Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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13 de janeiro de 2013

Vida de cão Tuga

Vida de cão I

A doidice colectiva que anda a varrer este país nos últimos dias (que só pode ser  explicada como uma manobra de evasão para fugir da realidade, os psicólogos dirão) em que, por motivos absolutamente trágicos que nem me atrevo a repeti-los, tal o horror que sinto, é protagonista um cão em processo de abate, não tem melhor descrição que a de Daniel de Oliveira.

Além de concordar inteiramente com ele (o que é quase inédito) acrescento mais: nasci, cresci, vivo e espero viver sempre com a companhia daqueles fiéis e queridos amigos, alguns dos quais vi partir para lhes quebrar o sofrimento, outros porque a sua vida era incompatível com a nossa (para prevenir situações como a da notícia), e não me considero menos sensível do que as vozes histéricas que conseguiram arrastar atrás de si milhares de generosos impulsivos que se comoveram com esta particular  vida de cão. Mas isto da sensibilidade é coisa discutível. O que não se discute é que eu tenho, e felizmente a maioria sensata também tem,  uma coisa que lhes falta: humanidade.
 
 
Vida de cão II
 
Outra maluqueira de massas, esta sim já a posso classificar de rídicula (se tenho que explicar porque é que a outra não é rídicula, meu caro leitor, decididamente não nos entendemos) é aquela de sacrificar uma pobre coitada só porque ela fala com os dentes cerrados e quer juntar dinheiro para comprar uma mala Chanel, o seu desejo de 2013!
As pensantes almas nacionais, as modernas, as que andam nas redes sociais, indignaram-se, acharam uma afronta! Queriam que ela, qual miss universo, pugnasse pela paz no mundo ou, mais  patrioticamente, pelo fim da troika?
Nada a fazer, isto está-nos no sangue, quem não vive "com o credo na boca" de acordo com a religião do momento, fogueira com ele!
A desgraçada lá se arrastou ao santo ofício, perdão, à TV, ajoelhou, fez a sua contrição, jurou e trejurou que sabia que havia pobrezinhos, que a família dela tinha baixado muito de nível de vida, que só ganhava 700€, que a chanel pronto, tá bem, era uma fantasia, enfim, perdoável, não concretizável, que tudo estava descontextualizado. Prometeu que ia ajudar toda a gente que lhe pedisse,  no mundo da moda (vou aproveitar e vou-lhe pedir/exigir  umas dicas, toma que tavas a pedi-las, já que pecaste, agora pagas) e finalmente (como se esperava, abjurou a sua fé, que a rapariga é fraca e a tortura horrível)  contextualizando, desejou para 2013 uma vida melhor para os portugueses, que os jovens arranjem emprego, etc, etc (a oração toda).
 
E agora, estão satisfeitos? Tudo hipocritamente consertadinho, à vontade do tuga? 
 

As idades do mar





Retirado de http://www.gulbenkian.pt/object160article_id3787langId1.h 
Sou uma planta de sequeiro, de longínquas planícies douradas que aspiram, sequiosas, por água, para frutificar e  crescer.
Por isso o mar, aquela mole imensa de água inútil, sempre me foi um corpo estranho. Quando o procurei conhecer, e tentei, tirando o prazer físico do mergulho nas suas ondas,  reconheço que não ficámos amigos.
Não me transmite tranquilidade nem acalma, não me faz rir nem sequer companhia e, quando conversamos, só me consegue angustiar.
E no entanto, sendo-me estranho, não me é indiferente pois provoca-me emoções, desagradáveis, mas emoções. Penso que não será indiferente a ninguém.
A exposição que está a acabar na Gulbenkian  mostra-nos, de um modo peculiar, como estes 7/10 do nosso globo terrestre agem sobre a humanidade, sob o olhar de pintores de várias correntes estéticas.
E, mais uma vez, perante a mestria da pintura, nalguns quadros e pintores mais do que noutros, naturalmente, senti a voracidade daquele espaço enigmático que oprime, sufoca e pode levar à vertigem os nossos pobres seres insignificantes. Mas não foi só isso que senti. E fiquei com esperança.
Talvez, um dia, eu consiga sentir, através dos meus próprios olhos, o que vi através dos de outros, a bonança libertadora das águas luminosas do mar.


