Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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17 de dezembro de 2019

A Gente Fina Tomarense do Final de XIX



O Serão, Columbano Bordalo Pinheiro c.1880
                 

As duas últimas publicações, na companhia de Virginia de Castro e Almeida,  transportaram-nos ao  fim de século XIX. Aproveitando a maré, lembrei-me, recorrendo ainda ao resto das cartas da nossa amiga, de procurar, na imprensa e em fotos, mostras da forma como a burguesia de Tomar passava o seu tempo de lazer (ou seria o seu tempo?). De dia faziam-se pic-nics, passeava-se de barco no rio. À noite davam-se festas, saraus musicais, nos quais se tocava piano, bandolina e cantava, como já vimos acontecer em casa das senhoras Mouzinho, jogava-se, ria-se conversava-se ao luar.  Ia-se a bailes, ao teatro, organizavam-se récitas para financiar obras de caridade, às quais se tinha de assistir....Enfim, para alguns era uma estopada e um calor!
Pela imprensa temos notícia de um exemplo, o"esplêndido baile" realizado no Grémio de Ensino e Recreio Tomarense, que durou até às cinco da manhã, onde "muitas e formosas damas" formaram "pares alegres e gentis, cheios de vida e de alegria" com a "flor da mocidade máscula" local, dançando quadrilhas, lanceiros, valsas e polcas, enquanto trocavam " bastos e agradáveis tiroteios de amabilidades e ditos espirituosos". Entretanto, seriam servidos bons e delicados serviços de chá e doces, mais tarde sandwiches e vinho do porto, e depois doces e o dito Portwine e, por fim chocolate e [adivinhem!] doces (outra vez!, oh belos tempos sem preocupações saudáveis!). Mas nem tudo era comportadinho, havia também lugar a exibições mais ou menos brejeiras, como a do sr. Dr. João do Valle (que já conhecemos das relações na nossa heroína) que apareceu vestido de "donzela  um tanto durázia, de modos delambidos" e declamou um "monólogo bem apimentado, dito com todo o chiste " que arrancou muitas gargalhadas e muitas palmas "aos presentes.(MFM)



....Numa ilha que temos no meio do Nabão. (Cipriano Martins )


«Na quinta-feira fizemos um pic nic com as tomares numa ilha que temos no meio do Nabão, perto do Moinho Novo. Depois do Jantar entre os choupos, que esteve animadíssimo, fomos dar um belíssimo passaio de barco pelo rio. 


.......Depois do Jantar entre os choupos, que esteve animadissimo.....(1)




.......fomos dar um belíssimo passaio de barco pelo rio


Estava uma tarde encantadora. Depois viemos todos para a quinta onde passámos o resto do tempo até à meia noite, na varanda, ao luar, a jogarmos jogos, a rir e a conversar.»



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Serenata Thomarense


«Hoje vamos ao teatro a Tomar. Récita de amadores em beneficio do asilo de crianças cegas em que te tenho falado.
Entra o João do Valle e a menina Petrony e não sei quem mais; e um homenzinho muito janota, o Vizeu Pinheiro, que é escrivão e recita uma poesia que inventou de propósito. O teatro esta enfeitado com flores e leques e parece que as meninas Tomarzinhas vão decotadas e de manga curta etc. ...  Imagina a estopada e o calor! Eu mandei pedir ao João do Valle que nos arranjasse um camarote com o dos Charruadas. Se ao menos assim for não é mau de todo ...»

Nota: As tomares ou meninas tomarzinhas referem-se às filhas do conde de Tomar.

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Fevereiro 1896


"Excursão do Grupo Dramático de Silva Magalhães a Cernache".Este grupo, que adivinho republicano, também actuaria
 nas récitas, destinadas a obras de caridade, para a assistência acima?

Fontes:
(1) Imagem do quadro "Hip Hip Hurrah, 1888", de Peter Severin Kroyer (1851-1909).
- Fotografias Fundo Silva Magalhães.
- Recorte da imprenda de Memória Digital de Tomar.

