Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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21 de julho de 2012

O Pirilampo e o Sapo

Lustroso um astro volante
Rompera as humildes relvas:                    
Com seu vôo rutilante
Alegrava à noite as selvas.

Mas de vizinho terreno
Saiu de uma cova um sapo,
E despediu-lhe um sopapo
Que o ensopou em veneno.

Ao morrer exclama o triste:
- Que tens tu de que me acuses?
Que crime em meu seio existe?
Respondeu-lhe: – Porque luzes!

Marquesa de Alorna, 1750, 1839

20 de julho de 2012

Como passarei sem ponte?

Ribeira da Beselga (retirada da net)
Mote

Vai o rio de monte a monte,                              
Como passarei sem ponte?

Voltas

É o vau mui arriscado,
Só nele é certo o perigo;
O tempo como inimigo
Tem-me o caminho tomado.
Num monte está meu cuidado,
E eu, posto aqui noutro monte,
Como passarei sem ponte?

Tudo quanto a vista alcança
Coberto de males vejo:
D'aquém fica meu desejo
E d'além minha esperança.
Esta, contínua, me cansa
Porque está sempre defronte:
Como passarei sem ponte?

Francisco Rodrigues Lobo, 1579-1621

18 de julho de 2012

Adorai, montanhas

Adorai, montanhas,
o Deus das alturas,
também das verduras.

Adorai, desertos
e serras floridas,
o Deus dos secretos,
o Senhor das vidas.
Ribeiras crescidas,
louvai nas alturas
Deus das criaturas.

Louvai, arvoredos
de fruto prezado,
digam os penedos:
Deus seja louvado!
E louve meu gado,
nestas verduras,
o Deus das alturas.

Gil Vicente (c. 1465 - c. 1536)                                                 



17 de julho de 2012

O sol é grande, caem co'a calma as aves








O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

ó cousas, todas vãs todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:              
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Francisco Sá de Miranda 1481, 1558

16 de julho de 2012

Sextina



Ontem pôs-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora é já outro dia,                                      
tudo torna, torna o sol;
só foi a minha vontade
para não tornar co tempo!
Tôdalas coisas, per tempo,
passam, como dia e noute;
üa só, minha vontade,
não, que a dor comigo a aterra;                            
nela cuido enquanto há sol,
nela em quanto não há dia.

Mal quero per um só dia
a todo outro dia e tempo,
que a mim pôs-se-me o sol
onde eu só temia a noute;
Tenho a mim sobre a terra,
debaxo minha vontade.
Dentro na minha vontade
não há momento do dia
que não seja tudo terra;
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pôr à noute:
no milhor, pon-se-me o sol!

Primeiro não haverá sol
que eu descanse na vontade.
Pon-se-me üa escura noute
sobre a lembrança de um dia...
Inda mal porque houve tempo
e porque tudo foi terra.

Haver de ser tudo terra
quanto há debaxo de sol
me descansa, porque o tempo
me vingará da vontade;
se não que antes deste dia
há-de passar tanta noute!

Bernardim Ribeiro1482? — 1552?

13 de julho de 2012

Os Homens Gloriosos




Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam. 
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,                                               
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.

Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos...
pegajosas de lodo e sangue denso.
Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!
Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ebriamente os mapas!
Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio
triste e simples
de lágrima interminável, com sua
centelha ardente e eterna.
Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranquilo
em planta incomunicável,   
em pedra sem respiração.                                      

Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!

Reduze a pó
a memória dos homens, escutada e vivida...


Cecília Meireles, 1901,1964 , in 'Mar Absoluto'









11 de julho de 2012

O Velho do Restelo

Ao personagem da nossa literatura (e da nossa memória colectiva, como agora se diz) mais mal-visto e injustiçado, por pura ignorância, deviamos todos nós, portugueses, pedir mil perdões. De cada vez que estamos em crise ao longo da nossa história (e quantas vezes não estivemos?) se prova o quão sensato e prudente é este velho d'aspeito venerando
...

