Esta água foi nascer/Naquela encosta do monte/Para vir dar de beber/A quem passar pela fonte
Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
8 de fevereiro de 2021
Memórias - Aos Domingos
5 de fevereiro de 2021
Memórias - O Sr. Luís.
O sr. Luís
Naquele tempo, em que a
maquinaria agrícola era ainda reduzida, o trabalho no campo requeria muita
gente. Que, claro, já fora muita mais. Eu ouvia lá em casa queixarem-se da
falta de pessoal, apesar das jornas incomportáveis que estavam que não se podia.
E dos direitos, que tinha acabado a jornada de sol a sol, e as oito horas de
trabalho não podiam ser ultrapassadas. Para além disso, os jovens já não
queriam trabalhar no campo, os rapazes só muito novos, depois de virem da
tropa queriam outras coisas, as fabricas, as oficinas; as raparigas eram cada
vez mais requeridas em lugares outrora ocupados pelos homens que estavam na
guerra, o campo era agora das crianças acabadas de sair da escola que por ali
andavam atrás do meu avô, dos velhos e das mulheres. E um novo fenómeno tinha
vindo dar a machadada final no povo dos campos - a emigração.
A este propósito contou-se durante muito tempo o episódio do senhor Luís que representava a nova era em que estávamos a viver, em que nos tinham posto a viver, como dizia a minha avó. O Luís tinha ido trabalhar lá para casa ainda rapazote pequeno e por lá se fizera homem, o meu avô gostava dele e reconhecia-lhe qualidades para ser dono de si próprio.
Os meninos éramos nós. Eu e os meus irmãos, que ele
conhecera desde sempre, já lá trabalhava quando nós nascemos, tratara sempre
por meninos e a quem falava com todo o respeito no avozinho e na avozinha. Para
nós, claro, ele era o Luís.
Lá foi, e graças a Deus e à vontade e empenho
que o meu avô reconhecera nele, passados tempos voltou a matar saudades e
regularizar as suas dívidas que ele também era homem de boas contas. Quando
chegou lá a casa, abriu o portão verde que tantas vezes, desde criança
transpusera para ir ganhar o triste pão diário, e que agora franqueava já
senhor de si e do seu futuro, deparou com a minha irmã a brincar no pátio,
aquela menina a quem ele conhecera e tratara sempre por menina Joãozinha,
e disse-lhe no tom que o suor amassado nas terras de França autorizava - Oh
Maria João, vai avisar o teu avô que está aqui o Sr. Luís que lhe quer falar. Mas,
coitado, a ordem foi dada em hora de tão pouca sorte que a minha avó ouviu.
A partir daí, quando vinha a propósito falava-se sempre no senhor Luís. Dizia-se que fulano e beltrano tinham visto o senhor Luís, que o senhor Luís estava cá de férias, que o senhor Luís tinha comprado isto e aquilo. O tratamento trocista de senhor é que nunca mais o largou, agarrara-se-lhe ao nome que nem carrapato, ganhara-o bem ganho lá pela estranja juntamente com a pobre petulância. (MFM)
4 de fevereiro de 2021
Memórias -O Joaquim
O Joaquim
Na aldeia havia mesmo coisas
inéditas para mim. As uvas, as nêsperas, os figos, as romãs, os comboios. A principal era o comboio, ou seria o frio? Pensando bem não
sei o que mais me espantou. O que desagradou mais, sei, o frio, aliás o calor
também não era igual ao que conhecia, era tudo muito extremo e mau por ali, em
termos de clima. Os joelhos roxos, as frieiras e os quilos de cobertores na
cama para obter algum calor, tudo isso o meu corpo associa àquele primeiro
Inverno da minha vida.
O comboio foi uma surpresa
engraçada, era o encontro com um personagem fantástico, só conhecido dos livros …pouca terra, pouca
terra … e tornou-se um grande companheiro. Quantas noites eu acordava de noite,
envolta em pensamentos tristes e não era o tanger da campainha da passagem de
nível e a posterior uivo do comboio que me sossegavam?
