Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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30 de janeiro de 2013

Porto da Lage nas Memórias Paroquiais


Padre Luís Cardoso [entre 1700 e 1750?]. -Colecção de
 Pintura da BNP. Galeria dos Padres Oratorianos

O Padre Luís Cardoso é o precursor no sec.VXIII (c.1732) de estudos de caracterização do território português, fundamentadas em inquérito, que dão origem à publicação entre 1747 e 1751 de dois volumes do seu Dicionário Geográfico, o qual ficou incompleto.

Após o Terramoto de Lisboa, o seu projecto é retomado em 1758, agora com iniciativa estatal, e o questionário de base (destinado a ser respondido pelos párocos) ampliado e dividido em três grandes partes: a paróquia, a serra e o rio.
Sobre a primeira gizaram-se 27 perguntas. Queria-se saber, por exemplo, onde ficava situada, de quem era a jurisdição da localidade, qual a sua população, que título tinha o pároco e que rendas tinha a igreja; se havia conventos, hospitais, misericórdias, ermidas e romarias; se tinha alguma feira, privilégios e antiguidades, fontes ou lagoas, ou muralhas e castelo, bem como personagens ilustres. Perguntava-se também pelos serviços de correio, pelas produções da terra e pelos danos do sismo de 1755.
No respeitante às serras, o objectivo seria conhecer o nome, dimensões, cursos de água ou minas que ali nascessem,   plantas, tipo de clima, gado ou caça que ali existissem.
                                                                                                                                                                   
Sobre os rios apurava-se o nome, o fluxo e volume das águas, a navegabilidade, bem como as pescarias, o cultivo das margens e o aproveitamento e propriedades das águas. Inquiria-se também sobre a existência de pontes e se em algum tempo se retirou ouro de aluvião das suas areias.De notar que qualquer uma das partes encerrava com a recomendação: “E qualquer outra coisa notável que não vá neste interrogatório”.
Ao todo, a Torre do Tombo guarda 44 volumes de Memórias Paroquiais, todos manuscritos e disponíveis online  http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4241804 . As paróquias apresentam-se, de modo geral, ordenadas alfabeticamente, embora algumas vezes apareçam na letra do actual concelho, ou antiga comarca, como é o caso das de Tomar, que aparecem em T(a quem interessar, as paróquias de Tomar fazem parte do n.º52, constante do tomo 36).


 A forma da resposta dada pelos párocos varia,  podendo constituir um excelente repositório sobre a zona, dependendo da prolixidade do pároco. Enquanto uns copiaram de novo as questões, outros limitaram-se a responder de forma ordenada, mantendo o número da pergunta no seu texto. Outros redigiram um texto compacto sobre o inquérito sem assinalar as perguntas.

Três exemplos desta circunstância estão muito próximos de Porto da Lage – os párocos de Assentis, Cem Soldos e Beselga (imagens dos manuscritos representadas abaixo). Este último colocado aqui apenas a título de exemplo (cópia da pergunta seguida da resposta) pois infelizmente pouco mais se pode concluir dado que só esta página se encontra legível.
Os dois primeiros, duas almas desconhecidas que nos deixaram há muito mas sobre as quais não nos será difícil, sem inventar muito, dizer que não devem ter tido muito em comum, salvo os respectivos cargos. Enquanto num ressalta o empenho, a vontade de mostrar o que se passa na sua jurisdição, o outro dá a impressão que despachou (despachou é como quem diz) a obrigação mal e porcamente e depois de muito instado.Basta olhar para as datas, enquanto um escrupulosamente respondeu logo no ano em que recebeu as perguntas, quiçá no próprio mês, o outro esperou por...1762, só quatro anos depois.  Feitios. Dou de barato que o primeiro seria um manga de alpaca “avant la lettre”, um coca-bichinhos chato, sempre a cumprir e a querer agradar aos superiores e o segundo um rebelde que "se estava nas tintas" para as modernices iluminadas vindas da capital. Talvez no seu tempo este suscitasse mais simpatias que aquele, mas, duzentos anos depois, como dá jeito aquele padre ... certinho e cumpridor.
Só mais uma achega (especulativa)  para ajudar a compreender o comportamento dos dois párocos. O de Assentiz, sendo esta uma paróquia de Torres Novas, estava na dependência do patriarca de Lisboa, poder da capital e portanto mais próximo da tutela do poder central. Por outro lado, o da Madalena pertencia à Prelazia de Tomar, território canonicamente independente dos bispados portugueses, cujo Prior era frei da Ordem de Cristo e só respondia perante o Papa. Talvez em 1758 a Ordem ainda estrebuchasse perante as ordens do Marquês de Pombal!

