Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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8 de fevereiro de 2021

Memórias - Aos Domingos


                          Aos Domingos









 
 
                     
Aos sábados à tarde, de manhã havia escola, levavam-me a apanhar a carreira, para ir a Tomar visitar o resto da família. Atravessávamos a aldeia silenciosa, não se via ninguém, o horário era pouco depois do almoço, passávamos pela passagem de nível e parávamos no cais da cal, onde ficava a paragem.
Como íamos sempre muito cedo, havia muito cuidado, que não houvesse atrasos, lembro-me de me aborrecer terrivelmente na espera, e, quando já tinha saltado tudo o que havia para saltar e estava ao meu alcance para pesquisar (por ali tudo era muito solitário aos fins de semana e já começava a ficar em ruínas), levava um livro para ler.
Depois, com o dinheiro contadíssimo na mão direita fechada, o da volta, igualmente contado, para não ser enganada nos trocos, ia na carteira depositada dentro da pequena maleta, subia para a camioneta enquanto era recomendado ao motorista que esta menina, qual encomenda, era para ficar em frente ao turismo
Domingo ao fim do dia fazia o percurso inverso.
Quando ficava em Porto da Lage, ao domingo ia com o avô à missa de manhã, a menos que a tia Alice estivesse por lá ou se arranjasse alguém para ficar em casa, a avó não ia. Desde que, há muitos anos houvera um assalto, que nunca se deixava a casa sozinha. À missa, comigo, a pé, ia-se a Sta. Margarida ou a S. Silvestre, nunca mais longe. Fui, poucas vezes, a Cem Soldos, mas de carroça, com o avô ou com a tia Maria. Fosse pela idade ou pela condição física dispensavam-me de acompanhar o avô que, quando as suas obrigações o impediam de ir aos locais mais perto, ou estes, por qualquer motivo mudavam os horários previsíveis, ia a Porto Mendo, Casal da Fonte ou até Fungalvaz.

Á tarde o avô visitava os familiares ou amigos doentes. Quando se tratava de senhoras eu ia também. Visita habitual ao domingo à tarde era à tia Anita*. Não sei se estaria exactamente doente, mas não saía de casa. Uma casa bonita à beira da ribeira, por onde se entrava por um portão de madeira e, atravessando um túnel que ficava por baixo do edifício, se chegava a um pátio fechado, quadrangular onde, lá ao fundo, havia capoeira e coelheiras, e um curral com ovelhas que, vendo-nos, deitavam as cabeças para fora e com os seus arrastados mééé….. nos davam as boas vindas. À entrada do pátio costumava estar, à espera do avô, o tio António, marido da tia. Eu achava que os dois podiam ser gémeos, não fosse o tio ser mais feio, tinha um dos olhos grande, azul e sem expressão, era de vidro. Mas de resto eram iguais, no tamanho e no tipo, ambos de fato de domingo, camisa branca e gravata, sapatos engraxados. Era bonito de ver aqueles dois velhos cumprimentarem-se com afecto – Como vai compadre?- apertando com força as grandes mãos calejadas. Penso que o avô, tirando os irmãos, tratava a parentela inteira por compadre. Era padrinho de toda a gente, de todos os sobrinhos mais velhos, sinal da consideração que lhe tinham, dizia a avó orgulhosa, atendendo a que havia um irmão mais velho, preterido em relação a ele.

A seguir à curta conversa de circunstância (assunto maior a tratar ficava para depois, quando o avô descesse sozinho e fossem juntos ver a nova ovelha ou o adiantado das favas ou dos melões na horta que se estendia lá ao fundo), o tio ficava cá em baixo e nós subíamos para o lindo alpendre de madeira que dava para o pátio, onde, invariavelmente estava sentada a tia. Eu percebia que o avô e ela eram irmãos que se estimavam. Mais do que a cerimónia e consideração com que aqueles tios se tratavam todos uns aos outros, com aquela o avô parecia transfigurar-se, ria-se e falava até. O avô nunca falava, devo ter caminhado sozinha com ele longos quilómetros durante largas horas sem trocarmos palavra. Saíamos mudos de casa e entrávamos calados. Mas não me lembro de isso me incomodar, falar também não era, nunca foi, coisa em que gastasse muito o meu tempo
. 
Ouvir sim, gostava, e gosto, de ouvir quem não canse, quem não se queixe se não tem de quê, quem não fale só de si sem cuidar se interessa a quem ouve e quem conte boas histórias. Era o caso da tia Anita, uma senhora que se interessava por quem chegava, informava que era surda e por isso pedia ao interlocutor que se fizesse entender (o único Mota, além de mim, que vi fazer isso, oh seus vaidosos! acham que os outros não percebem que são moucos???) e contava coisas antigas. Falou-me do pai (custava a crer a uma miúda pequena que uma pessoa com aquela idade tivesse tido pai!) quando uma vez me perguntou pela escola e divagou sobre a importância da educação, o pai mandara os filhos todos à escola, mesmo as raparigas, mais valia perder as oliveiras que fossem precisas mas que se desse as letras aos filhos, teria ele dito.
Falava também naquele sitio mítico onde tinha nascido, a quinta da Belida, lugar que, quando olho para trás vejo agora que só na boca dela parecia real. Os outros velhos não falavam disso, quando ela perguntava: Lembras-te João?, ele torcia a boca e abanava a negativamente a cabeça,  e os da geração seguinte viam-na quase como uma fantasia, sinal que pouco lhes tinha sido transmitido sobre isso.
Quando a conversa não era comigo eu escapulia-me lá para dentro. Na sala, mantida na penumbra com as portadas semi-fechadas, para se preservar do muito calor lá de fora, nos cantos, havia floreiras altas de madeira nas quais assentavam pastoras e príncipes de faiança, em que elas transportavam grandes cestas carregadas de frutas ou flores, tudo pintado num delírio de cor que me encantava. Eu não me cansava de as admirar, ia visitá-las sempre que ia lá a casa. Ainda hoje estas figuras são a minha perdição.
Pelo crepúsculo voltávamos para casa, pela estrada ou pela nossa ponte, consoante o tempo ou a localização do visitado, silenciosos, tal como tinhamos ido.(MFM)

* Já aqui falei nas outras   duas   queridas  tias    



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