Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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2 de novembro de 2014

Dia de Finados

Vincent Van Gogh, Les Alyscamps, 1888


Quando Chegar a Hora


Quando eu, feliz! morrer, oiça, Sr. Abbade, 
    Oiça isto que lhe peço: 
Mande-me abrir, alli, uma cova á vontade, 
    Olhe: eu mesmo lh'a meço... 

O coveiro é podão, fal-as sempre tão baixas... 
    O cão pode lá ir: 
Diga ao moço, que tem a pratica das sachas, 
    Que m'a venha elle abrir. 

E o sineiro que, em vez de dobrar a finados, 
    Que toque a Alléluia! 
Não me diga orações, que eu não tenho peccados: 
    A minha alma é dia! 
….


António Nobre , Só

O Dia de Finados e eu


Aurélia de Sousa (1866-1922) Dia dos Finados


Hoje é Dia de Finados. Dia dos mortos. Dia em que todos visitavam os cemitérios e iam à missa. Toda a gente ia à missa pelos Fiéis Defuntos, até o meu pai, o primeiro anti-clerical que conheci. E dos últimos, parece-me que já nem há disso, eram resquícios de novecentos e do jacobinismo, crentes que odiavam a cambada da padralhada responsável pelo atraso do país e ignorância do povo.
Quando eu era criança não tinha mortos, todos os que eu queria estavam vivos, comigo. 
Mas, em Tomar, acompanhava os mortos da minha tia Alice e da minha mãe. 
Pelo cemitério eu ia travando conhecimento com toda aquela gente que eu nunca vira, que nascera, pelo menos,  três gerações antes da minha e que agora morava ali. E enquanto se lavava a pedra das campas e se arranjava as flores nas jarras, recapitulava-se, para os pequenos, quem era quem, os  laços que nos ligavam, como e onde tinham vivido. De caminho, dava-se também um jeito nas campas vizinhas, propriedades de amizades de longa data, muitos feitas  ali mesmo, em momentos partilhados de lamentos de perda e de prosaicas ajudas no carrego do regador de água “coitadinha, agora  já cá não tem ninguém quem zele por ela, ela, que estava aqui sempre carregada de flores para os seus”, abandonadas por morte do último familiar.
Ao lado da campa dos meus bisavós Coito havia, ainda lá está, agora de mármore, uma, coberta de toscos mosaicos escuros tendo arrumada a ela, à cabeceira, uma robusta roseira com as mais aveludadas rosas vermelhas que alguma vez vi. Nos Dias de Finados, desde que abria o cemitério até ao fecho, na noite fria de Novembro, uma cigana completamente enroupada em negro rezava e chorava ajoelhada, meia envolvida na roseira, a ponto de nós, os miúdos,  acharmos ser um monte de trapos pretos coberto de rosas encarnadas. Passados anos de abandono, a campa resplandeceu, um dia, de branco, e sobre ela uma placa indicava um filho querido e saudoso, lembrando  que ali jazia  Manuel Curro acompanhado de sua mulher. A roseira lá permanece.
Depois das jarras compostas e de tudo arrumado, havia toda uma palafrenária de objectos de limpeza, tesouras, regadores  e restos de plantas a que era necessário dar caminho, pois, depois de tudo arrumado, dizia, tornávamos-nos todos circunspectos, perfilávamos-nos e rezávamos um Pai Nosso, pedindo ao Senhor pela alma ou almas específicas que ali estavam, pelos outros familiares que também estavam com Ele, não nos esquecendo daqueles que não tinham ninguém que rezasse por si. E terminávamos “Dai-lhes Senhor o eterno descanso entre os esplendores da luz perpétua. Descansem em paz. Amém”.
Hoje já tenho os meus mortos. Cada vez mais. Dizem que a velhice chega quando temos mais gente lá do que cá. Não fiz as contas, não sei se o número dos que partiram é maior ou menor, sei que a coisa não se mede à unidade, que já pesa e dói muito.
Mas aqueles que cá estão e que, Deus o permita, permanecerão depois de mim, apesar de alguns ainda não terem os seus mortos, já têm incutidas as práticas que me ensinaram em criança. Não posso, porque está para além do meu alcance, manifestar-lhes a fé que outros me mostraram, mas quero e devo fazer com que conheçam, respeitem e homenageiem a memória dos nossos mortos.
Poder-me-ão dizer que recordar um ente querido não tem que passar por visitar um cemitério, local macabro e desagradável, com mortos e tudo, o que até pode traumatizar as criancinhas.  
É verdade que se pode recordar sempre, mas quando e onde? Os Celtas reuniam-se  nos Lares para homenagear os mortos. Nada contra. Mas, se é que ainda há Celtas(?), parece-me que já não há druídas. Ir ao cemitério sempre fica mais à mão. Eu, os meus irmãos, os nossos filhos, não ficámos traumatizados por saber, em crianças, que as pessoas morrem e por irmos, anualmente, ao cemitério. Esconder a morte aos meninos não os faz mais felizes.
E depois, sempre me parece mais saudável os  inocentes infantes saberem que o avô (todas as crianças têm avós vivos) teve pais, e conhecerem  o local onde estão sepultados, do que andarem para aí, apatetados, a celebrar bruxas, procurar espíritos, enfim, a imitar americanos com fatos de Halloween numa carnavalada deprimente.
É certo que há outras culturas nas quais os mais novos prestam homenagem aos seus que partiram, mas, essas, parece que não importa muito imitar. A tolice é mais simples.