 Mas um velho d'aspeito venerando                 
Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,                                          
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:


95

—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!


96

— "Dura inquietação d'alma e da vida,                                     
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios
;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!


97

—"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?


98

— "Mas ó tu, geração daquele insano,                        
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:


99

— "Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidades
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:


100

— "Não tens junto contigo o Ismaelita,                        
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?


101

"Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?


102

— "Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.


103

— "Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!


104

— "Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!" —



Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, oitavas 93 a 104

9 de julho de 2012

Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?


Finalistas do Jardim Infantil de Porto da Lage, exibindo as
 suas fitas, no final de três anos lectivos. Foto roubada  do seu blog


Não é costume deste blog deter-se nas frivolidades deste mundo.
Porém, até os santos (mesmo os de pés de barro, como é o caso de "Porto da Lage") no limbo etéreo dos altares onde se alcandoram  (ou escondem) não conseguem manter-se cegos e surdos ao sortilégio dos grandes e poderosos que nos rodeiam, quando estes persistem em envolver-nos sistematicamente nas mesmas estuchas. E a actual, a desta semana, é aquela em que eles se lembram de obter  (obter - os sinónimos que esta palavra tem, Deus meu!, desde abichar, adquirir, papar, credo, que aflição, são dicionário nos valha!), dizia eu, de cada vez que se lembram de querer (que é isso mesmo, eles querem!) um diploma!
 De tão monótona, a coisa está a tornar-se enjoativa! Do fundo da sua desgraça e vendo que já não vale a pena desejar melhoras, qualquer dia veremos os portugueses a rogar, desesperados, variedade na trafulhice- o limite da nossa paciência é o tédio!,dirão; Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a imaginação, clamará este povo também de poetas! É que já estamos diplomados (não nos livramos desta) nos estratagemas que os nossos mais variados governantes arranjam para obter o famigerado Dr. !
Mas, "Porto da Lage" observa, não comenta, muito menos conclui.
Limita-se a procurar algumas frases de grandes pensadores que, pensamos (só um bocadinho, mas pensamos), ilustram o rescaldo do acontecido:

O homem costuma entregar a vida pela bolsa, mas entrega a bolsa pela vaidade."
Miguel de Unamuno
Pieter Claesz, Vanitas, 1634

"A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana os homens."
Padre António Vieira

"Não existe vaidade inteligente."
 Viagem ao Fim da Noite, Celine



"Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?"
Padre António Vieira

Nota: não encontrei nada que mereça ser repetido sobre parolice, saloice, provincianismo, etc.
Sobre gostar de aprender e reconhecer a importância de estudar encontrei muito, mas era tudo virtual.

7 de julho de 2012

A Procissão

Tocam os sinos da torre da igreja                                   
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.                             
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.
Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Imagem retirado da net
Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas! Ai, que bonitos que vão os anjinhos!             
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!               
Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.
António Lopes Ribeiro, 1908, 1995

6 de julho de 2012

Paixões Funestas II - Palavras do Assassino, em rigoroso exclusivo.

Sei o que é uma paixão

Falámos hoje com o criminoso  Francisco Jorge da Silva de 25 anos [filho de Júlio Jorge da Silva e de Maria da Conceição, natural de Paços, concelho de Torres Novas], que nos afirmou que usava a arma, da qual tem a respectiva licença em virtude de andar constantemente ameaçado por um ex-sócio, José Anastácio Henriques, que o Francisco Silva acusa de o ter burlado.
- Esse homem anda sempre armado de pistola, diz a toda a gente que me há-de dar um tiro e mais: - quando me encontra na estrada e vem a cavalo, atravessa o animal no meio do caminho, dirigindo-me os maiores insultos;
"tudo se podia ter evitar, se não fosse a teimosia da mãe da Purificação. Lamento muito o que se passou tanto mais que pertenço a uma família honesta que nunca soube o que era uma cadeia. Quando disparei os tiros fui tomado de uma loucura que não sei nem posso descrever. Quis suicidar-me e lamento bastante que no carregador não tivesse, pelo menos, uma bala, para assim acabar com a vida. Sempre era uma coisa mais limpa. Ao menos dava uma prova que sei o que é uma paixão!...
Eu era provocado até pelo cunhado da Purificação*, que me tinha um ódio de morte, a pontos mesmo de me ter agredido há tempos".

