticos e caciques eleitorais na freguesia dos Casais a fim de com ele estudar o assunto.
Este termo cacique tem ultimamente sido bastante desprestigiado, sem motivo aparente, pois a sua necessidade é evidente e se os seus processos nem sempre são os mais ortodoxos, tem de se considerar a época, os usos e costumes, a cultura local, as pessoas.
Pretendia o Capitão-Mor fazer um pacto eleitoral com o seu antagonista político a fim de não levantar problemas a qualquer deles nem criar na freguesia dissídios ou reacender paixões.
A sua proposta era dividirem território e politicamente a freguesia em duas zonas, ficando os eleitores residentes na zona situada a nascente da estrada Tomar-Cabaças para Plácido de Brito, como era geralmente designado, e a zona poente para o Capitão-Mor.
Plácido de Brito, plácido de nome e de feitio, achando a proposta equitativa com ela concordou e o resultado daquelas eleições na freguesia logo aí ficou resolvido e arrumado.
O tempo passa, a data das eleições aproxima-se e Plácido de Brito, sossegado e confiante, não procura os eleitores, não lhes fala, não se mexe. Quando o faz logo numa das povoações, a Venda Nova que á época ficava toda na sua zona, mas junto à estrada divisória, os eleitores lhe dizem que têm muita pena mas já estão comprometidos com o Capitão-Mor.
Furioso com a traição regressa a casa e sua Mulher lembra-lhe que tem uma forma de resolver o assunto sem prejuízo de maior. Tirar ao Capitão-Mor, mesmo que já estejam comprometidos, os eleitores de uma das suas aldeias e que o Casal Novo, completamente cercado pela sua quinta da Pesqueira, era fácil. Bastava ameaçá-los com não os deixar levar água da sua fonte da Romeira, esplendida nascente da referida propriedade que nunca secara e que eles, praticamente, utilizavam durante todo o verão, e que passaria a acoimar-lhes os gados que entrassem na quinta, o que era quotidiano, pois os caminhos de que tinham de se servir atravessam a propriedade e não têm vedações laterais.
Munido com tão fortes argumentos vai falar com os homens do Casal Novo que têm de concordar em lhe dar os seus votos.
O Capitão-Mor não se deu, porém, por achado e nas vésperas das eleições manda-lhe um recado convidando-o para irem todos juntos para Tomar e que os esperava à Venda Nova. Plácido de Brito, convicto que semelhante convite era para fazer crer aos tomarenses que toda a freguesia votava com ele, responde-lhe que não esperasse, pois iria sozinho com os seus partidários.
E assim fez. Mas, já se sabe, Plácido de Brito tarde e a más horas partiu, com o seu bando, para Tomar. Nesta, já então linda cidade, termina a primeira chamada, decorre o intervalo prescrito pela lei e inicia-se a segunda chamada (Casais é das primeiras freguesias) e Plácido de Brito sem chegar. Os seus correligionários, que lhe conhecem o feitio, estão aflitos, receiam que não chegue a tempo e espreitam Corredoura abaixo para Além da Ponte; vai começar a chamada de Carregueiros quando um suspiro de alívio lhes sacode o peito, ei-Io que chega.
Subindo a Corredoura a cavalo, com o seu criado de confiança também a cavalo (ostentando na lapela da jaqueta o escudete da Casa, como ainda hoje se vê nos coletes dos campinos das grandes Casas agrícolas do Ribatejo) e seguido do "rebanho" dos eleitores, Plácido de Brito vai radiante, recebendo os cumprimentos e vendo a alegria estampada no rosto dos correligionários, com aquele íntimo prazer de se ver admirado e popular, como tanto apreciava.

(Vasco da Costa Salema, Coisas e Loisas de Tomar, Empresa Editora Cidade de Tomar, 1993)