Mas esqueçamos por hoje as tolices. Em Dia de Finados, pelo menos hoje, façamos por merecer e honrar os nossos mortos. (MFM)

Nota: Com as gentes de Porto da Lage não tive experiências destas, ter-me-iam poupado ou considerariam a colocação de flores uma extravagância que o Senhor reprovaria? Mas as" missas por alma" foram inúmeras. Com o cemitério de Cem Soldos tive contacto, a partir dos funerais dos primeiros tios-avós que faleceram, depois de ser crescida. Aí vi campas  identificadas com nomes conhecidos e fui-me informando. Confesso que o resultado não foi o mesmo de Tomar. A minha memória infantil já se fora.
Mas é também um cemitério de romaria da minha família neste dia, lá repousam os meus avós Mota, e por lá vigiará o espírito de muita da ancestralidade do meu avô, pois foi, desde o início o local de sepultamento da população de Porto da Lage, Paço e norte da freguesia, em geral. Até agora, em que um novo cemitério o veio substituir, em Porto Mendo, mesmo ao lado de algo que é lindo e já teve grande significado para Porto da Lage.

8 de outubro de 2014

Chefes de Estação, Baptisados e Funerais




«A seis de Dezembro de 1891 pelas cinco horas da manhã na estação de Paialvo desta freguesia [da Madalena], faleceu esmagado debaixo do comboio e por isso sem sacramentos, um individuo do sexo masculino por nome Augusto Carvalho Saraiva de idade de 40 anos, chefe da dita Estação de Paialvo, casado que era com D. Maria da Piedade, natural de Coimbra filho legitimo de Francisco de Carvalho Saraiva e de D. Ana do Espírito Santo, o qual não fez testamento e não deixou filhos, foi sepultado no cemitério público de Cem Soldos desta freguesia.» (Assentos de óbito da Madalena, Tomar, fonte: TT)   


Imagem retirada  daqui
Em onze de Junho de 1892, nasce, na estação de Paialvo, Augusto, filho do Chefe desta estação, Barão da Alegria e de sua mulher Joaquina Eugénia Morais Alegria. Esta criança morre em seis de Junho do ano seguinte, quatro meses depois do nascimento da irmã Severina.(da leitura dos assentos de baptismo da Madalena, Tomar)

27 de junho de 2014

Tempo de Banhos



Ir a banhos, no Verão, não é coisa só de agora. O sec.XIX trouxe a moda para as classes altas e a facilidade dos transportes rapidamente a democratizou. Em Porto da Lage ia-se para a estância balnear da região, passar uma temporada ou fazer um breve pic-nic de domingo. Mas, quem podia, ia mesmo mais longe. 
Conta a lenda que se partia, depois das colheitas, em galeras puxadas a bois, carregadas com todos os tarecos necessários para a permanência mensal na Figueira da Foz. Mas, com todo o respeito pela lenda, por alma de quem é que alguém escolhia ir saracotear por montes e vales, quando tinha precisamente o comboio à porta?  Se era para ir "por terra", de galera, não ficaria a Nazaré mais perto? Pois eu tenho para mim que as minhas inteligentes ascendentes, pois eram sobretudo mulheres, deixavam os homens com os seus afazeres, entrando assim logo de férias, embarcavam na estação local,  atreladas a todas as suas inúmeras crianças e pertences e lá iam até Alfarelos de onde saltavam, num pulinho, a engolfarem-se no areal da Figueira. Onde prestariam o seu mergulho diário auxiliadas pelo banheiro, só quem precisasse, por razões de saúde, evidentemente.(MFM)





Postal enviado, da Figueira da Foz, por Maria José Rosa Mota a seu filho João em Agosto de 1930





No Agroal 1957, fotografia cedida por A.V.Miguel



E com este me fico.Desejo bons banhos, para quem for de banhos, para quem não for que passe o tempo da forma que mais goste, e
até um dia destes(MFM).

7 de junho de 2014

Porto da Lage 150 anos


                                                           1864-2014



     
  Há 150 anos que os comboios passam por aqui. Foi precisamente a 7 de Junho de 1864 que se realizou, oficialmente, a primeira viagem naquela que se passava a chamar a Linha do Norte. Quatro comboios diários , dois em cada sentido, ligavam a partir daquele dia, Lisboa a Gaia.
Não existe, pelo menos não é público, qualquer estudo sobre a história da implantação do caminho-de-ferro no concelho de Tomar, com excepção do da cidade.
Um blog sobre Porto da Lage não podia deixar de procurar saber como se estabeleceu e desenvolveu o marco fundamental que deu identidade a esta localidade – a estação de caminho-de-ferro.
Logo no início do blog e depois mais amiúde, fomos publicando tudo o que encontrámos sobre a história da Estação de Paialvo- Porto da Lage.
Hoje, que se completam oficialmente os 150 anos da estação, como não temos nada a acrescentar, não porque não o haja mas porque não o sabemos, comemoramos singelamente a ocasião recordando o que fomos postando aqui.
A partir de recolhas dispersas, tentámos dar conta, do percurso desde 1856quando se inaugurou o caminho de ferro em Portugal, até à decisão e construção da linha que haveria de passar por Porto da Lage, a futura Linha do Norte, publicando posts que foram retratando as vicissitudes  por que passaram as populações e a evolução da própria estação até esta se tornar um importante centro por onde confluíam pessoas e mercadorias de uma vasta região.
A partir de extractos de actas da CMT, retirados dos Anais do Município de  Tomar de Amorim Rosa, podemos acompanhar as discussões acerca de expropriações de terrenos, evolução das obras, construção de estradas de acesso e, já depois do funcionamento da linha, os pedidos para que a estação alargasse a sua importância e nela parassem comboios mais rápidos e com mais frequência. Vimos, até, como, no auge do grande tráfego de gente e comércio que vinha do Porto e Lisboa com destino ao centro do país, os passageiros eram disputados pelos cocheiros que os esperavam à saída do comboio, para os transportar para Tomar e outras localidades, a ponto de se estabelecer a violência.
Vimos também, como uma célebre viajante estrangeira fala dos nossos campos e da beleza das nossas uvas num livro que escreveu sobre a sua viagem a Portugal, e até como o rei ,e mesmo a rainha, e outros viajantes se apearam e partiram deste  modesto cais .