Esta "arrogância" dos freis de Cristo continuará talvez ainda, nos dias de hoje, nos responsáveis tomarenses. As "memórias paroquiais" são verdadeiras fontes históricas populares em quase todos os concelhos portuguesas. Remotas freguesias conhecem a sua história de há duzentos anos graças às "memórias" que as suas Câmaras Municipais em boa hora editaram, exemplo disso é Assentiz que popularizou as suas "memórias". Em Tomar nada disto sucede. Nem digitalizadas existem na Biblioteca Municipal! É um facto que são, a maioria delas, a de Santa Maria dos Olivais incluida, pouco informativas, mas sempre dizem alguma coisa sobre a terra de cada um e as pessoas ligam mais importância a isso do que, à primeira vista, se julgará. mas outras há, como Asseiceira e Paialvo que mereceriam publicação! 








Assentiz







Madalena (documentos aparentemente misturados com Casais)

Beselga 





27 de janeiro de 2013

Valha-nos Nossa Senhora da Piedade


Altar da Capela de Nossa Senhora da Piedade, Tomar



Quando entendi que devia tomar aqui posição sobre esta coisa repulsiva que Henrique Monteiro descreve de forma que subscrevo totalmente, lembrei-me da Pieta de Miguel Angelo, para a ilustrar.
Porque nunca a dor resignada de uma mãe foi tão bem representada como nesta estátua do artista renascentista e porque resignação para uma mãe não é aceitação, é a revolta contida que eu  compartilho inteiramente com esta mulher a quem o Estado se arroga o direito de determinar o que ela deve fazer com um direito natural e humano (e, no caso dela, até divino, segundo a sua fé)  que só a si diz respeito: o de dar à luz. Primeiro, "contratualizando" a sua esterilização e, de seguida,   retirando-lhe os filhos.
Mas depois, por associação de ideias, ao analisar as razões que técnicos e juízes pronunciaram para justificar tão peregrinas ideias, lembrei-me, como sempre me  sucede perante a emergência dos recentes valores que levianamente mandam às ortigas principios estruturantes da nossa civilização,lembrei-me, dizia,   da velha história da humanidade,  e do que pensariam sobre isto  gerações de mulheres que pariram mais de uma dezena de filhos cada uma, sabe-se lá em que condições, para dar origem a esta qualidade de gente actual que desempoeiradamente  produz decisões destas! Pena não terem[aquelas decisões] efeitos retroactivos!
Dessas mulheres, lembrei-me particularmente das que me são próximas, gerações de avós com verdadeiras ninhadas que iam exibir à Senhora na primeira saída que faziam após o parto, lá ao alto do monte, em Tomar. As minhas avós, as mães delas, a minha e eu própria, fomos à Senhora da Piedade pedir a benção para os nossos filhos!
E graças a esta cadeia de lembranças, a humilde e tosca imagem da Pietá da minha terra ocupa o lugar da do grande génio, e, na presença Dela, em memória das minhas duas avós tomarenses, eu repito o que tantas vezes ouvi da boca delas e rogo, perante os desvarios deste perigoso mundo - Valha-nos Nossa Senhora da Piedade.



Pietà, Michelangelo, Vaticano


21 de janeiro de 2013

A tia Conceiçãosinha

[Redacção onde se conta a assombrosa história da assombrada relação de uma miúda de dez anos com a sua especialissima tia-avó portalagense, mais uns apontamentos posteriores que nem interessam nem se percebem mas que a autora não quis cortar porque a redacção já é antiga e ela (a autora) também e tem destas coisas (de velha) de não querer mexer no que já está.]
John Everett Millais-1829, 1896 “Ophelia”   retirado daqui





A tia Conceiçãosinha exercia em mim um fascínio avassalador. Não conseguia deixar de a procurar, de a espreitar. Mas aterrava-me. A tremer, procurava todas as vezes fazer-me encontrada com ela para, logo de seguida, fugir apavorada.

Vi-a, a primeira vez, quando desfolhava o álbum de fotografias de família. Mesmo no fim, preso à contracapa, ocupando-a quase toda, um envelope fechado, grande, azul, de cartolina.

Quando o abri saltaram-me prontamente aos olhos os sapatos de saltos, brancos. Estranhei - era pouco habitual aquele primeiro plano. Vendo melhor, verifiquei tratar-se de uma mulher, de branco, rodeada de flores. Mas os sapatos continuavam a ressaltar, pior, as suas solas viam-se bem demais. A senhora só podia estar deitada! Algo me intuía a ficar pouco tranquila.

Fui perguntar. Resposta – é a tia Conceiçãozinha! E se eu ainda não a conhecia era pelo motivo aparentemente simples de estar morta. Ora, o estado de morta não era inédito naquele álbum, muito poucos dos presentes ainda pertenciam a este mundo. Mas porque estava ela naquela posição? Porquê tanta cerimónia, porquê dentro do envelope azul fechado?

Era o respeito e a saudade filha, a tia Conceiçãosinha estava realmente morta ali, repousada, onde eu a estava a ver. Não era, portanto, como os outros que tinham ido pelo seu pé, ao colo, de burro, sei lá, pelo menos respiravam, quando se tinham posto em frente à câmara fotográfica, julguei perceber eu.