In Diário de Notícias, 8.12.1926, pag.2 (títulos da responsabilidades deste blog)

Capela de S.Silvestre onde Maria da Purificação ouviu missa pela última vez.
*Francisco Rosa, casado com a irmã Maria e também primo, filho de um irmão da mãe, António Sousa Rosa.

Vintenas outra vez

Na sessão de 11 de Abril de 1786, o Juíz-Presidente disse que se deviam eleger para Juízes de Vintenas e Escrivães das  mesmas, das freguesias deste Termo; e todos, uniformemente, votaram nas pessoas seguintes:
.......

Desenho de Domingos Sequeira (1768, 1837)
Freguesia da Madalena:                                                    
......
-Vintena dos Casais
Juíz, Luís António
Escrivão, João Pereira do Caniçal*

- Vintena do Paço
Juíz, Manuel António
Escrivão, António Gonçalves, do Porto da Lage
.......



* Muito me apraz saber que este meu quinto avô (n. 15.11.1758) sabia escrever.
Viera Portuense (1765,1805), Cena Campestre

Fonte: A.M.T, 1771-1800, pag. 211

5 de julho de 2012

Mistérios da Madalena



Dois jovens portugueses conhecem-se em Amesterdão. Donde és, donde vens?
- De Tomar,
- De Lisboa. De Tomar mesmo?
- Não exactamente, de uma aldeia perto, Cem Soldos!
- Cem Soldos? Sério! ? Conheço, a família da minha mãe é de lá perto, Porto da Lage, sabes?
- Tás a gozar!
- Pois, tás a ver a estrada da bomba da gasolina que vai para o Paço, é a única casa velha que lá está!
- O quê, a casa da nespereira é tua?
- É da minha família, sim.
- Oh pá, não inventes!
E o natural de Cem Soldos voltou costas indignado. E, apesar de frequentarem os dois os mesmos círculos durante alguns dias, nunca mais falou ao outro. Que não percebeu a razão. Nem eu.

4 de julho de 2012

Dia da Rainha Santa

Isabel, Rainha de Portugal, Francisco Zurbaran, 1640
Pois que Deus vos fez, Senhora,
Fazer do bem sempre o melhor                                                        
E de ser tão sabedora,
Em verdade vos direi:
Érades boa para Rei!


E pois sabedes entender
Sempre o melhor e bem escolher,
Verdade vos quero dizer,
- Senhor que sirvo e servirei:
- Pois Deus assim o quis fazer,
Érades boa para Rei!


Pois sois de Deus obra sem par
No bem sentir; no bem falar
Nem outra igual se pode achar.
Meu bem, Senhora, vos direi:
Se Deus quisesse assim mandar,
Érades boa para Rei!
 
D.Diniz (1261,1325) *

Foi o nosso rei trovador, escreveu inúmeras cantigas de amor e de amigo dedicadas às inúmeras, ilustres e não tão ilustres, amadas. À sua mulher (a rainha santa), a quem, parece, não o ligavam sentimentos capazes de inspirarem poemas daquele tipo  dedicou os versos acima que, pelo menos, revelam respeito e grande admiração.Ter-lhe-à bastado a ela? Ainda que santa? Ou foi santa (também) por causa disso?