Consequências da existência do comboio e da respetiva estação eram as pessoas e famílias que viviam em função dele. Eram ferroviários na generalidade, com profissões especificas que poderiam ser, por exemplo, fogueiro ou agulheiro (seja lá isso o que é, ou foi, são ocupações que vivem na minha memória como de ferroviários). A uma dessas famílias pertencia a C. de que já aqui falei, que eu tinha como velha solteirona, que vivia com os pais numa casa da CP de dois pisos, escura e feia, perto da passagem de nível. Desconheço mesmo como fazia parte das relações da minha avó. Naquela terra nunca me pareceu que as pessoas da família se dessem com as dos ferroviários. Mas, como a C. subira socialmente sendo professora, talvez isso a tornasse merecedora. Talvez, mas não muito. Recordo-me de a minha avó dizer, à minha frente, a C., -não te esqueças de dizer à C. que… , quando diria sempre a sr.ªD.Branca, a sr.ªD.Amélia, outras professoras, uma delas até família. Esta dispensabilidade do sr.ªD. relativamente à C. não abonava muito a favor da consideração em que era tida.
Fica assim a história coxa ... |
3 de fevereiro de 2021
Memórias - A Menina Maria do Céu
A Menina Maria do Céu
2 de fevereiro de 2021
Memórias - A Irmã da Carolina
A Irmã da Carolina
Não tinha sido pacifica a minha
entrada naquela escola rural, de meninas de bata branca onde se cantava o hino
de Portugal, que eu só conhecia de o ver escrito, e se rezava uma oração ao
início da manhã.
Mulher adormecida-P.Picasso 1932 |
E durante todo o ano, todos os dias.
Para além da surpresa dos primeiros dias também para mim aquela rotina se tornou banal. (1)
A Carolina sabia tudo: os pronomes, relativos, substantivos, conjunções, a, ante… dividia e classificava as orações, conjugava os verbos ser e haver, fazia contas, de dividir com quatro e cinco algarismos, problemas onde a água entrava a correr de uma torneira e saía a fugir de um cano e a gente tinha de descobrir aquela que lá ficava, sabia-se lá para quê. Conhecia os reis, as terras, continentes, ilhas que aquela gente há séculos tinha descoberto, por datas e circunstâncias. E ainda lhe sobrava tempo para saltar a corda e tomar conta da irmã. E com tanto empenho e inteligência a Carolina ficou por ali. Não prosseguiu os estudos, como todas as outras, aliás, porque era esse o seu lugar no arranjo daquelas vidas naqueles tempos.
E na injustiça daqueles amanhos,
eu, a privilegiada, que não seria obrigada a trabalhar quando acabasse aquela
escola, aos dez anos, no campo, em casa, em casas alheias, pagava o preço da
minha superioridade, com a interdição de gozar da companhia delas.
Apenas uma, a Isabel, dos Vales, mais minha vizinha que as outras, pois em dias de lamaçal em que a estrada estava intransitável, atravessávamos a aldeia juntas e ela acompanhava-me até à pequena ponte (quando a ribeira ia cheia e tormentosa, quase a rasar a ponte, divertíamo-nos irresponsavelmente a fazer corridas em cima dela – um corredor de tábuas soltas, onde mal cabia um adulto e sem qualquer guarda lateral!), entrara algumas vezes do portão para dentro e fora-lhe permitido brincar comigo, com as minhas bonecas!
Mas ainda havia castas mais
inferiores! Uma pequenita da minha sala, talvez da 1.ª classe, surgia todos os
dias de manhã, lá do fundo da estrada onde não me parecia que morasse alguém e
ficava parada em frente ao portão. Eu percebi e corri ao seu encontro.
Arranjara companhia para ir para a escola! A alegria durou pouco. Era uma
“maloia”, parecia que com aquela nem andar na rua se podia! A pobre foi mandada
seguir logo na vez seguinte, com o pretexto que eu estava atrasada e iria
depois.