A tia Conceiçãosinha já tinha fa-le-ci-do quando lhe tiraram o retrato!!!!???? E o que estava à minha frente era um ca-dá-ver, vó? – Não se diz assim filha, este é o corpo da tia Conceiçãosinha, coitadinha quando faleceu nunca tinha tirado um retrato, antigamente era assim, e a mãe para ficar com uma recordação mandou tirar-lhe o retrato, o fotógrafo até foi lá a casa. Vês como está linda, vestida de branco, dizem que as feições eram assim mesmo, que está tal e qual ….

O facto de a tia Conceiçãosinha não se ter incomodado a andar em bolandas, depois de morta, a caminho do fotógrafo, o qual tinha feito o favor de se deslocar, coisa a que a minha avó parecia dar tanta importância, não me comoveu. Também não me convenceu a ideia bizarra ditada pela dor da pobre mãe. Mas aquilo que me levou ao estado de completo agastamento foi o de ter de se considerar a tia Conceiçãosinha linda!

Linda, aquela coisa a preto e branco, reparando bem, morta e esticada, de olhos fechados, era aquilo belo em qualquer momento, fosse onde fosse? Mesmo antigamente, mesmo dando o desconto que tudo se passara antigamente, aquilo sítio longínquo justificativo para onde me remetiam e que devia ficar ao lado do “quando fores crescida” quando a explicação não estava ao meu alcance!

E mantive-me irredutível! Aquela tia era feia e tudo o que a rodeava horrível e medonho. Se eu conhecesse a palavra teria dito macabro. Era o que eu sentia perante aquela cena gótica, que transpira funebridade por todos os lados, o vestido, as flores nos cabelos, as mãos postas com o bouquet de noiva entre as mãos, tudo envolto em mesclas de cinzas sombrios! Não deixa a desejar nenhum quadro pré-rafaelita, digo eu agora, pelo contrário, a falta de cor fá-lo ganhar em autenticidade mórbida.

Não posso negar qualidade ao retratista, fosse lá quem fosse, que se dignou, por compaixão ou interesse, pôr-se em viagem com toda a sua parafernália até uma aldeia, tirar um retrato para minorar as mágoas de uma mãe. Conseguira captar de tal modo a atmosfera sepulcral que eu, mal grado a minha bravata ao chamar, alto e bom som, feia à tia, tinha tanto medo dela que nunca mais peguei no álbum da sua morada sem me tremerem as mãos.

Mas tinha uma compulsão em fazê-lo. Sonhava com isso e com a oportunidade de o levar a cabo. A oportunidade residia em estar sol, as janelas bem abertas e eu saber que estava alguém em casa suficientemente distraído para não ver a minha triste figura.

Dadas estas condições a cena passava-se assim: eu entrava na saleta onde estava o álbum, de preferência à hora de entrarem a jorros os raios do sol, de uma das janelas, punha-o no chão no local onde a luz batia no soalho encerado, abria-o na contracapa e olhava para o envelope azul. Levantava-me e ia certificar-me se a avó ou a tia Alice estavam cá em cima (nunca eu abriria o malfadado álbum sozinha em casa) e estariam a coser ou a fazer qualquer outra coisa que as impedisse de me aparecerem de repente. Confirmado isto, abria a porta da rua e deixava-a escancarada. Voltava ao álbum e abria o envelope de mãos frias e garganta seca. Procurava abarcar mais uma vez toda aquela teatralidade funéria, enquanto sustinha a respiração. Aguentava esta visão até o pavor e os pulmões mo permitirem. Quando não podia mais, fechava o envelope, atirava com o álbum para o lugar dele e corria espavorida escada abaixo. Eu sabia que o atropelo causado por este meu ímpeto causaria um – mas o que é que se passa menina, o que é que te deu? que me traria à realidade e me acalmaria sem ninguém adivinhar nunca a causa.
E esta aventura não se repetiu só uma ou duas vezes. A tia Conceiçãosinha esteve muito presente na minha vida enquanto morei naquela casa. Aliás, como era seu direito, pois não era ela responsável pela minha existência?






[A tia Conceiçãosinha, não sendo minha ascendente directa (era minha tia-avó, morrera em 1918 ou 19, vítima da gripe espanhola), contribuiu necessariamente para o meu passeio por este mundo,  pois foi por causa do seu luto que o seu irmão, o meu avô, conheceu a minha avó.]


Eu devia-lhe, portanto, a vida. Coisa, ao que parece, bem valiosa, a julgar pela dívida  pesada que tive de pagar. O que eu sofri.

Mas depois da infância nunca mais a vi.

Mais tarde, tornámo-nos a encontrar, pela última vez, espero, em circunstâncias que tornaram a tia Conceiçãosinha célebre.