13 de dezembro de 2019

Virginia de Castro e Almeida, o Nabão e a Ribeira da Beselga



Continuação das cartas de Virginia de Castro e Almeida, desta feita com a acção a passar-se em localidades junto à quinta, Santa Cita, Asseiceira, e, sobretudo, nas margens do Nabão. E, como estamos em Porto da Lage, vemos, com agrado, que a nossa ribeira da Beselga também foi imortalizda pela pena desta escritora (MFM).


.....e ali, naquele cantinho de terra à beira do rio, podíamos bem julgar-nos as únicas criaturas vivas no mundo inteiro....(1)






...Ontem meti-me no meu carro com a Cristina e abalei, para Santa Cita.Levava uma saqueta de bolos para os meus fregueses que os comeram todos que foi um regalo. 


Antigo convento e igreja de Santa Cita, existenes à época

E de Santa Cita fui ao Moinho Novo onde ambas nos apeámos atravessando o Rio sobre uma ponte carunchosa e embrenhando-nos depois no choupal que se estende pela margem fora. Andámos, andámos até chegar a um ponto onde o Nabão é cortado por um grande açude de pedra e cal, já antigo, de muitos e muitos anos e sentámo-nos ali no chão muito caladas. 


......até chegar a um ponto onde o Nabão é cortado por um grande açude (5)


Porque o silencio e sossego à roda de nós era absoluto, e ali, naquele cantinho de terra à beira do rio, podíamos bem julgar-nos as únicas criaturas vivas no mundo inteiro. Por diante de nós o rio estendia-se tão sereno que parecia nem ter corrente e perdia-se lá muito longe, entre as suas margens verdes riquíssimas, que àquela hora o cobriam de sombra. 

.......diante de nós o rio estendia-se tão sereno que parecia nem ter corrente e perdia-se....


E os choupos levantavam-se orgulhosamente, e o sol quase escondido, doirava-lhes ainda os ramos mais altos enquanto os chorões tristíssimos mergulhavam desalentados os seus braços no Rio. Perto das margens saíam da água juncos e outras plantas de folhas largas, muito verdes, onde uns tiraolhos pequenitos e azuis gostavam de poisar.  Por trás de nós estava um choupo onde há 3 anos, de uma vez que ali fizemos um picnic, o Bartolomeu escreveu o meu nome. Em três anos o choupo e o meu nome está lá muito alto e tão marcado que a mais do 6 metros se pode ler. Desde esse dia eu nunca mais ali tinha tornado. Três anos! Estive para riscar aquelas letras, depois, deixei ficar! Mas a este tempo o sol escondera-se de todo e a tristeza serena da paisagem que uma roda aumentava gemendo lamentavelmente a meio quilómetro talvez, a baixo no rio, ia pouco a pouco, descendo em mim.
A Cristina estava entregue aos seus pensamentos e não falava. E eu, por um momento, entreguei-me também aos meus que não me largavam.


.....e a tristeza serena da paisagem que uma roda aumentava gemendo lamentavelmente a meio quilómetro talvez .....  (6)

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Fomos, eu e a Cristina dar um passeio lindo. Fomos a Santa Cita e depois pela estrada de Tomar, até Marianaia, onde nos apeámos. Atravessamos a pé a ponte sobre o Nabão e por tal maneira nos encantou a serenidade das suas margens lindas e a poesia dos seus juncos nascendo à sombra dos 

            A Fábrica de papel de Marianaia na época da autora
O que resta da antiga fábrica de papel.










tristes chorões e a roda da fábrica e o barco amarrado no fim de uma vereda misteriosa, tanto e por tal maneira nos encantou tudo isso que, esquecidas do tempo, nos deixámos ficar um grande bocado encostadas ao parapeito da ponte sem falar a ver no fundo do rio a areia muito clara e os seixos polidos da água e as sombras cada vez maiores que o pôr do sol dava à paisagem. Senti-me tão bem, tão descansada, tão feliz! Uma paz absoluta e profunda. Como se respirava ali bem a felicidade serena que, no fim de contas, é a melhor, e a maior de todas….