12 de janeiro de 2013

Por falar em Paciência



Ex.mo sr. Presidente da
Junta de Freguesia da Madalena


 




 


Serve a presente para manifestar junto de V.Exa o gosto de tive em ver V.Exa,  lamentavelmente apenas deste modo, e apresentar-lhe os meus cordiais e muito sinceros cumprimentos.
Não tenho o prazer de conhecer pessoalmente V.Exa , penitencio-me por nem o nome de V.Exa conhecer, bem como, igualmente, desconhecer a obra que V.Exa , estou certa, leva a cabo, com todo o empenho, na edilidade que os eleitores, muito sabiamente, confiaram à superior direcção de V.Exa.

Estará V.Exa estranhando que eu, desconhecendo-o embora, tenha começado por afirmar o gosto que tive em vê-lo. Pois reitero o prazer que senti, não só em ver, mas, mais do que isso, em ouvir V.Exa.

V.Exa, surpreendentemente, declarou, hélas, num arrebatador minuto, em palavras entendíveis, sãs, escorreitas e, inesperadamente portuguesas (o som não lhe fez justiça mas eu percebi), tudo o que era preciso ser dito. V.Exa é extraordinário!

Bem haja V.Exa não só porque diz o necessário mas também pela seriedade patenteada.

Deslumbrou-se Vexa pelo microfone? Não deslumbrou. Imitou o sr. Presidente da Câmara com palavras irrepetíveis por qualquer ser pensante? Não imitou. Tem V.Exa aspirações a maiores voos políticos? Não tem.
Atrevo-me a responder por V.Exa por estar certa de não estar longe do pensamento de V.Exa . Quisesse V.Exa outro futuro e outro comportamento seria o de V.Exa , mestres e exemplos não escasseiam.


Imploro a compreensão de V.Exa para a feição desusada do estilo desta missiva, mas saberá V.Exa que se apossa de mim, em certas ocasiões, um espírito (de contradição), contra o qual luto ingloriamente desde tenra idade, que me obriga sempre, sempre, a correr contra a corrente. No caso presente, a correnteza leviana da moda das palavras,  que me faz preferir a gongorice rebuscada (que sempre dá uso ao dicionário) ao resmungo (não digo rosnar por respeito a V.Exa ) afectado, soluçante, palavroso mas de léxico pobrissimo e repetitivo, muito popular na linguagem de hoje em dia, sobretudo entre  os colegas de V.Exa (refiro-me aos do governo e de outros poderes desta desditosa pátria, não aos da honrada profissão que V.Exa exercerá e que ignoro qual seja).

Patenteio junto de V.Exa a minha gratidão pela benevolência demonstrada por V.Exa, ao dignar-se ler estas pobres linhas nas quais exorbito destacando este meu malfadado feitio no qual O Senhor, na sua infinita misericórdia, permitiu que o inimigo exercesse o seu demoníaco império, pois já minha querida avó, outrora freguesa da distinta autarquia de V.Exa, me augurava que, se um dia eu caísse  à ribeira, haveria de ir  por ela “acima".

Termino reiterando os meus cumprimentos a V.Exa, almejando que  V.Exa consiga todos os sucessos pessoais e políticos, para o último dos quais, com muito pesar, ao contrário do que seria o meu desejo, não poderei contribuir com o meu voto. Porém, fique V.Exa ciente, que não terá consigo, espiritualmente, mais entusiasta eleitora.



Uma admiradora incondicional






 
Fotografia da Radio Hertz
                http://blip.tv/tv_show/tomar-porto-da-lage-já-conta-com-a-farmácia-ideal-6184662


                                                                                              


10 de janeiro de 2013

Marco da Paciência



Marco da Paciência




Em Porto da Lage chamam-lhe Marco da Paciência. Contam os portalegenses que era usado quando "não tinhamos nada que fazer".



Foto
O Marco Quilométrico da Rua Silva Bueno está em processo de tombamento.


Em outras partes, marcos destes são tombados. O de Porto da Lage estará "tombado" um dia, quando, literalmente, cair para o lado, for removido para parte incerta ou mesmo destruído porque marcos há muitos, sua palerma ....


