Estamos no tempo das uvas, dos figos, dos melões, das melancias. A ribeira já não corre há muito tempo. As cigarras já deixaram de cantar. Hoje deve ser domingo. As pessoas não trabalham e vestem roupas melhores: sapatos de cor, calças e casacos de fazenda, gravata e chapéu de feltro e barba feita. Os mais velhos, roupa da semana, lavada, botas cardadas, boina, boné, barrete preto e barba feita.
Vamos ao Agroal! Nunca lá fui. Tenho ouvido dele aos mais velhos. Alguns dizem Abroal. Surge o meu tio e a minha tia, irmã de meu pai, num automóvel com capota de pano que eu conheço há muito tempo. É da fábrica que destila álcool. As minhas irmãs e eu entramos e ocupamos o banco de trás e um pouco tempo depois iniciamos a viagem. Seguimos pela estrada do Paço. No sítio das Sobreiras viramos à direita pela dos Galegos até ao topo de Santa Margarida, onde existe uma capelinha muito antiga, onde algumas vezes venho aprender doutrina acompanhado das minhas duas irmãs mais novas. A estrada é muito pedregosa e estreita. Depois de Santa Margarida passamos por Casal do Pote, Fonte da Longra e Val do Calvo. O automóvel levanta muito pó, que fica para trás e se espalha pelos pinhais. O caminho depois do Val do Calvo é saibroso, levanta menos pó. Nos pinhais circundantes vêem-se paveias de mato seco que será utilizado para fazer a cama do gado. Vou a ver o meu tio a conduzir. Ele faz um sinal com o braço esquerdo. Aproximamo-nos de uma estrada alcatroada. Há uma pequena paragem e viramos à direita. A pouca distância vejo um letreiro no início de uma estrada, no lado esquerdo, que indica uma direcção. Vamos por aí. O piso é em macadame e o automóvel levanta pouco pó. Continuo a ver pinheiros e alguns eucaliptos. Há umas pequenas subidas e descidas e chegamos ao cimo de uma encosta. No sopé vejo um pequeno areal do leito de uma ribeira por onde corre alguma água e, numa das margens, um grande charco de água onde algumas pessoas se banham. Tenho um ligeiro sobressalto, sem saber porquê. Talvez por antever os banhos forçados…
O automóvel inicia a descida aproximando-se do fundo do vale. Há uma curva apertada para o lado esquerdo; mais uns metros e a estrada termina na frente de um enorme penedo redondo, escavado na base onde estacionam umas carroças com os respectivos muares presos a apascentarem-se. O charco que eu avistei do cimo da colina está na outra margem da ribeira. Vejo uma tosca ponte de madeira assente em estacas que principia na margem direita onde estou e vai terminar no charco.
Estamos no Agroal (talvez de agrial ou agriogal), nascentes fortíssimas de água doce do rio Nabão. Para montante é a ribeira de Alvaiázere ou da Sabacheira. Na Mendacha, a jusante, juntam-se outras grandes nascentes.
O automóvel, depois de nos deixar, voltou ao ponto de partida para realizar nova viagem com mais elementos da família, de tias, primas e primos. Nós, os da primeira leva, fomos instalar-nos no “chalet” construído em madeira com dois pisos: rés-do-chão e o primeiro andar. Ocupamos todo o primeiro que é dividido em pequenos quartos.
O primeiro grupo que chegou, o meu, é constituído por seis pessoas: a minha tia, irmã de meu pai e promotora da estadia, as minhas cinco irmãs e eu. O segundo grupo que vai chegar na segunda viagem é de oito pessoas: duas irmãs cunhadas da minha tia, o meu irmão e quatro primos. As duas cunhadas da minha tia são a nós, uma tia e a outra prima.
Todo o grupo é distribuído pelos quartos consoante as convivências de cada um. Dormimos sobre colchões no sobrado.
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É chegada a hora de cumprir a receita aquosa da minha tia, a promotora. A minha irmã mais velha veste-me o fato de banho de confecção doméstica e aí vou eu contrariado e renitente a caminho do charco, pela mão da minha irmã. Atravessamos a ponte de madeira que avistara do cimo da colina e vejo a minha tia, a promotora, toda vestida de preto com a água pela cintura, em mergulhos rápidos e sucessivos, a quem a minha irmã me entrega. Entro em aflição e apelo à Senhora dos Aflitos que desça do céu à Terra e venha em meu socorro. Mergulha-me e torna a mergulhar-me. Abro os olhos debaixo de água e penso que é o fim de tudo. Seguem-se mais uns mergulhos forçados nos braços de um banheiro ocasional. Não estou a gostar deste veraneio com mergulhos forçados no charco. Quando me dão banho semanal lá em casa é num alguidar grande de folha zincada.
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Regresso choroso ao chalet. É chegado o grupo da segunda viagem com as tias e os primos.
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Desenho de Maria Keil |
Acompanho, com o meu irmão, os primos mais velhos quando vão pescar com um cesto nas margens com águas muito baixas do rio.