........e o barco amarrado no fim de uma vereda misteriosa...(7)

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Está hoje um dia lindo, o céu azul e o sol tão brilhante. Já quase ao sol posto apareceu-me cá a Luiza Quintela e o irmão. Saí com eles no carro. Daqui à Asseiceira pelo pinhal. Íamos a descer a azinhaga quando vimos passar em baixo na estrada, como um raio, o tibury do Frank Quintela e com ele um tenente Pessoa de Tomar. Chegando ao fim da azinhaga toquei o Ali e durante uns 5 minutos voamos positivamente.

...A tarde estava encantadora.(2)
Alcançámos o tibury e fomos um pedacito a par pela estrada fora a meio trote, de conversa. A tarde estava encantadora. 
Era já muito depois do sol posto e fomos encontrando muitos rebanhos que recolhiam e grupos de gente do serviço que voltava a suas casas. Uma rapariga ia a cantar! e que bem se respirava! 


...  fomos encontrando muitos rebanhos que recolhiam e grupos de
 gente do serviço que voltava a suas casas.(3)

Depois segui pela estrada até Santa Cita e o Frank voltou para a Quinta do Valle. Ainda andámos um pedaço no pinhal a passo; era já escurito e os pinheiros tinham um aspecto todo solene! Afinal fui deixar os meus companheiros no pateo de sua casa e voltei para a Quinta a toda a pressa por já ser noite.

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Esta manhã fui à horta dar um passeio. À ida para baixo comemos amoras apanhadas "a dente" da própria árvore. Não imaginas como sabem bem assim.
Fica a gente com os beiços ensanguentados e a cara marcada como se se tivesse morto alguém à dentada ... Eu gosto muito de ir à horta num dia de calor. As ruas muito sombrias cobertas com arvores de frutas, os encaniçados de feijões em flor, as latadas de aboboras e até as melancias à torreira do sol têm um aspecto fresco.



Eu gosto muito de ir à horta num dia de calor....(4)


Sente-se correr a água das biqueiras para os tanques das regas e as regueiras cheias de água muito clara correndo entre as bordas batidas da enxada fazem sede. Depois o Luís e a Rosa foram apanhar morangos e trouxeram-nos numa folha de couve que puseram num instante dentro de agua. Por isso vinham entre os morangos gotinhas que pareciam de orvalho e que eram como brilhantes. E os morangos souberam-nos pela vida ..
E fomos até à ribeira [da Beselga] dar banho ao Tritão [cão] e sentámo-nos a sombra de uma azinheira ao pé do açude a escutar os gemidos e as lamentações do engenho. Estava tao bom! Para baixo do açude andam os patos num cerrado que se lhes armou com mato. E a ribeira ali leva a agua tão clara que se lhe podem contar os seixos do fundo e é toda assombreada pelos choupos e freixos que lhe crescem pelas margens.


e é toda assombreada pelos choupos e freixos que
 lhe crescem pelas margens
Fontes:-Imagens de pinturas de Maria de Lurdes de Mello e Castro (1e2), Silva Lopes (3) e Malhoa (4);
-Imagens do livro Coisas Simples da Terra Tomarense O Rio, os Açudes e as Rodas, Fernando Ferreira, edição da junta Distrital de Santarém, 1976-5 e 6
- Imagem do livro Tomar, pag.123, José - Augusto França, Editorial Presença, Lda, Lisboa, 1994.-7
-Outras - Fotos do blog e retiradas da net, sem identificação.