6 de janeiro de 2013

A Tigela de romã


Era uma casa feia, cinzenta, de dois pisos, com uma porta ao meio e duas janelas de cada lado*. Não me lembro como fui lá parar, sei que fui sozinha e que entrei. Da porta da rua para dentro, na porta do lado direito do patamar, era ali, tinham-me ensinado. Terei batido à porta, haveria campainha? Sei que ma abriram, sem surpresas, me mandaram sentar numa cadeira da sala de jantar e ali fiquei, de pernas a bambar, em frente à mesa, a reparar nos dois aparadores de cor castanha reluzente com vidrinhos, donde transpareciam chávenas com passarinhos e copos azulados. A mãe da Clarisse entrou, vinda da porta da esquerda, com uma grande tigela, também com passarinhos, assente nas duas mãos aconchegadas, cheia de uma matéria translúcida encarnada, atravessada por uma colher. Pôs-ma à frente, sobre a mesa. Eu olhava para aquilo e a Clarisse perguntava - não gostas de romã?

Eu não sabia o que era uma romã, nunca tinha ouvido falar em romã, era aquilo uma romã? Gotas de vidro rosadas cobertas de açúcar? Pelos vistos era de comer, peguei na colher cheia daquelas partículas e levei-a à boca.

À hora da minha morte, se comer romã, e hei-de comer se tiver pelo menos um amigo e partir no Outono como espero, a ultima colherada há-de saber-me aquela primeira da minha vida que comi em casa da professora Clarisse. Hei-de sentir as pequenas sementes a desfazerem-se entre a língua e o céu-da-boca enquanto o sumo (o molho, como mentalmente lhe chamei então), me há-de deixar toda lambuzada e cheia de prazer por ter degustado a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas aí já saberei o que hei-de fazer às sementes chupadas, e não as empurro, hesitante, de um lado para o outro dentro das bochechas. Pois a Clarisse já não irá estar lá para me dizer - se não quiseres engolir, podes deitar fora. Ai era para engolir? E toda a vida engoli as sementes das romãs. E em Outubro, pela feira, começava a comer romãs até as haver na romãzeira da horta ou alguém as oferecer lá para casa.

Agora compro-as, espanholas, às vezes durante o Outono, mas compro, sempre, sempre, no DIA DE REIS. Parece que garante dinheiro para todo o ano comer romã neste dia. São espanholas, também, estas que garantem o dinheiro.

Aquela primeira, da casa da Clarisse, asseverou-me não o dinheiro, mas o amor para toda a vida da fruta mais saborosa do mundo, a mais bela de todas.

A  Clarisse ou a mãe, uma delas, apontou para cima do aparador onde repousava por cima do naperon de renda, um prato de vidro amarelo com cinco criaturas lindas, bojudas, de coroa, coloridas na sua paleta entre o verde amarelado e o vermelhão, e eu ouvi que tinham sido duas iguais aquelas, cheias de vida antes de serem sacrificadas, que, depois de esventradas, se tinham tornado o objecto da minha gula.

E saímos daquela casa cinzenta, feia, a Clarisse e eu depois da romã comida. Era Outubro e o céu estava pequeno, ouvia-se o toque da passagem de nível fechada, quase ao lado da casa feia, depois a passagem afogueada do comboio enquanto continuávamos a nossa caminhada pelo meio da aldeia.

Os meus sentidos parece que ainda experimentam aquele primeiro dia do primeiro Outono da minha vida: a tarde quente, o embrulho dos cheiros das últimas uvas com o dos figos destilados e dos abrasadores carris de ferro; mas, mais do que tudo, o supremo deleite da primeira romã. (M.F.M)

*Já não existem estas casas, filas cinzentas, de dois pisos, onde se alojavam as famílias dos ferroviários. A REFER demoliu-as para alargar o cais, que se exibe ostensiva e desnecessariamente grande, e um parque de estacionamento. Ficavam à esquerda, na imagem

31 de dezembro de 2012

Havemos de sobreviver a 2013





Maria da Fonte
Natal de um Poeta

Em certo reino, á esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,                   
Ha quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa-fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!

E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:

Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

António Nobre, in 'Só'



O Poeta era um mentiroso, e, fado de ser português, o país interessava-lhe mais que tudo e interessa-nos sempre a nós, o pior são sempre os Carlos ou o Zé da Th'reza que nos governam, mas havemos de lhes sobreviver, assim como  Havemos de sobreviver a 2013



23 de dezembro de 2012

Coisas de que eu gosto



Machado de Castro, Presépio da Sé de Lisboa
 Nada mais encantador que um presépio. Nada mais inesperado e educativo que perscrutá-lo e encontrar-lhe a luz, a cor, e, sobretudo, os pormenores, os pormenores são a riquesa de um presépio! O anacronismo da realidade (passe o termo) plasmada, que representa a Galileia à luz da época em que o construtor do presépio viveu, é uma delicia. As situações recriadas são extraordinárias.