Assim como lá em casa, a iluminação é com candeeiros a petróleo. Deitamos-nos e levantamos-nos cedo. Gosto do ar da manhã daqui do vale. É fresquinho, luzente e cheira a mato orvalhado.
Gosto do aroma do café que as minhas irmãs e demais adultos preparam em fogareiros a petróleo. Leite não há porque não há cabras nem vacas. Bebemo-lo com sopas de pão.
Desenho de Maria Keil |
Gosto do aroma do café que as minhas irmãs e demais adultos preparam em fogareiros a petróleo. Leite não há porque não há cabras nem vacas. Bebemo-lo com sopas de pão.
Já estamos aqui há alguns dias. Não sei quantos. Vem aqui pouca gente e quando vêm, banham-se no charco e vão embora (a). O chalet onde estamos é único. Junto às nascentes estão umas construções. Uma delas tem uma taberna, a outra exibe na parede pegada ao charco o letreiro “Banhos Quentes”.
Ouvi dizer a uma das minhas irmãs que ontem à noite, na barraca de madeira que fica ali um pouco mais abaixo, houve cinema. Foi exibido o filme mudo “A Matança dos Inocentes”. Houve quem chorasse quando os soldados do Herodes cortavam os pescoços dos meninos.
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Hoje é domingo. Está aqui no rés-do-chão do chalet um sargento com a família. Deve ter vindo de Tomar num veículo puxado por duas muares e conduzido por dois soldados que estão sentados num muro em frente da casa e sobranceiro ao rio. O sargento sai do interior da habitação com um prato de batatas cozidas, mais que cheio, já temperadas com azeite e talvez vinagre, duas postas de bacalhau, uma de cada lado e coloca-o entre eles. Cada um, com um garfo, serve-se.
Não sei que horas são. Não há relógio e se o houvesse, não traria qualquer informação. Não sei ler as horas e muito menos os dias. Estou em casa, no chalet, na parte da tarde do dia e vejo a prima Marquinhas, prima da minha mãe, sentada numa cadeira ao fim do corredor e o sobrinho, mais velho que eu um ano e meio, de joelhos diante dela.
“a prima Marquinhas, ... sentada numa cadeira ao fim do corredor |
“Peça perdão à sua tia!” diz a prima Marquinhas. O sobrinho agita-se para um lado e para o outro mas não obedece. A prima Marquinhas insiste:
“Peça perdão à sua tia!”. Não sei se pediu.
....o irmão [em pé à esquerda] é bem- comportado e vai para o seminário de Santarém... |
Atrás, na cauda, vou eu.
À minha frente vão os dois meus primos. O mais velho põe uma pedra achatada na vertical e continua a caminhar; o irmão mais novo diz-me: “empurra!”…e eu empurrei. A pedra rolou pela encosta, atravessou uma horta, partiu não sei quantas couves e só parou dentro do poço. A dona da horta veio aqui ao chalet queixar-se do prejuízo. Não lhe foi difícil encontrar os vândalos. Somos os únicos veraneantes hospedados.
Em minha opinião, a prima Marquinhas não inquiriu, convenientemente, o acontecimento, porque houve um autor, um instigador e um executor, e só o instigador é que está a ser julgado.
É um cadastrado... o irmão é bem-comportado e vai para o seminário de Santarém e eu sou o inimputável. Tenho seis anos…
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É um cadastrado... o irmão é bem-comportado e vai para o seminário de Santarém e eu sou o inimputável. Tenho seis anos…
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Não sei que dia da semana é hoje. Domingo não é. Também não sei há quantos dias estou aqui, mas vamos regressar a casa. Além na estrada, junto ao penedo, espera-nos o meu irmão junto de uma charrete puxada por uma mula. Vamos partir. Do grupo só nós aqui estamos. As minhas irmãs colocam a pouca bagagem dentro da charrete. No início da encosta a estrada é muito íngreme e exige muito esforço ao animal. Vamos todos a pé até ao cume. O regresso faz-se pelo mesmo caminho da ida mas demora mais tempo. Chegámos. O Sol pôs-se há pouco tempo. Minha mãe está no cais da Empresa a escolher figos secos de uns tabuleiros onde estiveram a secar, para arrecadar e, no Inverno, comermos com amêndoas ou nozes. Não houve qualquer manifestação de regozijo. Meu irmão desatrelou o animal da charrete e levou-o para o estábulo. Nós, subimos as escadas, entrámos em casa. À noite comemos a sopa e fomos dormir… amanhã será outro dia sem banhos no charco, sem ares aromáticos da manhã no vale do Nabão.
A foto a PB deve ser dos príncipios do século - os chapéus dos homens são de abas muito largas. A foto da nora do texto de Manuel Violante que enviei por mail deve ser dos anos 50. Nas fotos coloridas, pouco posteriores, a nora desapareceu. A nora do Agroal terá sido efémera. Óscar Mota
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