Aurélio de Sousa Vasconcelos, um dos chefes da estação
de Paialvo/Porto da Lage. Fotografia cedida por Frei da 
Paz Renato




2 de junho de 2014

Uma Família de Porto da Lage




Maria José Mota



"Ela levou à certa um homem que já estava ordenado padre. Só lhe faltava dar a 1ª missa. E dele teve 12 filhos, dos quais faleceram 4." 
Assim demonstra a sua admiração por Maria José Mota, o seu bisneto Freire da Paz Renato que nos apresentou os seus ascendentes que viveram em Porto da Lage a partir dos finais de novecentos.
Aurélio de Sousa Vasconcelos, o tal destinado a padre, apaixonado e futuro marido de Maria José, acabou por ser chefe da Estação de Paialvo/Porto da Lage. 
Natural das Moreiras Grandes, Assentiz,  era filho do médico naturalista que se formou na China por onde andou uns anos, segundo as palavras do bisneto. Chamava-se o dito médico naturalista João de Sousa Vasconcelos e o nome tinha-lhe sido dado a 25.12.1833 pelo padrinho, Frei João António de Sousa Freire Almeida e Vasconcelos, do real Convento de Cristo de Tomar.

Maria José Mota que se casa com Aurélio por volta de 1894, era natural das Sobreiras, filha de António Joaquim da Mota e de Maria Rosa, neta paterna de Francisco da Mota e Maria Rosa e materna de António de Sousa e Felismina Rosa. Dos seus filhos destacam-se Irene, avó do nosso informante Freire da Paz Renato e Helena da Mota Vasconcelos, uma senhora maravilhosa de que me lembro muito bem, esposa de A.Miguel, pais de António e Armando.


Alguns filhos do casal, em Porto da Lage nos anos vinte.




Maria José Mota em 1954
Fotografias cedidas por Freire da Paz Renato.

29 de maio de 2014

Dia da Espiga








Paradoxalmente, o dia da espiga para mim é um mito urbano. Muito enraizado, sim, que os anos na cidade grande já vão sendo mais longos que os restantes. Mas sempre imprevisto. Na cidade, salvo o fim de semana e as sagradas e extintas "pontes" os "dias celebrados" não se anunciam. E eu, todos os anos dou comigo a contornar a esquina e a maravilhar-me com o alguidar de plástico de papoilas e malmequeres, enquanto comento com outros transeuntes - Pois, nunca me lembro. -Também não - respondem - é dia da Espiga. E todos trocamos os nossos euros pelos ramalhetes amarelos e encarnados que engalanam o nosso dia de trabalho. À noite, acho que já disse isto aqui um ano destes, lá se coloca o dito de pernas para o ar na cozinha para garantir "riqueza". Mas hoje foi por pouco, graças à minha famigerada garganta o alguidar escapou-me. Não fosse um daqueles amigos dos amigos que a gente não sabe quem é neste fantástico mundo digital, lembrar-se do dia e lá ficava eu sem "seguro" para o resto do ano e, pior, sem substituto para o triste e seco molho que ainda jaz dependurado na cozinha. Ficava ou fico, ainda não sei, tenho que me despachar para ver se encontro ainda algum.(MFM)



Actualizado:

Já cá a tenho, poucas papoilas este ano. E caras as espigas....
Pr'o ano trago de Porto da Lage e vou vender pr'o Saldanha. Com a minha sorte o fisco descobre o negócio, entretanto ...

 Foto retirada daqui

Casamentos de Porto da Lage


 Eis dois matrimónios de gente de Porto da Lage um na Madalena, outro em Cem Soldos. De um, temos os nomes dos noivos mas não lhes conhecemos as caras, do outro, com certeza muita gente os (se) identificará. Certo é que 360 anos os separam 


«Em os vinte e três dias do mês de março de seiscentos e noventa e nove anos na Igreja de Santa Maria Madalena se receberam na minha presença guardada a forma do Sagrado Concilio João Roiz moleiro no Porto da Lagem e Isabel Freire do Carvalhal do Pombo lugar da freguesia de Assentiz testemunhas que se acharam presentes João da Motta, João Nunes Granjão Manuel da Silva com muitas mais pessoas que se achavam presentes e aprovado foi este termo que assinei dia e mês era supra, frei António Amador.» Fonte: Registos Paroquiais da Madalena, Tomar, Torre do Tombo
Nota: João da Motta uma das testemunha, morador no Paço e natural do lugar da Ponte, Beselga, é o patriarca dos actuais Mota de Porto da Lage e Paço da Comenda.

Imediatamente atrás da noiva encontra-se o famoso Padre Nicolau, celebrante do casamento. Fotografia cedida por A.V.Miguel.