9 de dezembro de 2019

Um dia em Tomar em 1893




Virgínia de Castro e Almeida (1874-1945) foi uma intelectual portuguesa que desenvolveu a sua obra e se notificou no primeiro quartel do sec.XX. Amiga de intelectuais e políticos de antes  e depois do Estado Novo, viveu vários anos em Paris e Genebra, sendo nesta cidade representante de Portugal na Sociedade das Nações. Em Janeiro de 1926 assiste como delegada de Portugal às cerimónias de inauguração do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, em Paris, sendo uma das quatro mulheres (uma delas Madame Curie) presentes entre os cinquenta convidados, no almoço oferecido pelo Presidente do Conselho e Ministro da Instrução. 
Foi escritora, autora de livros infantis, dos quais ainda hoje se publicam História de Dona Redonda e da sua Gente e Aventuras de Dona Redonda e produtora de cinema. Produziu a  A Sereia de Pedra, adaptado de um conto seu intitulado A Obra do Demónio, realizado por Roger Lion, com exteriores rodados no Convento de Cristo, em Tomar, o qual estreia em Paris, onde  obteve elogios por parte da crítica.
Apesar de todo o seu valor, o motivo pelo qual aqui a lembro hoje prende-se, tão só, com a sua ligação a Tomar. Filha do Conde de Nova-Goa, dono da quinta da Beselga, passava quando jovem largas temporadas pela quinta e convivia com a burguesia tomarense do tempo. 

No Boletim Cultural da Câmara Municipal de Tomar n.º18, de Março de 1993, encontram-se duas cartas de Virgínia de Castro e Almeida, dirigidas à sua futura cunhada, nas quais aquela, numa linguagem cheia de vivacidade, conta o seu dia-a-dia passado na quinta. Na carta aqui reproduzida fala de uma ida a Tomar na companhia de uma amiga, Cristina. Na cidade encontra-se com amigos pertencentes à alta burguesia da terra: as Mouzinhos, a baronesa de Alvaiázere e a Senhora D. Maria Teresa de Vasconcelos. É de forma torcista que se refere a esta  última, deixando perceber uma certa superioridade cosmopolita face aos costumes e presunções provincianas, como a ida de uma menina  sozinha às compras e o rídiculo de um alferes, muito arrebicadinho e empomado, exibindo-se no seu velocipede, tentando impressioná-la, rodando com um pé só, de braços cruzados .
Esta carta encantadora remete-nos para um dia no tempo, há mais de 120 anos, em Novembro, em que na Várzea Grande, com as amoreiras de ramos meio-despidos, as crianças brincam, ao sair da escola, passam os ranchos de azeitona, prevendo a boa safra desse ano, transitam os trens e a nossa heroína, passeando o seu cavalo Ali, acompanhada do trintanário Rafael, se sente importunada com um modernaço ciclopedista que a tenta impressionar. Vamos ler que não perdemos o nosso tempo. (MFM)

«Almocei com a Cristina e abalámos para Tomar arrastando com os lameiros que estão de respeito por estes caminhos fora.
Fomos para casa das Mouzinhos de onde mandámos recado ao médico; e daí, depois do clássico lunch de pão com manteiga, queijo “cabreiro” e doce de ginja, fomos pela Avenida fora. Deixei a Crista no princípio da Corredoura e eu fui andando até á casa da baronesa de Alvaiázere que me tinha mandado recado que me queria falar. 


....fomos pela Avenida fora. Deixei a Crista no princípio da Corredoura ....


.....e eu fui andando até á casa da baronesa de Alvaiázere...


Achei os meus primos já a meterem-se no trem para irem a um magusto num casal que têm na estrada da fábrica, ia com eles a senhora D. Maria Tereza de Vasconcelos que toda se indignou quando eu lhe disse que a Cristina tinha ido sozinha fazer compras.
- "Sozinha .... Ora essa! ... "
Tratei de receber o recado da minha prima, que por sinal, era um convite para lá irmos jantar no dia 7, e fi-los partir,apesar de todos os seus protestos.
- "Então hás-de ficar só à espera da Cristina?!"
- "Não se incomodem. O Ali está com alguma tosse. Não quero que ele fique aqui parado. Vou dar umas voltas pela Várzea Grande".
- "Quer Vossa Ex.ª vir connosco ao magusto, prima?"
- "Muito obrigada, primo. Desejo-lhe alegria."
A Senhora D. Maria Teresa de Vasconcelos não disse nada. Creio que ficou com a Cristina a fazer compras sozinha atravessada na garganta. Quando te falo desta senhora, digo sempre o nome e um dos apelidos, para te dar um pouco a ideia da sua majestade. É a senhora mais majestosa de Tomar. Mas tem um cachet. Ela, a sua casa, as suas maneiras, a sua dama de compagnie, as suas toilettes ...  Verás. Tudo isso vale um dinheirão.
Foram-se e eu comecei o meu passeio pela Várzea que estava linda. Eu, o Ali e atrás, todo teso, o Rafael. Sempre a minha equipagem havia de fazer um vistão .... 