Estava eu na faculdade quando, um dia, entrei apressada numa aula. Tinha-me atrasado a tirar fotografias numa máquina, para entregar na secretaria. Sentada na sala, impunha-se, de imediato, olhar para as fotos, nem as tinha visto devido à pressa. E reparei. Era uma fila de quatro rostos iguais, brancos marmóreos, emoldurados por sombras de várias tonalidades de cores acinzentadas que tornavam a trunfa esguedelhada completamente desagarrada da cabeça, fazendo-a parecer uma coroa. Dei um salto - irra, mas é a tia Conceiçãosinha! Ao silêncio imediato do professor, seguiu-se-lhe o – como minha senhora? (era a Universidade doutras eras, os professores tratavam-nos assim), o meu sorriso amarelo, o burburinho dos colegas.

Mas a imprecação do professor foi o que menos me ralou (interrompido, com razão, na prelecção da sua ciência certa de política económica, a que, infelizmente, não pude dar o devido valor, quando foi ministro, possivelmente dada a minha desatenção àquela aula) pôs-me doente, isso sim, ver-me igual à tia Conceiçãosinha. Fiquei chocada, todo o tremor antigo me  reentrou no corpo. E, para o esconjurar, tive que, imediatamente dar conta desse receio ao vizinho do lado. Toda a turma se inteirou, interessada, logo ali. Estou em crer que foi então, por causa da tia Conceiçãosinha, que toda a minha geração perdeu a oportunidade de gerir o país em condições, não fui a única a perder a aula. O que nos valeu foram os outros, os que não tiveram a tia Conceiçãosinha presente nas suas aulas, tomarem conta deste nosso lindo Portugal da forma que sabemos

Pois a partir daí, até ao fim do curso, todo o elemento feminino se dizia ficar uma tia Conceiçãosinha quando se não gostava de ver nas fotografias e pior, o masculino (a grande maioria, sim, que eu ainda pertenço a parte de um século em que a gente vivia rodeada deles por todo o lado) passou a classificar de tia Conceiçãosinha todas as infelizes que não lhes caíam em graça, diziam eles, mas que não passavam de grandessíssimas dores de cotovelo.

Foi na boca deles que a tia Conceiçãosinha, impoluta menina cujo único pecado fora, depois de morta, ter sido dada a conhecer por esta desbocada e desleal sobrinha neta, passou a ser sinónimo de megeras fantasmagóricas que encantavam os pobres rapazes e os deixavam para sempre convertidos em tristes sapos à espera do beijo da próxima. E muitos ainda hoje se encontram nesse estado.

Andam por aí errantes, professores catedráticos de borla e capelo a desfilar nas solenes cerimónias académicas, executivos de camisas de riscas e punhos brancos, mais recentemente, brilhantes comentadores de televisão, que tiveram ao longo das suas arriscadas e voláteis vidas sentimentais muita tia Conceiçãosinha que lhes assombrou o coração e devido às quais, não fugindo a tempo, choraram depois no ombro da seguinte.

É o que dá não se terem precavido a tempo, não se terem colocado debaixo de um protector raio de sol quando olhavam para ela e, depois, fugido a sete pés. (MFM)

Nota final: se a tia Conceiçãosinha fosse bonita e a cores como a "Ophelia", parece-me que a nossa relação não teria sido diferente. A "coisa" continua lá, apesar dos olhos arremelgados e dos nenúfares. 

13 de janeiro de 2013

Vida de cão Tuga

Vida de cão I

A doidice colectiva que anda a varrer este país nos últimos dias (que só pode ser  explicada como uma manobra de evasão para fugir da realidade, os psicólogos dirão) em que, por motivos absolutamente trágicos que nem me atrevo a repeti-los, tal o horror que sinto, é protagonista um cão em processo de abate, não tem melhor descrição que a de Daniel de Oliveira.

Além de concordar inteiramente com ele (o que é quase inédito) acrescento mais: nasci, cresci, vivo e espero viver sempre com a companhia daqueles fiéis e queridos amigos, alguns dos quais vi partir para lhes quebrar o sofrimento, outros porque a sua vida era incompatível com a nossa (para prevenir situações como a da notícia), e não me considero menos sensível do que as vozes histéricas que conseguiram arrastar atrás de si milhares de generosos impulsivos que se comoveram com esta particular  vida de cão. Mas isto da sensibilidade é coisa discutível. O que não se discute é que eu tenho, e felizmente a maioria sensata também tem,  uma coisa que lhes falta: humanidade.
 