No presépio da casa dos meus pais, enorme, sempre acrescentado anualmente pela minha mãe com o seu fascínio  pelas populares e coloridas figuras de barro que a levava a comprar sempre mais e mais; pois, no lá de casa, no penhasco mais alto, todo alcatifado de musgo, erguia-se, imponente e inatingível, um granítico castelo medieval em cuja torre tremeluzia, orgulhosa, a bandeira verde e rubra e que era escoltado, muito adequadamente, por um guarda-republicano todo postinho por ordem, de polainas e cinturão largo! Às vezes, nalguns natais, discutia-se  a tristeza e necessidade do pobre estar sozinho, lá no morro (nós tínhamos estas influências africanas), a guardar um castelo que ninguém queria roubar, e achava-se mais útil a sua presença na gruta, perto do menino. E lá ficava ele, respeitador e perfilado, sem nunca mostrar cansaço, entre o 1.º de Dezembro e o dia de reis, um soldado da república portuguesa a adorar e, a defender, com a própria vida se preciso fosse, nunca se sabe, o rei dos reis, nascido há dois mil anos!

O  presépio representado na imagem, acrescenta à ingenuidade dos congéneres populares, mantendo a cor e o absurdo dos personagens, a mão do mestre escultor que o impregna de vida; tudo ali se mexe, fala entre si e fala connosco.
Para mim, em quem o sec.XVIII exerce uma profunda atracção, é uma visita ao maravilhoso meter-me no meio daquela multidão e sentir e viver com eles.

Em época de prendas, esta é uma que dou a mim própria. Espero que partilhem comigo, pelo menos um bocadinho, o prazer desta viagem. Admiremos o  barroco vestido florido da Virgem, os frades capuchinhos ao lado dos pescadores nazarenos de  torsos nus, o entusiasmo do rapazinho que faz a oferta a Jesus e interroguemo-nos sobre se o que o pastor disse à rapariga da criancinha, e que a fez corar, teve alguma coisa a ver com as tropelias do miúdo das cambalhotas. E tudo ao  ao som celestial.da orquestra de anjos que nos forra o céu.









E é na companhia de algo de que gosto muito, como já disse, as gentes e hábitos setecentistas, a sua arte decorativa e músical e a inocência e nostalgia dos presépios, que vos desejo BOAS FESTAS, a todos os que tiveram a gentileza de acompanhar este blog, que me deram a honra de dizer que gostavam e que sentiram a sua falta.
MFM

20 de dezembro de 2012

Feliz Natal


 Natal

Capela de S.Sebastião, Cem Soldos
Ó sino da minha aldeia,                                                        
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.                         

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto

Fernando Pessoa





Este Post é dedicado aos portalagenses, que são poucos e vivem longe,  pois  só se lembra dos caminhos velhos quem tem saudade da terra .

14 de setembro de 2012

As Férias, o Fim e a Fúria








Este blog nasceu faz hoje seis meses, e nasceu com um fim anunciado - o da minha vontade.
Não fora a fúria que nos invade neste fim de Verão e penso que não voltaria aqui tão cedo.

Assim, como não tenho jeito para colar cartazes, menos  para pintar paredes e, ainda menos, qualquer propensão para lançar bombas, fica aqui o meu contributo patriótico de publicitar a minha adesão ao NÃO QUERO MAIS DISTO. Para quem não me conhece, melhor, para quem me conhece, cá vai: nem gosto do cartaz nem me comovo com a mensagem, mas que querem? o rato Mickey esqueceu-se da convocatória e tudo é aceitável (e aproveitável) quando se prenunciam tempos amorais que me arrepiam.
Mas nem tudo é mau,  o doce de tomate da minha querida filha era (isso, era, acabou-se, até para o ano) ma-ra-vi-lho-so, como sempre.

9 de agosto de 2012

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Baía de Luanda, 1972
Mãe não tem limite,                                        
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade, 1902, 1987

À minha mãe que se foi embora faz hoje doze anos.