Mas não foi nada que não se
remediasse. Como era crédula a minha avó, imaginando que as suas palavras tinham algum efeito! Depois de a ver passar em frente ao portão, eu corria e
alcançava-a. Íamos as duas a galgar os muros que bordejavam a estrada, sem
dizer palavra, que tinha eu para conversar com uma miúda de seis anos?
Bastava-nos a companhia uma da outra, que quebrava as nossas duas solidões vindas de
ostracismos que nos eram alheios, e a mim, particularmente, saber que estava a
desobedecer. Ai, como era bom!
1 de fevereiro de 2021
Memórias- A Teresa
A Teresa
A Teresa era minha colega na 4.ª classe. Era morena de olhos escuros e cabelo liso pouco farto e escorrido. Tudo o que eu desejaria para mim. A minha pele branca onde todos os dias despontava nova sarda, que encarniçava e enrugava a todo o momento devido ao sol, os olhos que eram obrigados a estar quase sempre semi-serrados por causa da luz, a minha trunfa selvagem que se magoava cada vez que o pente lhe entrava e obrigava a uma parafernália de ganchos e fitas para a domesticar, tudo isso, a pele, os olhos e o cabelo, me causavam tal incómodo e trabalho que me faziam cobiçar os da Teresa.
Mas o que eu invejava sobretudo na Teresa eram coisas que eu até poderia ter mas que me estavam interditas: os socos pretos de florezinhas e andar de burro.
Lembro-me dela, pequena e magrinha, sentada de lado encima do seu burro, com os pés a dar a dar enfiados nos tamancos onde ressaltavam em cada um, em fundo preto, dois ou três ramos verdes donde rebentavam as respectivas florinhas numa paleta que ia do branco ao vermelho passando pelo amarelo e azul. Como eram bonitos os socos da Teresa. E como deveria ser bom ir, como ela, ao fim da tarde, desde o Paço até à fábrica, no burro equipado com seirões com pequenos barris lá dentro, buscar destilado para os porcos. Que vida aventurosa a da Teresa!
Que eu tinha
sorte em ter sapatos para calçar e de não ter de trabalhar (afinal a Teresa
preferiria andar com os pés quentinhos – eu não pensara nisso, que os socos não
aqueciam - e aquilo que para mim seria uma aventura era para ela, talvez, uma
triste obrigação) compreendi. Mas o não conhecer o meu lugar foi sempre o
grande ponto de divergência com a minha avó enquanto vivi com ela.
Eu só soube o
que eram preconceitos e descriminação (termos actuais) naquela aldeia nos
finais dos anos sessenta. Antes, e depois também, honra seja feita aos meus
pais, eu convivera com toda a sorte de gente, de tal forma que, mesmo na
diferença de cor, como já disse, eu achava que quem estava em desvantagem era
eu.
Naquele microcosmos, lugar onde mais ouvi: aos olhos de Deus somos todos iguais… respeitava-se o concerto social do tempo vigente, a bem do qual, visando manter a paz e a ordem estabelecida, se educavam as criancinhas desde pequeninas para que o reproduzissem para sempre. Conseguiram?(MFM)
O rapaz no burro - Fyodor Bronnikov (1827–1902) |
6 de janeiro de 2021
Os Reis Magos
OS REIS MAGOS
30 de dezembro de 2020
Eurico Rosa (1949-2020)
29 de dezembro de 2020
E 2021?