 
Vida de cão II
 
Outra maluqueira de massas, esta sim já a posso classificar de rídicula (se tenho que explicar porque é que a outra não é rídicula, meu caro leitor, decididamente não nos entendemos) é aquela de sacrificar uma pobre coitada só porque ela fala com os dentes cerrados e quer juntar dinheiro para comprar uma mala Chanel, o seu desejo de 2013!
As pensantes almas nacionais, as modernas, as que andam nas redes sociais, indignaram-se, acharam uma afronta! Queriam que ela, qual miss universo, pugnasse pela paz no mundo ou, mais  patrioticamente, pelo fim da troika?
Nada a fazer, isto está-nos no sangue, quem não vive "com o credo na boca" de acordo com a religião do momento, fogueira com ele!
A desgraçada lá se arrastou ao santo ofício, perdão, à TV, ajoelhou, fez a sua contrição, jurou e trejurou que sabia que havia pobrezinhos, que a família dela tinha baixado muito de nível de vida, que só ganhava 700€, que a chanel pronto, tá bem, era uma fantasia, enfim, perdoável, não concretizável, que tudo estava descontextualizado. Prometeu que ia ajudar toda a gente que lhe pedisse,  no mundo da moda (vou aproveitar e vou-lhe pedir/exigir  umas dicas, toma que tavas a pedi-las, já que pecaste, agora pagas) e finalmente (como se esperava, abjurou a sua fé, que a rapariga é fraca e a tortura horrível)  contextualizando, desejou para 2013 uma vida melhor para os portugueses, que os jovens arranjem emprego, etc, etc (a oração toda).
 
E agora, estão satisfeitos? Tudo hipocritamente consertadinho, à vontade do tuga? 
 

As idades do mar





Retirado de http://www.gulbenkian.pt/object160article_id3787langId1.h 
Sou uma planta de sequeiro, de longínquas planícies douradas que aspiram, sequiosas, por água, para frutificar e  crescer.
Por isso o mar, aquela mole imensa de água inútil, sempre me foi um corpo estranho. Quando o procurei conhecer, e tentei, tirando o prazer físico do mergulho nas suas ondas,  reconheço que não ficámos amigos.
Não me transmite tranquilidade nem acalma, não me faz rir nem sequer companhia e, quando conversamos, só me consegue angustiar.
E no entanto, sendo-me estranho, não me é indiferente pois provoca-me emoções, desagradáveis, mas emoções. Penso que não será indiferente a ninguém.
A exposição que está a acabar na Gulbenkian  mostra-nos, de um modo peculiar, como estes 7/10 do nosso globo terrestre agem sobre a humanidade, sob o olhar de pintores de várias correntes estéticas.
E, mais uma vez, perante a mestria da pintura, nalguns quadros e pintores mais do que noutros, naturalmente, senti a voracidade daquele espaço enigmático que oprime, sufoca e pode levar à vertigem os nossos pobres seres insignificantes. Mas não foi só isso que senti. E fiquei com esperança.
Talvez, um dia, eu consiga sentir, através dos meus próprios olhos, o que vi através dos de outros, a bonança libertadora das águas luminosas do mar.


12 de janeiro de 2013

Por falar em Paciência



Ex.mo sr. Presidente da
Junta de Freguesia da Madalena


 




 


Serve a presente para manifestar junto de V.Exa o gosto de tive em ver V.Exa,  lamentavelmente apenas deste modo, e apresentar-lhe os meus cordiais e muito sinceros cumprimentos.
Não tenho o prazer de conhecer pessoalmente V.Exa , penitencio-me por nem o nome de V.Exa conhecer, bem como, igualmente, desconhecer a obra que V.Exa , estou certa, leva a cabo, com todo o empenho, na edilidade que os eleitores, muito sabiamente, confiaram à superior direcção de V.Exa.

Estará V.Exa estranhando que eu, desconhecendo-o embora, tenha começado por afirmar o gosto que tive em vê-lo. Pois reitero o prazer que senti, não só em ver, mas, mais do que isso, em ouvir V.Exa.

V.Exa, surpreendentemente, declarou, hélas, num arrebatador minuto, em palavras entendíveis, sãs, escorreitas e, inesperadamente portuguesas (o som não lhe fez justiça mas eu percebi), tudo o que era preciso ser dito. V.Exa é extraordinário!

Bem haja V.Exa não só porque diz o necessário mas também pela seriedade patenteada.

Deslumbrou-se Vexa pelo microfone? Não deslumbrou. Imitou o sr. Presidente da Câmara com palavras irrepetíveis por qualquer ser pensante? Não imitou. Tem V.Exa aspirações a maiores voos políticos? Não tem.
Atrevo-me a responder por V.Exa por estar certa de não estar longe do pensamento de V.Exa . Quisesse V.Exa outro futuro e outro comportamento seria o de V.Exa , mestres e exemplos não escasseiam.


Imploro a compreensão de V.Exa para a feição desusada do estilo desta missiva, mas saberá V.Exa que se apossa de mim, em certas ocasiões, um espírito (de contradição), contra o qual luto ingloriamente desde tenra idade, que me obriga sempre, sempre, a correr contra a corrente. No caso presente, a correnteza leviana da moda das palavras,  que me faz preferir a gongorice rebuscada (que sempre dá uso ao dicionário) ao resmungo (não digo rosnar por respeito a V.Exa ) afectado, soluçante, palavroso mas de léxico pobrissimo e repetitivo, muito popular na linguagem de hoje em dia, sobretudo entre  os colegas de V.Exa (refiro-me aos do governo e de outros poderes desta desditosa pátria, não aos da honrada profissão que V.Exa exercerá e que ignoro qual seja).