7 de agosto de 2012

O Jardim

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa,n.1924

6 de agosto de 2012

Poema Quotidiano

É tão depressa noite neste bairro                             
Nenhum outro porém senhor administrador     
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
                                                                      



                                                                      


                                                                      

                                                                       Nunca em tantos pés
                                                                       assim humildemente brilhou
                                                                       Orientou diz-se até os olhos das crianças
                                                                       para a escola e pôs reflexos novos
                                                                       nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

Ruy Belo, 1933, 1978

5 de agosto de 2012

Quando o Amor



Quando o amor morrer dentro de ti,                        
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
                                                               



 E se ninguém vier, ergue o sudário
                                                                Que mil saudosas lágrimas velaram;
                                                                Desfralda na tua alma o inventário
                                                                Do templo onde a vida ora de bruços
                                                               A Deus e aos sonhos que gelaram.

                                                               Ruy Cinatti, 1915, 1986

4 de agosto de 2012

Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,                  
como sereis cruéis, como sereis injustas?              
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso           
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.

Jorge de Sena,1919, 1978

3 de agosto de 2012

Escada sem corrimão




                                                    É uma escada em caracol
                                                    E que não tem corrimão.
                                                    Vai a caminho do Sol
                                                    Mas nunca passa do chão.

                                                    Os degraus, quanto mais altos,
                                                    Mais estragados estão,
                                                    Nem sustos nem sobressaltos
                                                    servem sequer de lição.

                                                   Quem tem medo não a sobe
                                                   Quem tem sonhos também não.
                                                   Há quem chegue a deitar fora
                                                   O lastro do coração.

                                                   Sobe-se numa corrida.
                                                   Corre-se p'rigos em vão.
                                                   Adivinhaste: é a vida
                                                   A escada sem corrimão.


                                                   David Mourão-Ferreira (1927,1996)

2 de agosto de 2012

Questão de Pontuação

Todo mundo aceita que ao homem
Cabe pontuar a própria vida:                   
Que viva em ponto de exclamação                       
(Dizem: tem alma dionisíaca);                            

Viva em ponto de interrogação
(Foi filosofia, ora é poesia);
Viva equilibrando-se entre vírgulas
E sem pontuação (na política):

O homem só não aceita do homem
Que use a só pontuação fatal:
Que use, na frase que ele vive
O  inevitável ponto final.


João Cabral de Melo Neto, 1920, 1999

1 de agosto de 2012

Realidade


Fomos longe demais, para voltar
Aos antigos canteiros onde há rosas.              
Em nós, o ouvido, quase e, quase, o olhar   
Buscam nas cores vozes misteriosas...

Mas o mistério é flor da juventude.
Não rima com poemas desumanos.
A idade — a nossa idade! — nunca ilude.
Só uma vez é que se tem vinte anos.

Quebrámos todos, todos os espelhos
E o sol que, neles, está hoje posto
Já não reflecte os lábios tão vermelhos
Que nos iluminam, sempre, o rosto.

Realidade? Há uma: apenas esta!
— Somos espectros na cidade em festa.

Pedro Homem de Mello, 1904, 1984

31 de julho de 2012

Elegia


Florescia                                                                                                                  
A pionia                                                         
De anos em anos, apenas.
Se a primavera
Era
Fria,
Mal se erguia
O caule das açucenas.
Rastejavam as verbenas...
Mas uma flor sempre havia
Que era a que mais rescendia:
Lembras-te, ao dar meio-dia,
Postas, tuas mãos morenas...?

Às quais sagro esta elegia

José Régio, 1901, 1969

30 de julho de 2012

Tempo

Tempo
Tempo — definição da angústia.                                         
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada





Tempo...
E não haver nada                                                                      
Ninguém,
Uma alma penada                                                     
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço                                                            
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!

Miguel Torga (1907,1995)  in 'Cântico do Homem'                            



29 de julho de 2012

Marcha Almadanim

Desfile dos meninos da escola de PL no Carnaval
Nos domingos antigos do bibe e pião                        
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova

espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!                       
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.



 Quem não sabia aquilo de cor
A gente cantava assobiava aquilo de cor ...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar ... )
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!



Entretanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha parecia
até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.


Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!

Meus companheiros antigos do bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas ...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita

 despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico

como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!
  
Manuel da Fonseca, 1911, 1993

Fotografias dos meninos de Porto da Lage roubadas  do seu blog

28 de julho de 2012

Trem de Ferro

Café com pão                                                                                          
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria
que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão                                         



Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha

                                                                           Que eu preciso
                                                                           Muita força
                                                                           Muita força
                                                                           Muita força

                                        Oô..

Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi

                                                                   Passa boiada
                                                                   Passa galho
                                                                   De ingazeira
                                                                   Debruçada
                                                                   Que vontade
                                                                   De cantar


Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficia

Ôo…

                                                                           Menina bonita
                                                                           Do vestido verde
                                                                           Me dá tua boca
                                                                           Pra matá minha sed
Ôo…

Vou mimbora voou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri

Ôo…

                                                    Vou depressa
                                                    Vou correndo
                                                     Vou na toda
                                                     Que só levo

Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente…


Manuel Bandeira, 1886, 1968


27 de julho de 2012

A Moleirinha



Pela estrada plana, toc, toc, toc,                               
Guia o jumentinho uma velhinha errante.                   
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc,
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol


               Vai sem cabeçada, em liberdade franca
Jerico ruço duma linda cor;
               Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
             Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca
                Com o galho verde duma giesta em flor

                                                                                             

Livro de Leitura da 4.ª Classe
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!... 

....
Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
P’ra vestir os netos, p’ra acender o lume...

Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, p’ra a fazer cristã!

...

Toc, toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d’outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toc, toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d’astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d’oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!


Guerra Junqueiro (1850, 1923)


26 de julho de 2012

Os Figos Pretos

Verdes figueiras soluçantes nos caminhos!
Vós sois odiadas desde os seculos avós:
Em vossos galhos nunca as aves fazem ninhos,
Os noivos fogem de se amar ao pé de vós!

- Ó verdes figueiras! ó verdes figueiras
Deixae-o fallar!
Á vossa sombrinha, nas tardes fagueiras,
Que bom que é amar!

- O mundo odeia-vos. Ninguem nos quer, vos ama:
Os paes transmittem pelo sangue esse odio aos moços.
No sitio onde medraes, ha quazi sempre lama
E debruçaes-vos sobre abysmos, sobre poços.

- Quando eu for defunta para os esqueletos,
Ponde uma ao meu lado:
Tristinha, chorando, darà figos pretos...
De luto pezado!

- Os aldeões para evitar vosso perfume
Sua respiração suspendem, ao passar...
Com vossa lenha não se accende, á noite, o lume,
Os carpinteiros não vos querem aplainar.

- Oh cheiro de figos, melhor que o do incenso
Que incensa o Senhor!
Podesse eu, quem dera! deital-o no lenço
Para o meu amor...

- As outras arvores não são vossas amigas...
Mãos espalmadas, estendidas, supplicantes,
Com essas folhas, sois como velhas mendigas
N'uma estrada, pedindo esmola aos caminhantes!

- Mendigas de estrada! mendigas de estrada!
E cheias de figos!
Os ricos là passam e não vos dao nada,
Vos daes aos mendigos...

- Ai de ti! ai de ti! ó figueiral gemente!
O goivo é mais feliz, todo amarello, lá.
Ninguem te quer: tua madeira é unicamente
Utilizada para as forcas, onde as ha...

- Que màs creaturas! que injustas sois todas
Que injustas que sois!
Serà de figueira meu leito da bodas...
E os berços, depois

- Tragicas, nuas, esqueleticas, sem pelle,
Por traz de vós, a lua é bem uma caveira!...
Ó figos pretos, sois as lagrymas d'aquelle
Que, em certo dia, se enforcou n'uma figueira!

- Tambem era negro, de negro cegava
O pranto, o rosario,
Que, em certa tardinha, desfiava, desfiava,
Alguem, no Calvario...

- E, assim, ao ver no outomno uma figueira nua,
Se os figos caem de maduros, pelo chão:
Cuido que é a ossada do Traidor, á luz da lua,
A chorar, a chorar sua alta traição!

- Ó minhas figueiras! ó minhas figueiras
Deixae-o fallar!
Oh! vinde de hi ver-nos, a arder nas fogueiras
Cantar e bailar...

António Nobre,1867,1900, in 'Só'

25 de julho de 2012

Redenção

Não choreis, ventos, árvores e mares,                         
Coro antigo de vozes rumorosas,                               
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...                  
E acabará por fim vosso tormento.



Antero do Quental 1842, 1891




24 de julho de 2012

Entre O Sono e O Sonho



Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim                            
Robert Joyner, 2010
É, o quem eu me suponho                           
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa


A meu pai, que viveu sonhando, no aniversário da sua morte.

23 de julho de 2012

A Cruz Quebrada

E eu te encontrei, num alcantil agreste,                 
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua                                     
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!


Alexandre Herculano, 1810, 1877