26 de maio de 2014

Rastos de Porto da Lage


Notícia da   Radio Hertz:

«O tomarense Guilherme Rosa foi eleito como 
Foto da noticia
vereador do município londrino de Lambeth 
ao merecer 1769 votos, ou seja, 18% das preferências. O militante do Partido Trabalhista britânico tem 40 anos e deixou a cidade do Nabão quando tinha 28, precisamente à procura de emprego, sendo que no seu currículo constam passagens por duas instituições bancárias.
Em declarações à Agência Lusa, Guilherme Rosa apontou como objectivos «ajudar o comércio de origem portuguesa a desenvolver-se, promover cursos de inglês para emigrantes e melhorar o acesso de crianças recém-chegadas às escolas». Sublinhe-se que em Lamberth residem cerca de 45 mil portugueses.»


Guilherme Rosa é bisneto da senhora a que se faz referência neste post.



15 de maio de 2014

Ano lectivo 1958/59

O portalegense António Vasconcelos Miguel enviou-nos esta memorável foto dos meninos que frequentaram, consigo,  a escola de Porto da Lage no ano lectivo de 1958/59. São suas as palavras que recordam a rapaziada cá da terra (em baixo). Caberá aos próprios e contemporâneos identificarem-se. Ele não o diz mas presumo que seriam de idades e classes diferentes, mas estavam todos na mesma turma? Trinta e nove (39) criaturinhas com aquelas caras, todas juntinhas!? Não queria estar na pele da professora (ou na deles) !




De Porto da Lage temos na foto: O Joãzito Brás,o sobrinho do Sr.Oliveira da Farmácia,o Miguel Mota e o Tonoca Mota,o José Luís filho do José Jaime.o filho do António Jaime, o filho do Augustito Orfão, eu e o meu irmão Armando. Lamento não recordar os nomes.

21 de abril de 2014

Marx e a velha Joana


Lembro-me de, nos encontros do meu pai com os primos, ao recordarem memórias de juventude vir sempre à baila a recordação de outro primo, que fizera o seu percurso escolar no colégio em Tomar, deslocando-se diariamente, de Porto da Lage, de burro. A ilustração da viagem do estudante era descrita jocosamente por referência a tamanhos, o "latagão" do cavaleiro, empoleirado na pequenez do burro, seguidos ambos pela minúscula e atarracada Joana, cuja presença se impunha para tomar conta “do menino” e fazer movimentar a contrariada alimária  com o pequeno caniço que empunhava.
O ridículo do quadro gerava sempre gargalhadas, não só a quem o tinha visto ao vivo, mas também a todos os que conheciam o burrical paladino dos seus dias de adulto, o qual, para além de dr. era doutoral, emproado, como foi lembrado no comentário aqui , sem humor, e, acrescento, pouco devedor à simpatia.
Porém, no meu mórbido espírito de adolescente, realçava na descrição, acima de toda a anedota e a traços bem negros, a  pobre velha, que eu imaginava descalça e cansada a calcorrear caminhos ao frio e à canícula atrás de um burro com um calmeirão montado!
E tudo em troca de um naco de pão com azeitonas ou de uma mão cheia de passas de figo, como acrescentaria a minha mãe que tinha ADN com pernoitas pelo Aljube, o que era muito bom, considerando que não morria à fome como sucedia a muitos naquele tempo, retorquiria o meu pai, que era filho de gentes de Porto da Lage!

Todo o quadro, desta feita um pouco diferente do da tradição - da velha, do burro e do rapaz - é o símbolo de um Portugal. Atrasado, analfabeto, miserável. Porto da Lage, aqui, é o pano de fundo da tragédia de época. Nela emerge uma burguesia que tira os filhos do amanho da terra pela porta grande: passam pela escola, pela Universidade os que querem, e integram-se nos serviços, no comércio, nas profissões liberais, todos.
Como estamos em período de celebração dos 40 anos, tentemos fazer uma análise sociológica daquelas do fim dos idos de setenta em que os portugueses pensantes (que eram todos, apesar do analfabetismo) eram marxistas encartados, tal como hoje (os poucos que pensam, apesar da "elevada" literacia) são a favor de Gordon ou Krugman ou ainda, como é o caso de quem nos governa, seguidores daquela corrente económica cientificamente comprovada e apelidada de  incompetente. Sinais dos tempos ou tempos assinalados. Adiante.
Concluiríamos assim, facilmente, seguindo o autor de "O Capital" , que o modo de produção de então e a correspondente estrutura social originaram os novos modos  de vida ( relações de produção, dizia a doutrina) da terceira geração portalagense ou portodalagense. E a transformação foi tão profunda que já não se apurou quarta! Como os povos antigos que chegavam, colonizavam, partiam.
Os descendentes dos primeiros portalegenses (não sei porquê mas gosto mais desta designação) ascenderam socialmente, ainda à luz do materialismo histórico, porque beneficiaram do atraso do país, na agricultura em particular, e de salários miseráveis. 