e eu comecei o meu passeio pela Várzea que estava linda  
Ciclopedista na Av. da
Liberdade, Lisboa

Pelo menos um alferes que há em Tomar, muito arrebicadinho e empomado, velocipedista ainda por cima, assim achou. E começou a fazer-me tonturas na cabeça com círculos e mais círculos por aquela várzea e por diante de mim, que era mesmo uma coisa por demais. 


Ciclistas na Várzea Pequena c. 1876





Voltei a casa do barão, bati a porta, declarei a uma criada: que bem sabia que os senhores não estavam em casa. mas que eu ia para a sala porque esperava ali a minha prima Cristina. Assim foi. Mandei estender uma manta por cima do Ali e pus-me à janela.



                                                              .....e pus-me à janela.
Passou uma carroça de areia; depois um carro de bois com as trouxas de um rancho da azeitona. Depois três barrosas a conversarem da safra que há-de ser boa. 



Rancho de azeitona em período de lazer 

Nisto saíram os rapazes da escola e durante alguns minutos toda a várzea se inundou das suas gargalhadas e dos seus gritos. Por entre os ramos meio despidos das amoreiras, vi-os passar lá em baixo correndo de uma banda para a' outra .
- "He, Manel!!"
- "Ladrão do diabo!" ...
- "Malandro" …
Pedrada para aqui, pedrada para ali ...o Rafael, defronte do Ali, de mãos nas algibeiras, superior, olhava para eles e ria-se.
Cada palavrão que eu ouvi! ... Falem-me da inocência dos meninos de escola ...



Nisto saíram os rapazes da escola ...
(A escola Conde de Ferreira, existente à época na Varzea Grande, construída entre 1864-1874, com o donativo do referido Conde)



A localização da escola Conde de Ferreira na Várzea Grande



Vai senão quando, quem havia de passar? O alferesinho empomadado. A fazer círculos, a andar com um pé só, de braços cruzados ... um nojo! Vim para dentro já se vê. Sentei-me.
Para passar o tempo, nem um recurso. Nem um livro, nem um jornal, nem uma gravura sequer. Sala nua; pior do que a sala de espera de um dentista. Alguns bilhetes de visita. Li-os uma vez; duas vezes; aprendi-os de cor: Sofia Loureiro Vizeu Pinheiro, a agradecer; Maria Augusta de Freitas; Bebiana Correia.
E mais ainda. Muitos, muitos ...
O que seria que a Sofia Loureiro agradecia? Cismei nisso algum tempo, mas distraiu-me dessa ideia uma voz de mestre, grave, muito grossa, a ralhar. Percebi que era o mais novo dos rapazes a dar lição. Como percebi isso, entendi que não era indiscrição espreitar pelo buraco da fechadura. E vi a cara do rapaz triste de aborrecimento. Lembrei-me de quando ele era muito pequenito, o meu pobre Tai; quando se agarrava a mim a dizer que era meu. Chamava-me Tia Gi ...
Ao principio cuidei que ele recitava alguma passagem dos Lusíadas. Recitação exagerada com a intonação quase do Luís Osório declamando .... Escutei melhor. Ouvi distintamente:

" ... Mas, sem lhes poder chegar disse:
estão verdes não prestam
 só os cães as podem tragar. .."