Nau Catrineta










Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.
"Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar."
"Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar.
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar."
"Deitaram sortes ao fundo,
qual se havia de matar.
Logo a sorte foi cair
no capitão general"
- "Sobe, sobe, marujinho,
àquele mastro real,
vê se vês terras de Espanha,
ou praias de Portugal."
- "Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas,
que estão para te matar."
- "Acima, acima, gajeiro,
acima ao tope real!
Olha se vês minhas terras,
ou reinos de Portugal."
"Alvíssaras, senhor alvissaras,
meu capitão general!
Que eu já vejo tuas terra

e reinos de Portugal.
Se não nos faltar o vento,
a terra iremos jantar,
Lá vejo muitas ribeiras,
lavadeiras a lavar;
vejo muito forno aceso,
padeiras a padejar,
e vejo muitos açougues,
carniceiros a matar
 







 
Antes a estação

Agora engaiolada


Também vejo três meninas,
debaixo de um laranjal.
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,

A mais formosa de todas,
está no meio a chorar."
- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar"
- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
Que eu tenho mulher em França,
filhinhos de sustentar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar."
- "A Nau Catrineta, amigo,
eu não te posso dar;
assim que chegar a terra,
logo ela vai a queimar.
- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."
- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."
- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar"
- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar.
Que assim como escapou desta,
doutra ainda há-de escapar"

Lá vai a Nau Catrineta,
leva muito que contar.
Estava a noite a cair,
e ela em terra a varar.

(Popular)

2 de julho de 2012

Quando


Quando o meu corpo apodrecer e
eu for morta 
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de
bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.




Sofia de Melo Breyner (1919,2004)

Tinha uma pedra

Antes
No meio do Caminho                                                    

No meio do caminho tinha uma pedra                                       
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

Agora
Carlos Drummond de Andrade (1902,1987)          

28 de junho de 2012

São Pedro

Não é poema simpático, não senhor, mas é com boa vontade, no dia do santo, e é de Poeta.

S.Pedro

Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos trez que traz velhice   
Ás festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um phenomeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho d'essas chaves —
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquelle passo do Evangelho
Do "Tu és Pedro" etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.

Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso — fecharem-me — não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
                                                                         

            
                                                                        
                                                                     Que o estar fechado faz-me mal
                                                                                      Até na beatitude do teu céu,
                                                                                      Entre os santos do paraíso,
                                                                                      (A liberdade — Deus dá a Deus —
                                                                                      Um Deus que não sei se é o teu),
                                                                                      O estar fechado, aqui ou alli, dizia eu
                                                                                      Faz-me terríveis cócegas no juizo.



Grão Vasco (1475,1542) São Pedro


Enfim, que direi eu de ti,amigo
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongorica,
Por fruste deselegante,
Como de quem. sem saber nada. exhausto,      
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.
 Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O peor é que nada d'isso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandies cinicos desdens.
Que diabo, és uma série de ninguens.
        O Santo são as chaves,e não tu.
                                                       
                                                      

                                                        
                                                       Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
                                                       Para outros as barbas já citadas,
                                                       Para uns o tal fatidico chaveiro
                                                      Que fecha à chave as almas sublimadas.
                                                      Para uns tu fundaste a Roma do Papado
                                                      (Andavas bêbado ou enganado
                                                      Ou esqueceste
                                                      O teu posto quando o fizeste)
                                                      E para outros enfim, como é o povo
                                                      E segundo as ideas que elle faz,
                                                      És quem lhe não vem dar nada de novo —
                                                      Umas barbas com S. Pedro lá por traz.

                                                      É difficil tratar-te em verso ou prosa,
                                                      Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
                                                      Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
                                                      E a alma mais humilde é clamorosa
                                                      De qualquer coisa que se possa ver,
                                                      Em sonho até, qual se estivesse perto.

                                                      Olha, eu confesso
                                                      Que nunca escreveria
                                                      Este vago poema, em que me apresso
                                                      Só para me ver livre do teu nada,
                                                      Se não fosse para dar um cunho
                                                      A este livro da triologia
                                                      (Santo António, S. João, S. Pedro —
                                                      De popular, que bem que soa!)