No seu plano, Porto da Lage reproduziu o que acontecia em Portugal, onde Salazar fez emergir meia dúzia de famílias. Não havia milionários, mas a aldeia destacava-se face às outras. Como vimos nas descrições de Dulcinda e Ilídio Teixeira, a vida quotidiana da aldeia nos anos trinta e quarenta era a típica de uma pequena localidade de classe média. Os rapazes, algumas raparigas já, também, vinham de férias das escolas. As mães, para além de  protegerem a reputação das filhas, cuidavam da casa, não trabalhavam no campo. Todos se encontravam para dançar e jogar bilhar no local apropriadamente chamado de "O Grémio" onde se assistia a récitas. Não há Ti Marias nem Ti Manéis, ranchos folclóricos, milhos-reis nas descamisadas, ou namoricos na fonte, de cântaros à cabeça. Os episódios pitorescos passam-se com personagens  de passagem, de locais próximos ou assalariados. Enfim, não havia pobres em Porto da Lage, apenas  uns com mais dinheiro, outros com menos.
A geração tradicional, filha dos "pioneiros" de Porto da Lage, na primeira metado de sec.XX possuía terras, comércio, serviços e indústria, nos quais os assalariados, pelo menos os menos qualificados, habitavam nas localidades vizinhas. Seriam remunerados como no resto do país e o facto de a gente de Porto da Lage possuir os chamados meios-de- produção tinha uma explicação histórica, não eram personagens especialmente maléficas ocupadas a explorar os outros. Mas as circunstâncias ajudaram a sua preponderância em relação àqueles.
Este estado de coisas, como vemos, não teve continuidade. A terra não absorveu os seus "novos" filhos que, com outras habilitações, lá não tinham acolhimento (outra metáfora de Portugal, avant la lettre?) ou estes não a julgaram à altura dos seus novos predicados? 
Ou ainda, como explicaria Marx, seria por terem deixado de existir Joanas dispostas a acompanhar latagões de burro? (MFM)


2 de abril de 2014

Um Baptismo e um Casamento


Vista de Tomar  (O Castelo e o Convento de
S.Francisco) - View of Castle and Convent of Tomar”
William Innes Pocock (1783-1836)
Em 24 de Julho de 1751 realizou-se um baptismo na Igreja de S.João Baptista em Tomar, cujo assento reza assim: João Baptista, adulto, natural de França, da Província da Lorena da cidade de Belfou, Arcebispado de Brançon, filho de Pedro Martins e de Águeda Mete, hereges que professaram a lei de Calvino e deste bando o dito João Baptista se expulsou da maldita ceita e se catequisou nos ensinamentos da nossa Santa Fé e depois de bem catequisado pelo Reverendo Padre Mestre do Real Convento de Cristo e por outros reverendos sacerdotes e com licença e mandato do Ilustríssimo Reverendo Manuel Vieira Mendes, Prelado desta Prelazia, foi por mim baptizado e lhe pus os santos óleos, foi padrinho o vigário de S.João Baptista Frei Basílio Goes e tomou por madrinha e por sua invocação a Virgem Nossa Senhora.


Ao ler esta descrição plena de animosidade contra a originária “maldita ceita” do bem catequisado João Baptista, na Nossa Santa Fé, lembrei-me de uma cerimónia religiosa a que assisti, há alguns meses, precisamente na pátria adoptiva do herege Calvino. Tratou-se do casamento, católico, de um bisneto de um portalegense, assunto, portanto, com pleno cabimento neste blog.

João Calvino, França, Noyon, 1509,
Genebra, 1564

Antes de mais, direi, perdoe-me quem está ao corrente destas minudências o enfado de ter que as ler, mas acho que tem interesse para o que segue, que, apesar da Federação Suíça ser um estado laico, tal não se verifica em muitos dos seus estados federados, os chamados cantões. É o que se passa no Cantão de Vaud, onde se realizou o casamento, que tem como religião oficial a Igreja Reformada da Suíça, precisamente de doutrina e rito calvinista. Que isto de ser a religião oficial trata-se apenas de um facto histórico e honorífico e não tira nem põe, ou não se tratassem de suíços, quando se trata de efectuar despesas.




Villars-le-Terroir

Pois, na pequena localidade de Villars-le-Terroir, de aproximadamente 800 habitantes em que a maioria, perto de 60%, são católicos, a igreja protestante, apesar de ser a igreja oficial do cantão, com os seus 22% de praticantes não vê necessidade de ter edifício próprio e pede emprestado à católica o lugar de culto, nos dias e horas convenientes que até não conflituam entre si. Basicamente, sábado para uma, domingo para a outra e os outros dias conforme as necessidades de cada uma e sempre na Paz e na Ordem do Senhor, que é só Um. Quem talvez não se sinta muito confortável com o acordo serão as imagens dos santos, que, sendo católicos, andam sempre num virote dos respectivos nichos para trás da cortina vermelha pendente dos grossos varões doirados, e de detrás da cortina outra vez para os nichos floridos e odorosos, nem sempre nas posições mais elegantes dada as frequentes jornadas a que são obrigados, como quando tive ocasião de os conhecer. Vi, por exemplo, uma “Sagrada Família” do sec. XVIII, de tamanho natural, posta de través no altar-mor, por pouco que não lhes víamos as caras, em que o S. José não escondia o enfado pela posição pouco digna em que se encontravam, fruto, sem dúvida, da pressa com que foram carregados para ali. Compreende-se, mas enfim, sempre são santos e portanto apetrechados com a respectiva paciência.   