 Senti um trem. Fui à janela ver: era o médico que voltava da  quinta. Trazia a receita na esperança de me encontrar ainda e de eu poder levar os remédios. Viu o meu carro à porta do barão, parou e entrou. Sufoquei-o de perguntas sobre o estado da minha prima. Ele não é homem que fale sem fazer um discurso; e tão embrulhado foi o tal discurso desta vez que não percebi nada.
Pouco tempo depois chegou finalmente a Cristina. Julguei que tencionava deixar-me a apodrecer naquela casa! ... O tempo de virem os remédios da botica e vamos nós a caminho da quinta, a toda a pressa.»


.....era o médico que voltava da  quinta.






Notas: Fotografias, e extractos de fotografias, de Silva Magalhães, excepto a da escola de Conde Ferreira cuja autoria não consegui identificar e a do ciclista em Lisboa.

                                               


A casa dos Barões de Alvaiázere na actualidade. Aqui se fundou a Fábrica de Fiação em 1789; em 1869 o edificio foi vendido a Manuel Vieira da Silva Borges e Abreu, primeiro Barâo de Alvaiázere; a partir de 1911 foi Quartel General da Região Militar, mas um incêndio em 1975 destruiu todo o interior; a parte restaurada acolhe, actualmente, os Serviços de Registo e Notariado e o Juízo de Trabalho de Tomar (Tribunal).

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6 de dezembro de 2019

O Meu Menino Jesus (fora do Natal)


  Este é um post que tenho guardado nos "rascunhos" há anos (aliás, a publicação dos últimos posts corresponde a uma limpeza que estou a levar a cabo nesta pasta, por isso todos parecem  nada terem a ver com nada, ultimamente).
Comecei por pensar em o publicar num Natal. Mas não! Não podia ser. Natal é paz e conciliação, não é provocação (embora não fosse essa a minha intenção, poderia ser interpretado assim). E foi ficando, há espera de oportunidade. Mas agora vai, não para demonstrar coisissima nenhuma (poema é considerado por alguns como um sacrilégio, uma afronta a Deus e à criação, pretenso destruidor das bases do Cristianismo, o próprio Fernando Pessoa se demarcava do seu heterónimo dizendo não ser, como o "outro", blasfemo nem antiespiritualista), mas tão só porque gosto dele, porque me encanta este menino Jesus da infância de todos nós, que brinca, ri, chapinha nas poças de água e faz pequenas patifarias. E porque, afinal, sempre me interrogo se não é Ele o divino que sorri e que brinca., se Ele não é o Menino Jesus verdadeiro?
Não deixa de ser um admirável poema, mesmo para aqueles que se sentem beliscados na sua crença. Se poderem, usufruam-no na sua totalidade, lendo-o, ou ouvindo-o, por exemplo, na voz de  Maria Betânia. (MFM)



VIII - Num meio-dia de fim de Primavera


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.



 Era nosso demais para fingir
 De segunda pessoa da Trindade.
 No céu era tudo falso, tudo em desacordo
 Com flores e árvores e pedras.
 No céu tinha que estar sempre sério
 E de vez em quando de se tornar outra vez homem
 E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
 Com uma coroa toda à roda de espinhos
 E os pés espetados por um prego com cabeça,
 E até com um trapo à roda da cintura
 Como os pretos nas ilustrações.


 Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
 Como as outras crianças.
 O seu pai era duas pessoas
 Um velho chamado José, que era carpinteiro,
 E que não era pai dele;
 E o outro pai era uma pomba estúpida,
 A única pomba feia do mundo
 Porque não era do mundo nem era pomba.
 E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.
.............................................................................
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Alberto Caeiro. In O Guardador de Rebanhos