Patenteio junto de V.Exa a minha gratidão pela benevolência demonstrada por V.Exa, ao dignar-se ler estas pobres linhas nas quais exorbito destacando este meu malfadado feitio no qual O Senhor, na sua infinita misericórdia, permitiu que o inimigo exercesse o seu demoníaco império, pois já minha querida avó, outrora freguesa da distinta autarquia de V.Exa, me augurava que, se um dia eu caísse  à ribeira, haveria de ir  por ela “acima".

Termino reiterando os meus cumprimentos a V.Exa, almejando que  V.Exa consiga todos os sucessos pessoais e políticos, para o último dos quais, com muito pesar, ao contrário do que seria o meu desejo, não poderei contribuir com o meu voto. Porém, fique V.Exa ciente, que não terá consigo, espiritualmente, mais entusiasta eleitora.



Uma admiradora incondicional






 
Fotografia da Radio Hertz
                http://blip.tv/tv_show/tomar-porto-da-lage-já-conta-com-a-farmácia-ideal-6184662


                                                                                              


10 de janeiro de 2013

Marco da Paciência



Marco da Paciência




Em Porto da Lage chamam-lhe Marco da Paciência. Contam os portalegenses que era usado quando "não tinhamos nada que fazer".



Foto
O Marco Quilométrico da Rua Silva Bueno está em processo de tombamento.


Em outras partes, marcos destes são tombados. O de Porto da Lage estará "tombado" um dia, quando, literalmente, cair para o lado, for removido para parte incerta ou mesmo destruído porque marcos há muitos, sua palerma ....


6 de janeiro de 2013

A Tigela de romã


Era uma casa feia, cinzenta, de dois pisos, com uma porta ao meio e duas janelas de cada lado*. Não me lembro como fui lá parar, sei que fui sozinha e que entrei. Da porta da rua para dentro, na porta do lado direito do patamar, era ali, tinham-me ensinado. Terei batido à porta, haveria campainha? Sei que ma abriram, sem surpresas, me mandaram sentar numa cadeira da sala de jantar e ali fiquei, de pernas a bambar, em frente à mesa, a reparar nos dois aparadores de cor castanha reluzente com vidrinhos, donde transpareciam chávenas com passarinhos e copos azulados. A mãe da Clarisse entrou, vinda da porta da esquerda, com uma grande tigela, também com passarinhos, assente nas duas mãos aconchegadas, cheia de uma matéria translúcida encarnada, atravessada por uma colher. Pôs-ma à frente, sobre a mesa. Eu olhava para aquilo e a Clarisse perguntava - não gostas de romã?

Eu não sabia o que era uma romã, nunca tinha ouvido falar em romã, era aquilo uma romã? Gotas de vidro rosadas cobertas de açúcar? Pelos vistos era de comer, peguei na colher cheia daquelas partículas e levei-a à boca.

À hora da minha morte, se comer romã, e hei-de comer se tiver pelo menos um amigo e partir no Outono como espero, a ultima colherada há-de saber-me aquela primeira da minha vida que comi em casa da professora Clarisse. Hei-de sentir as pequenas sementes a desfazerem-se entre a língua e o céu-da-boca enquanto o sumo (o molho, como mentalmente lhe chamei então), me há-de deixar toda lambuzada e cheia de prazer por ter degustado a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas aí já saberei o que hei-de fazer às sementes chupadas, e não as empurro, hesitante, de um lado para o outro dentro das bochechas. Pois a Clarisse já não irá estar lá para me dizer - se não quiseres engolir, podes deitar fora. Ai era para engolir? E toda a vida engoli as sementes das romãs. E em Outubro, pela feira, começava a comer romãs até as haver na romãzeira da horta ou alguém as oferecer lá para casa.

Agora compro-as, espanholas, às vezes durante o Outono, mas compro, sempre, sempre, no DIA DE REIS. Parece que garante dinheiro para todo o ano comer romã neste dia. São espanholas, também, estas que garantem o dinheiro.

Aquela primeira, da casa da Clarisse, asseverou-me não o dinheiro, mas o amor para toda a vida da fruta mais saborosa do mundo, a mais bela de todas.

A  Clarisse ou a mãe, uma delas, apontou para cima do aparador onde repousava por cima do naperon de renda, um prato de vidro amarelo com cinco criaturas lindas, bojudas, de coroa, coloridas na sua paleta entre o verde amarelado e o vermelhão, e eu ouvi que tinham sido duas iguais aquelas, cheias de vida antes de serem sacrificadas, que, depois de esventradas, se tinham tornado o objecto da minha gula.