Voltando, finalmente, à cerimónia, tendo eu naquela um lugar privilegiado, dado o meu estreito parentesco com o noivo, pude admirar perfeitamente a branca e florida igreja, de traço tradicional, edifício talvez de finais do sec. XIX, com capela-mor e grande nave de rasgadas janelas neo-góticas que deixavam brilhar lá dentro o esplêndido sol de outono daquele dia, e davam especial realce aos dois grandes púlpitos que se enfrentam simetricamente de ambos os lados da igreja. Estava eu a perguntar-me para que serviriam dois púlpitos, ainda por cima tão próximos um do outro, quando se iniciou o cortejo. É claro que o acontecimento é igual em todo o lado e quem viu um viu todos, noivo, acompanhantes, etc, músicos, acompanhantes, etc, cantores, acompanhantes, etc, segue-se o auge ….traaaaaaa!!!!! – lá vem a noiva! E fica-se por aqui!
Errado! Após o sossego do pouso dos noivos no altar e da entrada em reflexão dos presentes sobre as qualidades, ou falta delas, do vestido da nubente, eis que se seguiu, agora sim, o verdadeiro clímax! Um rapazinho de alva branca (não, não é redundância, parece que há alvas de outras cores) transportando uma cruz maior do que ele, precedia um par de adultos também de alvas, um deles de estola, os quais, depois de desfilarem juntos se separaram junto do altar-mor dirigindo-se cada um para uma das escadas dos púlpitos, chegando lá acima ao mesmo tempo e pousando, os dois, também ao mesmo tempo, ambas as mãos sobre a balaustrada de mármore. Coisa bem ensaiada, pensei eu satisfeita por já ter resposta para a minha dúvida lá de trás, agora vão cantar em coro, especulei também. Outro engano, o da estola falou primeiro. Disse ao que vinha, facto sabido, a importância do acto a que íamos assistir, coisa também farta de ser do conhecimento geral e apresentou o seu par e a razão da sua presença, isso sim, coisa da ignorância de quase todos. Então não é que ficámos então a saber que o sorridente ocupante do púlpito em frente, era, nem mais nem menos que o segundo inquilino do templo, o Pastor protestante, que vinha acolitar o colega sacerdote católico na celebração do sagrado sacramento do matrimónio do B., seu grande amigo, e a pedido deste!?
Depois, também o Pastor deu testemunho da sua honra em estar presente e as formalidades seguiram segundo a liturgia católica, sempre com a participação do convidado.

Para quem não conhece o distinto noivo diga-se que este, além de acrescer meio metro à altura do seu bisavô Mota, parece que mantém em cima do corpo a mesma cabeça daquele, pois é igual por dentro e por fora. E lá dentro, a fé e a devoção à Santa Madre Igreja e ao Santo Padre não esmoreceram em quatro gerações, pese embora o pouco entusiasmo das intermédias. 
Extraordinário, portanto, o espírito ecuménico e o valor da amizade observados neste episódio! De fazer encher de orgulho uma época e uma geração, tão, e muito bem, criticada pelo hedonismo e materialismo, mas que deixa a perder de vista, Graças ao Senhor, os tempos de intolerância e fanatismo que relembrámos no inicio. (MFM)

24 de março de 2014

Ai senhor doutor!

José Malhoa, Cócegas, 1904, Museu Nacional das Belas Artes, Rio de Janeiro


Primas e primos; aí vai mais uma estória das gentes, que ouvi contar em Porto da Lage.

A Angélica, não era este o seu nome, mulher de quarenta e poucos anos, muito crente em Deus e nos santos, arrenegadora convicta do diabo, sentia-se adoentada. O acontecimento mensal tardava a acontecer, alguma indisposição, uns enjoos e mais outros sintomas que não sabia explicar. Crente nos serviços médicos, há que utilizá-los e, pela manhã de um dia, cuida o melhor possível da sua higiene, não vá o médico notar qualquer descuido que a deixe envergonhada, veste-se com a melhor roupa lavada, uns dinheiros e um lencinho do nariz dentro do saquinho de mão, albarda a burrinha branca revestindo-a com um cobertor de lã com riscas azuis onde se senta. Para se proteger do sol, se for necessário, um pequeno guarda-chuva muito bem cuidado. Assim preparada, aí vai ela estrada abaixo na direcção da estação (Porto da Lage era assim referenciada pelas gentes das cercanias) consultar o nosso ilustre, querido e saudoso primo Pantaleão, de boa-memória.
Prendida a burrinha à grade de tijolo que encima o muro defronte do consultório, entra na sala de espera, aguardando a sua vez; ainda não é tempo das marcações prévias. Realiza-se a consulta. A nossa visada vai relatando ao clínico o que sente e, feitas as devidas observações, vem o diagnostico:
 - Quando completar os nove meses fica boa!
 - Ai! Sr. Doutor, só se foi o Espírito Santo!
- Tenho ouvido chamar-lhe muitos nomes, observa-lhe o médico em tom de graça.(Ilídio Mota Teixeira)


José Malhoa, Vou ser mãe, 1923, CMFC, Porto

17 de março de 2014

O Cinza e o Rosa


Um leitor, e comentador habitual deste blog,  lança um repto aos amigos do seu tempo, a partir do excerto de uma crónica de Vasco Pulido Valente (em baixo). 
"Porto da Lage" está à disposição para colorirem como entenderem:

Amigos do meu tempo
Seria assim? Recordem-me que não lembro disso; se é um historiador que o diz, devo ser eu que estou a perder a memória antiga. Uns tendem a cor-de-rosar o “nosso tempo”, outros acinzentam-no. 
Henrique Carmona da Mota.