                                                      Mas porque diabo de intuição errada
                                                      E que vieste parar a Junho
                                                      E a Lisboa?

                                                      Isto aqui ainda tem
                                                      Um sorriso que lhe fica bem,
                                                      Que até, até
                                                      No teu dia,
                                                     (O estupor velho
                                                     Como um chavelho,)
                                                     Nas ruas
                                                     O povo anda com alegria,
                                                     É fé,
                                                     Não em ti nem nas barbas tuas
                                                     Mas no que a alegria é.

                                                     Olha, acabei.
                                                     Que mais dizer-te, não sei.
                                                     Espera lá, olha
                                                     Roma, fingindo que viceja,
                                                     Lentamente se desfolha.
                                                     Teu ultimo gesto seja
                                                     Um gesto volvente e mudo.
                                                     Se tens poder milagroso,
                                                     Se essas chaves abrem tudo,
                                                     Deixa esse céu lastimoso.
                                                     Deixa de vez esse céu,
                                                     Desce até à humanidade
                                                     E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
                                                     As portas do Inferno, e da Verdade.

                                                  Fernando Pessoa, Os Santos Populares



27 de junho de 2012

Leituras de Verão






Não resisti a roubar  daqui http://diasquevoam.blogspot.pt/ . Senhores, o que eu li disto!
Metida dentro de antiga  arca de guardar cereais, na penumbra de um  celeiro, durante um Verão escaldante em Porto da Lage! Em dias iguais aqueles que, calculo, se fazem sentir hoje por lá!

25 de junho de 2012

SEC.XVIII

                                        

O  ouro do Brasil; o esbanjamento de D.João V; os coches doirados enviados ao Papa; as casacas de brocado e cetim bordados a ouro; Mafra e as procissões. O Marquês e o suposto desenvolvimento; o "meter na ordem" o jesuíta e o nobre incapaz. A rainha louca e o "reviralho".

Eis os clichés do século XVIII. Todos criados no século que se seguiu pela classe que se seguiu - a burguesia engrandecida naquele século, que tratou de acabar com um mundo, separarando eficientemente cabeças dos respectivos corpos, produzindo brutalmente, com carvão, vapor e milhões de horas de trabalho de ex-camponeses, outro mundo. O que conhecemos. Com cidadãos nascidos iguais, com os mesmos direitos, com bem estar. Por quanto tempo? 

A burguesia, a fonte maligna da riqueza e de todos os males e a fonte benigna dos nossos princípios e da nossa democracia, dependendo da ideologia de quem vê, foi sempre incipiente em Portugal, tal a vontade que sempre teve de subir ao patamar seguinte. Era a forma de se sentir respeitada, pois parece que o tuga teve sempre o seu fraquinho pela fidalguia e vontade de ridicularizar quem se queria "agigantar" através do subir na vida por meio do trabalho.
Eis um exemplo, da "middle-class" achincalhada nos seus hábitos de imitação da nobreza:




                                              O colchão dentro do toucado
                                          
                                           Chaves na mão, melena desgrenhada,
                                           Batendo o pé na casa, a Mãe ordena
                                           Que o furtado colchão, fofo e de pena,
                                           A filha o ponha ali ou a criada.

                                           A filha, moça esbelta e aperaltada
                                           Lhe diz co´a doce voz que o ar serena:
                                           “Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
                                           Olhe não fique a casa arruinada …”

                                          “Tu respondes assim? Tu zombas disto?
                                            Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
                                             Já a mãe não tem mãos?” E dizendo isto,

                                            Arremete-lhe á cara e ao penteado.
                                            Eis senão quando (caso nunca visto)
                                            Sai-lhe o colchão de dentro do toucado.

                                           Nicolau Tolentino de Almeida (1741-1811)