E saímos daquela casa cinzenta, feia, a Clarisse e eu depois da romã comida. Era Outubro e o céu estava pequeno, ouvia-se o toque da passagem de nível fechada, quase ao lado da casa feia, depois a passagem afogueada do comboio enquanto continuávamos a nossa caminhada pelo meio da aldeia.

Os meus sentidos parece que ainda experimentam aquele primeiro dia do primeiro Outono da minha vida: a tarde quente, o embrulho dos cheiros das últimas uvas com o dos figos destilados e dos abrasadores carris de ferro; mas, mais do que tudo, o supremo deleite da primeira romã. (M.F.M)

*Já não existem estas casas, filas cinzentas, de dois pisos, onde se alojavam as famílias dos ferroviários. A REFER demoliu-as para alargar o cais, que se exibe ostensiva e desnecessariamente grande, e um parque de estacionamento. Ficavam à esquerda, na imagem

31 de dezembro de 2012

Havemos de sobreviver a 2013





Maria da Fonte
Natal de um Poeta

Em certo reino, á esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,                   
Ha quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa-fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!

E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:

Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

António Nobre, in 'Só'



O Poeta era um mentiroso, e, fado de ser português, o país interessava-lhe mais que tudo e interessa-nos sempre a nós, o pior são sempre os Carlos ou o Zé da Th'reza que nos governam, mas havemos de lhes sobreviver, assim como  Havemos de sobreviver a 2013



23 de dezembro de 2012

Coisas de que eu gosto



Machado de Castro, Presépio da Sé de Lisboa
 Nada mais encantador que um presépio. Nada mais inesperado e educativo que perscrutá-lo e encontrar-lhe a luz, a cor, e, sobretudo, os pormenores, os pormenores são a riquesa de um presépio! O anacronismo da realidade (passe o termo) plasmada, que representa a Galileia à luz da época em que o construtor do presépio viveu, é uma delicia. As situações recriadas são extraordinárias.

No presépio da casa dos meus pais, enorme, sempre acrescentado anualmente pela minha mãe com o seu fascínio  pelas populares e coloridas figuras de barro que a levava a comprar sempre mais e mais; pois, no lá de casa, no penhasco mais alto, todo alcatifado de musgo, erguia-se, imponente e inatingível, um granítico castelo medieval em cuja torre tremeluzia, orgulhosa, a bandeira verde e rubra e que era escoltado, muito adequadamente, por um guarda-republicano todo postinho por ordem, de polainas e cinturão largo! Às vezes, nalguns natais, discutia-se  a tristeza e necessidade do pobre estar sozinho, lá no morro (nós tínhamos estas influências africanas), a guardar um castelo que ninguém queria roubar, e achava-se mais útil a sua presença na gruta, perto do menino. E lá ficava ele, respeitador e perfilado, sem nunca mostrar cansaço, entre o 1.º de Dezembro e o dia de reis, um soldado da república portuguesa a adorar e, a defender, com a própria vida se preciso fosse, nunca se sabe, o rei dos reis, nascido há dois mil anos!

O  presépio representado na imagem, acrescenta à ingenuidade dos congéneres populares, mantendo a cor e o absurdo dos personagens, a mão do mestre escultor que o impregna de vida; tudo ali se mexe, fala entre si e fala connosco.
Para mim, em quem o sec.XVIII exerce uma profunda atracção, é uma visita ao maravilhoso meter-me no meio daquela multidão e sentir e viver com eles.

Em época de prendas, esta é uma que dou a mim própria. Espero que partilhem comigo, pelo menos um bocadinho, o prazer desta viagem. Admiremos o  barroco vestido florido da Virgem, os frades capuchinhos ao lado dos pescadores nazarenos de  torsos nus, o entusiasmo do rapazinho que faz a oferta a Jesus e interroguemo-nos sobre se o que o pastor disse à rapariga da criancinha, e que a fez corar, teve alguma coisa a ver com as tropelias do miúdo das cambalhotas. E tudo ao  ao som celestial.da orquestra de anjos que nos forra o céu.









E é na companhia de algo de que gosto muito, como já disse, as gentes e hábitos setecentistas, a sua arte decorativa e músical e a inocência e nostalgia dos presépios, que vos desejo BOAS FESTAS, a todos os que tiveram a gentileza de acompanhar este blog, que me deram a honra de dizer que gostavam e que sentiram a sua falta.
MFM

20 de dezembro de 2012

Feliz Natal


 Natal

Capela de S.Sebastião, Cem Soldos
Ó sino da minha aldeia,                                                        
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.                         

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto

Fernando Pessoa





Este Post é dedicado aos portalagenses, que são poucos e vivem longe,  pois  só se lembra dos caminhos velhos quem tem saudade da terra .

