Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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9 de fevereiro de 2021

Memórias - A Isabel

 

                                                     A Isabel





Por vezes eu era requisitada para fazer

 recados. Ia à mercearia ou à farmácia, de saco e porta-moedas lá dentro, com a recomendação de nunca o tirar para que não se perdesse (uma vez aconteceu, por ir com ele na mão; quando, depois do drama advindo do caso, o encontrei, ao fim de muito procurar, no meio das ervas logo a seguir à ponte, a tia Maria congratulou-me, para ela isso era bom sinal, significava que andas de bem com Deus, menina). Eram, a mercearia e a farmácia, lugares onde era conhecida, até mesmo apaparicada, e por isso agradáveis de ir. Mas nem sempre assim foi. Houve uma ocasião em que, com certeza por motivos imperativos de que não me lembro, fui mandada sair do circuito habitual e ir mais longe.


Fiquei encarregada de, ao fim do dia, ir buscar o leite à 
vacaria. Aquilo teve a sua graça ao princípio, era uma forma de, equipada com fervedor e carteira dentro do saco habitual, me deslocar para uma zona desconhecida da povoação. 
Mas rapidamente tudo se tornou muito maçador, passei, embora sem consciência mas sentindo-o, à classe dos trabalhadores invisíveis e humilhados e deixei de gostar da tarefa. Eu chegava à guarita que havia no muro da vacaria, através da qual, pelo menos no meu caso, se atendia o público e ficava por ali à espera, até que, por sorte, aparecesse um adulto que pretendesse, também, ser atendido. 
Cedo fiquei a saber que, mesmo que me vissem, nunca me atenderiam, desde que estivesse sozinha. Ainda não tinha aquecido o lugar e já estava desejosa de me desembaraçar dele, quando a Isabel veio transformar esta minha desamada aventura.                                         
Era uma rapariga despachada, criada na casa de um familiar,  já não sei qual, e me conhecia daí, que, ao chegar gritava lá para dentro–Oh seus calaceiros, não vêm que têm aqui fregueses. Toca a despachar.

Outras vezes - Mas vocês são cegos, não sabem que a miúda está aqui há que séculos? E, desta forma, lá se foi animando aquela minha breve lida diária, pois, mesmo que tivesse que esperar tinha companhia, e que rica companhia.

Ela era bem-disposta, afectuosa e simpática com toda a gente, contava coisas com graça, ria-se muito. E atrevida, brejeira até, com os homens, que a namoriscavam todos, novos e velhos, seduzidos, digo eu agora, por aquela força da natureza, jovem e bem feita, de pernas e braços descobertos, mãos na cintura estreita de onde caía, airosa sobre as ancas, uma saia rodada que ela, ao andar obrigava a esvoaçar.

Mas essa garridice desaparecia, quando, não estando mais ninguém além de mim, eu não contaria para a descrição requerida, saía de uma pequena camioneta que ficava ali parada até ser oportuno, o condutor com quem a Isabel se ia esconder num canto.

Eu só perdia a companhia porque, antes, a Isabel garantia que logo seria atendida, ia-me embora e eles ali ficavam. Outras vezes, quando eu chegava, já eles lá estavam, mas mesmo assim ela não se esquecia de mim, deixava-o por uns segundos e vinha gritar à guarita que me atendessem e voltava para a companhia dele.

Assim que deixou de ser necessária a minha ida à vacaria, também deixei de ver a Isabel.

Depois, um dia, voltei a ter notícias dela. Quando se tornou público que um corpo tinha sido encontrado dentro de um poço. Informação a que as minhas companheiras de escola acrescentaram mais, descobrira-se, depois de morta, que estava grávida.

Ao homem da camioneta continuei a vê-lo como sempre quando ia com o avô à missa ao Domingo a Sta. Margarida, acompanhado da mulher e dos filhos. Iam também para a missa.(MFM)



                                      


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