12 de março de 2014

Recordar é Matar Saudades 9

                                                    

                                                 Doce



A Dulcinda foi uma modesta rapariga mais conhecida por “Doce”. Porquê? Porque quando o pai a registou uma pessoa empregada doméstica em Lisboa tinha uma patroa que se chamava Dulcinda mas a quem o marido chamava Doce. Devo a essa Alice que já partiu há largos anos o nome familiar “Doce”. Eu, para a família e alguns conterrâneos era a Doce. Hoje só os meus netos e alguns sobrinhos me tratam docemente por avó Doce e tia Doce. Quando eu era garota ou adolescente havia pessoas que, para me arreliar, me chamavam amarga ou azeda.
Quando se chega aos oitenta anos e olhamos para trás passaram-se dias felizes da infância e da juventude, lágrimas, desilusões, sonhos, dias amargos, outros com um pouco de doce. Muitos castelos ficaram por construir e outros foram destruídos ao longo da vida. Ainda sonho com a saudosa África onde vivi dez anos (não felizes). Viagem de barco através do Atlântico, cheia de aventuras. Já lá vão 46 anos! O regresso de avião sob um mar de lágrimas.
Cá vou vivendo os últimos dias da minha “agenda”. Dores, limitações, solidão. Tenho família, Graças a Deus, mas ganharam asas e foram para longe.
Quando fiquei só escolhi ficar no local onde nasci e cresci. Não me arrependo e dou graças por ter a sorte de poder aqui viver. Tudo me é familiar. Algumas árvores que eu conhecia também foram sacrificadas. A ribeira alterou o seu leito; o açude já não tem a mesma beleza, a nossa escola desapareceu, deu lugar a outro edifício. A aldeia está muito desertificada, faltam crianças e jovens.
Dou o meu passeio no meu triciclo para idosos, acompanhada pela fiel amiga “Tuka”. Já caí duas vezes mas não foi grave. Quase que conheço os buracos todos da estrada. Quando os meus vizinhos deixarem de ver o triciclo e a cadela, rezem por mim –“a Doce não vive mais”.
Agradeço à minha prima Filomena Mota (é trineta do meu bisavô Sousa Rosa) que apertou comigo para eu escrever estórias da nossa terra e da nossa gente que já partiu. (Dulcinda Mota Teixeira)



... árvores que eu conhecia também foram sacrificadas ...
  Eu, sim, tenho que agradecer, muito, à Dulcinda a honra que me deu em me fazer a vontade, escrevendo, e a  felicidade de ter sido o veículo da sua divulgação. Obrigada prima. (MFM)


11 de março de 2014

Privilégios de Desembargador



Painel do Salão Nobre do Museu dos Biscainhos, Braga.


« Em 3 de Agosto de 1795, a Rainha D. Maria I, fez saber por Carta de Privilégio de Desembargador, que Raimundo José de Sousa Henriques, Desembargador Aposentado no lugar ordinário da Relação e Casa do Porto, lhe representou que, com o dito lugar, lhe competiam os Privilégios de Desembargador, e por os haver de gozar, lhe pedia mandar passar Carta deles.
E visto o seu requerimento e documento junto, e por lhe fazer mercê, lhe mandei passar a presente Carta de Privilégios, conforme a Ordenação, cujo teor é o seguinte:
«O Regedor da Casa da Suplicação o Governador da Casa do Porto, o Escrivão da Puridade e a pessoa que servir de Presidente do Desembargo do Paço, o Chanceler-Mor do Desembargo do Paço, os Vedores da Nossa Fazenda e Desembargadores das ditas Casas, e a pessoa que connosco despacha as petições do Estado, Presidente e Deputados da Mesa da Consciência e Ordens, Escrivão da Chancelaria das Cortes que se intitula Vedor delas, Escrivão da Fazenda, não paguem em serviços pedidos, empréstimos fintas, talhas, nem outros quaisquer encargos que paguem os moradores dos lugares onde seus bens e fazendas estiverem, assim para Nós, como para as necessidades de Guerra, de servir nos Concelhos onde são moradores, não sendo ofícios de juiz, Vereadores, Procurador do Concelho, Almotacés, Depositário do Cofre dos Órfãos porque, nestes ofícios não haveria Privilégio algum».
«Que todos estes Privilégios, e especialmente pelos Decretos de 1681 e 24 de Abril de 1741 e outros quaisquer que por mim se acharem declarados os cumpram e guardem e os façam inteiramente cumprir e guardar ao dito Raimundo José de Sousa Henriques, aos seus criados, mordomos, amos e apaniguados e lavradores, como é declarado neste Privilégio, sem lhe ser posta dúvida ou embargo algum, porque assim o hei por bem e firmeza de tudo, e mandei dar esta Carta, passada pela Minha Chancelaria, com o selo pendente dela. Dada na Cidade de Lisboa, aos 7 dias do Mês de Setembro. A Rainha, Nossa Senhora, o mandou pelo Dr. José Alberto Leitão, do Conselho de Sua Magestade António Joaquim Serrão o fez no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1795».

Registada nos Arquivos da Câmara Municipal de Tomar a 9 de Junho de 1797. Livro dos Registos Camarários de 1784 a 1802


Execução de Robespierre - Estampa de autor desconhecido, existente na Biblioteca Nacional de França.


Enquanto em Portugal decorria a vida pachorrenta e galante de painel de azulejo, em França acabava o Terror e a cabeça do chefe ia juntar-se às milhares que a guilhotina já tinha separado dos respectivos corpos.
Enquanto o Desembargador aposentado da Relação do Porto Raimundo José de Sousa, morador na sua quinta de Porto da Lage, pede à rainha Privilégio de Desembargador, a fim de ficar isento de impostos, juros e outros encargos, ele e todos os seus apaniguados, em França decorria uma revolução já lá iam seis anos. Tinham sido instituídos direitos sociais igualitários, direito de voto, organizados sindicatos e confiscadas terras à nobreza e ao clero, ideais jacobinos que tinham sido impostos em ambiente de violência e perseguição, pelo que este período foi sugestivamente denominado de O Terror. Porém, à data da concessão do Privilégio já governa O Directório, que pretende uma República moderada que acabe com as instituições do Antigo Regime mas limite a participação política. Mas não irá durar muito, instabilidade interna e ameaças externas levarão ao 18 do Brumário (9.11.1799). Napoleão aproxima-se.
 Indiferente a estas mudanças, a vida em Portugal e em Porto da Lage  continua a correr em azul, como os azulejos. Só a rainha se apercebe que o mundo está mesmo a transformar-se, e com ele o seu doce Reino, e endoidece.(MFM)



