Dulcinda Mota Teixeira é uma figura em qualquer parte do mundo. Porto da Lage não sabe a sorte que tem em a possuir. Onde mais existem dulcindas destas, de boina ou panamá na cabeça, montadas nos seus triciclos, pedalando as compras para casa, verdadeiros repositórios do passado e forças de intervenção no presente? Ah, é verdade, e de oitenta anos? A vitalidade, a memória e a raiva desta mulher é tudo o que a gente deseja para quando for grande! O respeito pelo passado e a capacidade de (ainda) se indignar é algo que eu, cheia de vergonha, declaro já aqui serem objecto da minha grande inveja! Amar o passado virado para a frente é tão pouco habitual infelizmente!
Foi um momento de triunfo (consegui!), ouvi-la outro dia ao telefone – a narrativa está pronta, passe por cá quando quiser a buscá-la. A “narrativa” era o texto que eu lhe vinha pedindo há perto de três anos que escrevesse, onde contasse a todos o que me contava quando nos encontrávamos, sobre Porto da Lage e a família. Achava que não havia razão para isso, “ninguém ia ligar nenhuma”, ninguém estava interessado. Depois do Blog começar disse-lhe que agora já havia onde publicar, não lhe prometia grande público mas, pelo menos, meia dúzia de interessados iriam lê-la. Que não tinha tempo. No Verão passado fez-me sinal, parei o carro e atirou-me – Já comprei o caderno. O caderno? Pois, para começar a escrever aquilo! E começa quando? Isso agora! Para já não, está muito calor! Graças a Deus o Inverno foi longo e permitiu a produção do que se segue. Trata-se de facto de uma narrativa, como lhe chama a autora, bastante resumida (não posso deixar de lembrar o prazer, cheio de pormenores, de ouvir presencialmente a Dulcinda) da história de Porto da Lage do século XX, com especial ênfase para a década da sua juventude – os anos cinquenta. Dulcinda Teixeira conta de memória o que viveu e o que ouviu dizer, é possível que, como acontece sempre nestes casos, os factos não se tenham passado exactamente assim contados pelas bocas de outros intervenientes. É uma inevitabilidade! Mas também, como acontece nas nossas casas e famílias, talvez estas situações de “desacordo” sirvam para promover mais discussão e avivar mais memórias.
Começo hoje a publicar o texto que a Dulcinda me entregou manuscrito Recordações da Nossa Aldeia, espero tê-lo respeitado integralmente (MFM):
Recordações da Nossa Aldeia
por Dulcinda Mota Teixeira
« Nos últimos tempos têm aparecido pessoas que gostam de ter conhecimento sobre as suas raízes».
I
A Origem
Os Mota e os Sousa Rosa
A pequena aldeia onde nasci há oitenta anos - 1932, é uma povoação relativamente nova.
Era uma simples quinta com dois cursos de água; a ribeira que nasce perto da Serra de Aire e o ribeiro que vem de uma povoação chamada Longra.
Quando da chegada do comboio em 1864 começou a ser povoada por famílias que aqui compraram terrenos e construíram as suas casas.
Porto da Lage nos finais do século 19 era habitado por duas ou três famílias: Mota, Sousa Rosa, Santos Faustino e, um pouco mais tarde, Mendes Godinho.
Manuel Sousa Rosa veio da freguesia de Assentis já com família constituída, tivera sete filhos, quatro homens e três mulheres. Augusto Mota veio ainda novo para o lugar do Paço da Comenda e mais tarde veio a casar com uma filha de Manuel Sousa Rosa. Este casal deu à terra oito filhos, perderam uma filha jovem vítima de epidemia que dizimou grande parte da população portuguesa
A geração dos meados do sec.19 não se casou entre si mas a geração a seguir casaram-se entre si, quase todos primos em 1.º grau. Cinco casais eram primos entre si, outros cinco homens casaram com senhoras não primas. A povoação era constituída por Motas e Sousas Rosas. A juventude nascida nos finais do século 19 era tudo primos entre si
Era um tempo em que todos éramos primos e primas, tios e tias. Quase todos eram compadres por casamentos e baptizados. Uns com mais dinheiro, outros com menos.
Entre estes jovens houve um que foi mobilizado para a guerra, foi para França, teve a infelicidade de ser molestado com gases na célebre batalha de La Lys na região da Flandres
Também havia cunhadas e irmãs, uma das cunhadas que se julgava mais civilizada no meio, não perdoava nada às cunhadas Mota. Quando da separação do marido, cortou relações com as que ficaram do lado deste. Esta Gracinda Teixeira era irmã do meu pai. Não era nada meiga para as sobrinhas!
Os homens eram quase todos agricultores, cultivavam as terras que produziam azeite, figos, cereais, batata e legumes para consumo próprio. Tinham trabalhadores assalariados. Só dois pegavam na enxada para virar a terra – António Rosa Mota (da Quinta) e João Mota (dos Olivais) os dois homens mais modestos e honestos de Porto da Lage, nunca sobre eles se ouviu a menor leviandade, ao contrário de todos os outros.
Alguns pretenderam estabelecer-se com serviços de transportes para localidades vizinhas, outros para levar peixe e vendedeiras para mais longe – Sertã. Contam as netas de Manuel de Sousa Rosa (filho) que o avô quando ia em serviço, de carroça, a caminho de Tomar num local junto à Quinta da Anunciada, quando quis trocar de um carro para outro, em andamento, falhou o salto, sendo atropelado mortalmente por outra carroça. Até lhe chamavam o Manuel das carroças. Deixou três filhos pequenos mas a viúva foi mulher que não baixou os braços, ficou sempre conhecida por "tia Viúva".
Quando em 1928 começou a funcionar o ramal Lamarosa-Tomar a empresa das carroças morreu. Só Manuel Augusto Mota ficou com as descargas de vagões que traziam mercadorias para o armazém da União Fabril.
A filha mais velha do primeiro Mota (tia Anita) também se iniciou com a restauração, servindo refeições a quem por ali trabalhava e não tinha ainda família. Era viúva desde muito cedo, tinha um modesto estabelecimento de mercearias e vinhos, taberna -Vinhos e Petiscos- e com facilidade mostrava os seus dotes culinários ... (continua)