14 de setembro de 2012

As Férias, o Fim e a Fúria








Este blog nasceu faz hoje seis meses, e nasceu com um fim anunciado - o da minha vontade.
Não fora a fúria que nos invade neste fim de Verão e penso que não voltaria aqui tão cedo.

Assim, como não tenho jeito para colar cartazes, menos  para pintar paredes e, ainda menos, qualquer propensão para lançar bombas, fica aqui o meu contributo patriótico de publicitar a minha adesão ao NÃO QUERO MAIS DISTO. Para quem não me conhece, melhor, para quem me conhece, cá vai: nem gosto do cartaz nem me comovo com a mensagem, mas que querem? o rato Mickey esqueceu-se da convocatória e tudo é aceitável (e aproveitável) quando se prenunciam tempos amorais que me arrepiam.
Mas nem tudo é mau,  o doce de tomate da minha querida filha era (isso, era, acabou-se, até para o ano) ma-ra-vi-lho-so, como sempre.

9 de agosto de 2012

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Baía de Luanda, 1972
Mãe não tem limite,                                        
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade, 1902, 1987

À minha mãe que se foi embora faz hoje doze anos.

7 de agosto de 2012

O Jardim

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa,n.1924

6 de agosto de 2012

Poema Quotidiano

É tão depressa noite neste bairro                             
Nenhum outro porém senhor administrador     
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
                                                                      



                                                                      


                                                                      

                                                                       Nunca em tantos pés
                                                                       assim humildemente brilhou
                                                                       Orientou diz-se até os olhos das crianças
                                                                       para a escola e pôs reflexos novos
                                                                       nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

Ruy Belo, 1933, 1978

5 de agosto de 2012

Quando o Amor



Quando o amor morrer dentro de ti,                        
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
                                                               



 E se ninguém vier, ergue o sudário
                                                                Que mil saudosas lágrimas velaram;
                                                                Desfralda na tua alma o inventário
                                                                Do templo onde a vida ora de bruços
                                                               A Deus e aos sonhos que gelaram.

                                                               Ruy Cinatti, 1915, 1986

4 de agosto de 2012

Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,                  
como sereis cruéis, como sereis injustas?              
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso           
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.

Jorge de Sena,1919, 1978

3 de agosto de 2012

Escada sem corrimão




                                                    É uma escada em caracol
                                                    E que não tem corrimão.
                                                    Vai a caminho do Sol
                                                    Mas nunca passa do chão.

                                                    Os degraus, quanto mais altos,
                                                    Mais estragados estão,
                                                    Nem sustos nem sobressaltos
                                                    servem sequer de lição.

                                                   Quem tem medo não a sobe
                                                   Quem tem sonhos também não.
                                                   Há quem chegue a deitar fora
                                                   O lastro do coração.

                                                   Sobe-se numa corrida.
                                                   Corre-se p'rigos em vão.
                                                   Adivinhaste: é a vida
                                                   A escada sem corrimão.


                                                   David Mourão-Ferreira (1927,1996)

2 de agosto de 2012

Questão de Pontuação

Todo mundo aceita que ao homem
Cabe pontuar a própria vida:                   
Que viva em ponto de exclamação                       
(Dizem: tem alma dionisíaca);                            

Viva em ponto de interrogação
(Foi filosofia, ora é poesia);
Viva equilibrando-se entre vírgulas
E sem pontuação (na política):

O homem só não aceita do homem
Que use a só pontuação fatal:
Que use, na frase que ele vive
O  inevitável ponto final.


João Cabral de Melo Neto, 1920, 1999

1 de agosto de 2012

Realidade


Fomos longe demais, para voltar
Aos antigos canteiros onde há rosas.              
Em nós, o ouvido, quase e, quase, o olhar   
Buscam nas cores vozes misteriosas...

Mas o mistério é flor da juventude.
Não rima com poemas desumanos.
A idade — a nossa idade! — nunca ilude.
Só uma vez é que se tem vinte anos.

Quebrámos todos, todos os espelhos
E o sol que, neles, está hoje posto
Já não reflecte os lábios tão vermelhos
Que nos iluminam, sempre, o rosto.

Realidade? Há uma: apenas esta!
— Somos espectros na cidade em festa.

Pedro Homem de Mello, 1904, 1984

31 de julho de 2012

Elegia


Florescia                                                                                                                  
A pionia                                                         
De anos em anos, apenas.
Se a primavera
Era
Fria,
Mal se erguia
O caule das açucenas.
Rastejavam as verbenas...
Mas uma flor sempre havia
Que era a que mais rescendia:
Lembras-te, ao dar meio-dia,
Postas, tuas mãos morenas...?

Às quais sagro esta elegia

José Régio, 1901, 1969

30 de julho de 2012

Tempo

Tempo
Tempo — definição da angústia.                                         
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada





Tempo...
E não haver nada                                                                      
Ninguém,
Uma alma penada                                                     
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço                                                            
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!

Miguel Torga (1907,1995)  in 'Cântico do Homem'