4 de março de 2014

Brueghel e a Belida

Brueghel "o Velho",  Boda campestre,  1621 - 1623 (Galeria online do Museu do Prado, Madrid) 


O Cortejo nupcial segue para a igreja. Os homens à frente, encabeçados pelo noivo, vestido de preto com farta gola branca, de flor em punho. Atrás a noiva, também de preto, no grupo das mulheres. Ao longe já se ensaiam as danças da boda.

Passa-se a cena numa alegre e garrida aldeia da Flandres onde a prosperidade  transparece nos trajes ricos dos camponeses, nas altas casas bem edificadas e na geral boa disposição dos presentes. Tudo brilhantemente reproduzido na nova temática da pintura "nórdica" (como lhe chamavam os italianos) que se inicia nos fins do sec.XVI: a paisagem e os momentos do quotidiano.

[Estas e outras obras-primas de grandes mestres do sec.XVII, provenientes do Museu do Prado, podem ser vistas até ao final de Março no Museu de Arte Antiga.]

Não nos costumamos lembrar disto, mas, a partir de 1580, Portugal , os Países Baixos e a Flandres faziam todos parte do "Império onde o sol nunca se punha" que fora o Grande Império de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, na época já herdado por seu filho Filipe II (I de Portugal filho de Isabel de Portugal, filha de D. Manuel).  
Fazendo embora parte do mesmo "império" penso que pouco teriam em comum as nossas aldeias com as industriosas das províncias neerlandesas que, não obstante a guerra incessante contra Espanha - "Guerra dos 80 anos ou Revolta Holandesa" decorrente de 1568 a 1648 - eram prósperas e dinâmicas de tal forma que, após a independência, conseguiram criar uma Holanda que se transformou numa potência mundial, ameaçadora dos interesses portugueses e herdeira daqueles em muitos casos.
Pois neste período, em 1609 mais precisamente,  a vida também corria, mais pobre e não tão colorida, digo eu, no "nosso território" ao norte da freguesia da Madalena, no "canto" entre Beselga e Assentis. Tanto quanto se pode observar nos movimentos registados em casamentos, era esta zona muito pouco habitada, ao contrário da restante onde pontificavam o Marmeleiro, Machial, Carvalhal grande e pequeno, etc. De Cem Soldos (lugar pequeníssimo)  para cá, Porto Mendo seria o único "lugar", com pouco mais de meia dúzia de vizinhos, sendo o restante território ocupado por "casais", casal do Negro, casal dos Galegos, casal dos Gaios, casal da Velida, casal de Nicolau Dias, cada um deles ocupado por uma família ou gente ligada à família, aparecendo também a menção a "casais da ribeira" de modo genérico, às vezes mencionando gente já designada anteriormente como moradora num dos outros casais, outras vezes designando pela primeira vez, outras pessoas. O Paço, ou Paço da ribeira é mencionado duas vezes entre 1597 e 1625, com dois casamentos lá ocorridos, em que os quatro noivos não têm, aparentemente, nada a ver uns com os outros, isto é, não seriam família, ao contrário do que é habitual nos "casais". Ao todo, Porto Mendo incluído, contei 44 casamentos ocorridos no período de tempo que referi atrás nesta zona da freguesia, enquanto em toda a Madalena se realizaram 232 no mesmo período. 
Porque Porto da Lage só aparece muito mais tarde em  1697, em registos desta natureza, os noivos, neste caso a noiva, mais perto que consegui arranjar, foi no já inexistente Casal da Belida. 
Talvez que os festejos deste casório entre a Maria, da Belida e o Manuel, da Golegã, não fossem tão vibrantes como os que Brueghel nos mostra, apesar de lá estar "quase toda a gente da freguesia", mas de duas coisas estou certa: a alvura da igreja da Madalena com a sua pitoresca galilé (1) e o luminoso céu de São Martinho não deixaram a desejar nenhum templo cinzento calvinista nem a fria claridade do norte. Sempre o sol e o abençoado céu azul a reconciliar-nos com o pouco que tínhamos e temos! (MFM)




« Aos oito dias do mês de Novembro foram recebidos em face da igreja pelo padre frei Aleixo frei coadjutor conforme o sagrado concilio Tridentino  constituinte desta jurisdição Manuel Vaz filho de Simão Alvares já defunto e de Catarina Vaz moradores na vila da Golegã com Maria Nunes filha de Domingos Dias e de Maria Nunes já defunta desta freguesia de Sta Maria Madalena moradores no Casal da Velida testemunhas Pero Nunes Diogo Dias o velho e o novo e Simão Fernandes Francisco Lopes e quase toda a gente desta freguesia e por ser verdade fiz este que assinei dia e mês supra era de 609 anos. Frei Manuel Fernandes (?)» (TT- assentos de casamento da Madalena, Tomar, Santarém)

(1) Sim, eu sei. A igreja actual da Madalena consta ser de 1660. Será. Mas no mesmo sitio havia outra desde quatrocentos. Se tinha galilé ? Se ninguém sabe, porque é que eu não posso achar que tinha?