23 de dezembro de 2020
Bom Natal
Muitos lamentam que a essência do Natal se tenha perdido. Carpem o Natal Cristão pois, dizem, o outro esqueceu Jesus. Mas o Natal "profano", o que comemoramos nos nossos dias, sem fé nem rito, se calhar, bem vistas as coisas até nem é mau, é mais verdadeiro, mais natural. Como aquelas coisas de que fazemos uso diariamente sem nos lembrarmos da sua origem. A água, a luz, o gás, a TV, a internet, entram-nos pela casa dentro sem que a gente se preocupe em saber como lá chega ou quem fez o quê, num tempo qualquer, para que tal fosse possível. Assim nós, uma vez por ano, sem já saber porquê, corremos afogueados a lembrarmo-nos dos outros, a comprar-lhes coisas, a juntarmo-nos a eles! E sofremos quando o não fazemos, quando não podemos por qualquer circunstância ou mesmo, até, quando não queremos. Sabem aquelas pessoas que não gostam do Natal? Nunca vi ninguém dizer com desapego que não gosta do Natal. É sempre com desagrado, com raiva mesmo. O Natal é para nós, ocidentais que crescemos neste caldo cristão que rejeitamos, algo que ultrapassa o nosso entendimento, mas que não discutimos e, muito menos, recusamos deixar cair em desuso como nos habituámos a fazer com o que é velho. E persistimos com todo o entusiasmo a comemorá-lo, cada vez com mais veemência, com o formato e a maneira dos nossos tempos, como outros, antes de nós, o fizeram à maneira deles. Porque sé ele nos permite, por um dia, mostrar o ser gregário que somos e sentir em relação ao outro o mandamento novo de dois mil anos, o ferrete que nos marcou à nascença – o amor.
Desejo-vos a todos um Bom Natal, na companhia de um pintor/ilustrador do sec.XX que retratou como ninguém (com cor, fantasia, harmonia, humor e optimismo, o que levou a que não fosse levado muito a sério) o quotidiano da América do seu tempo, e nos mostra aqui o Natal como nós ainda o vivemos: com a alegria da preparação da partida/chegada para as Festas (na ilustração, não obstante se tratar de tempo de guerra) e do contentamento exultante do reencontro, cuja expressão máxima é o rosto feliz de uma criança. (MFM)
Ilustração de Norman Rockwell (1894-1978) retirada daqui |
14 de dezembro de 2020
Ao fundo ....a memória.
Desenho de J.A. |
Ao fundo [ da ladeira que conduz à cidade] está a oficina do Ferrador Zé Paulo para onde entram por um largo portão e vão prender o animal, mesmo atrelado, a uma estaca ao fundo do pátio.
A oficina do Ferrador ficava num amplo pátio onde se abrigavam (acoitavam) as carroças, as galeras e as charretes de quem vinha a Tomar: era uma espécie de caravanserai, estrategicamente situada à entrada da cidade, ao fundo da “estrada de Paialvo” que a ligava à Estrada Real de Lisboa a Coimbra em Porto da Lage e de lá seguia para Leiria.
Nesse pátio caravanserai havia uma “estação de serviço” onde um ferrador – Zé Paulo – cuidava das alimárias enquanto esperavam.
E, provavelmente uma hospedaria para quem podia; os outros poderiam ficar no albergue vizinho, fantasio.
Pelo mesmo portão se entrava para casa da família Coito, da nossa tia Mª José casada com o tio João (dos Olivais), de que recordo uma longa varanda (da antiga hospedaria?) virada a poente como a da tia Anita em Porto da Lage. Era ali que eu procurava boleia para casa aos sábados à tarde. Recordo a forja, o barulho da bigorna, dos cravos na ferradura, das patadas no chão térreo e, sobretudo, do cheiro dos cascos queimados. HCM
12 de dezembro de 2020
Dezembro
Eu sou o Dezembro-
Engordo o meu porco
E como torresmos,
Regalo o meu corpo
Dezembro ou seca as fontes ou levanta as pontes
Em Dezembro ande o frio por onde andar, pelo Natal há-de chegar.
«Si hortum in biblioteca habes, deerit nihil»
25 de novembro de 2020
Grande Incêndio III
16 de novembro de 2020
Grande Incêndio II
12 de novembro de 2020
Gonçalo Ribeiro Telles
Homenagem de uma "urbana com memória rural", republicana que votou PPM. Que tenha, finalmente, encontrado a sua cidade. (MFM)