4 de dezembro de 2019

As Senhoras Mouzinho


A minha mãe, nascida e criada no Bairro das Flores (o que ela referia com todo o orgulho mas que era motivo de brincadeiras para os filhos, como se tal fosse uma fantasia dela, pois, nas nossas vidas aquele nome já não constava da giria tomarense) costumava dizer quando alguém mostrava dúvidas sobre a sua própria aparência, para a convencer do contrário, que não, que até estava muito bem:
- Ora essa, até estás capaz de ir à mostra às senhoras mozinhas!
Para mim aquilo era um "dito" da minha mãe, coisa antiga, de Tomar concerteza pois nunca o ouvira noutro lado qualquer, e estava acabado. 
Mas, deparei com este opúsculo de Amorim Rosa, do qual extraí o que vai abaixo. Afinal o Bairro das Flores existiu mesmo (quer dizer, ainda lá está mas - desculpe mãe, a incredulidade desta filha parva! - só agora eu confirmo o nome) que tinha como limite a norte " a linda estrada do Prado, por entre um túnel de folhagem verdejante das copadas árvores que a extremam", passando pelas encostas da Senhora da Piedade e da Anunciada Nova, e terminava como diz o autor "em apoteose, perante a trindade que foi pelos séculos fora, o farol que ilumina a senda do progresso da nossa querida terra" que seriam a Igreja, o Municipio e Gualdim Pais.
Fiquei também a saber que as senhoras Mouzinho tinham sido ilustres habitantes do bairro. E assim comprendi que, por ser dali, a minha mãe conhecera,  por tradição, o legado da importância das "senhoras mozinhas" (com a alteração lexical que o tempo sempre opera) na apresentação do outfit (isto é para mostrar que sou actual e sei actualizar) das tomarenses e dos tomarenses (mais outro sinal do mesmo). 
Está tudo explicado! (MFM)


A casa das senhoras Mouzinho, à direita.


«Na segunda metade do Sec.XIX viviam naquela casa duas jovens senhoras que, ricas, nobres e prendadas, constituiam o que se chama um bom partido - talvez o melhor partido da terra.
Mas, apesar da concorrência de pretendentes, as duas senhoras continuaram solteiras e solteiras morreram de provecta idade.
Na sua juventude, todo o moço ansiava por lhes ser apresentado e, conseguindo, e a muito custo, tal desideratum, vestia-se a primor para tão grata visita. E o mesmo sucedia com as damas; que ser visita das senhoras Mouzinhos, não era para todos; e era de tom, nessa época!
Por isso, durante muito tempo - e não sei se ainda existem reminiscências desse hábito, quando se via alguém, janota e aperaltado, soia dizer-se-lhe:
- Vais à amostra às senhoras Mouzinhos?...»

(Amorim Rosa, Uma volta pelo Bairro das Flores, palestra realizada na Sociedade Nabantina em 18.11.1961 )


                                               
 Uma das senhoras em causa , em destaque na imprensa, recebendo "srªs hespanholas a 
tocarem piano e cantarem admiravelmente" em sua casa. A Verdade, 16.08.1885



P.S- As senhoras Mouzinho eram ascendentes da mulher do dr. João Maria de Sousa, Maria Ezequiel de Sousa Mouzinho.

                                   
 

1 de dezembro de 2019

Portugal



Hoje é dia 1 de Dezembro. O dia em que os portugueses de 1640 decidiram recuperar a independência de Espanha, ao contrário de 60 anos antes em que, salvo poucas excepções, se lançaram quase nos braços daquele país. O que os fez mudar, o que os ligava ou deixava de ligar à pátria portuguesa. E hoje, como seria? Os portugueses gostam de Portugal, gostam de ser portugueses? 
Como acontece muitas vezes, quando não se sabe, cita-se! E eu, hoje, socorro-me de Eça de Queirós. Criou ele duas magistrais personagens de portugueses, daqueles que, desde A.Vieira precisam de um mundo para viver e um pedaço de terra, a sua, para morrer.
O cosmopolita Jacinto, de A Cidade e as Serras, nado e criado em Paris, homem de cultura, possuidor de tudo o que a ciência e técnica já descobrira no seu tempo, vivendo, no entanto, neurastécnico, a "sofrer de fartura", resgata-se encontrando a alegria de viver em Portugal, na sua serra, que lhe mata uma velhíssima fome e de onde brota o vinho, o vinho que lhe entra mais na alma que muito poema ou livro santo. 
A outra é Gonçalo Mendes Ramires, da obra A Ilustre Casa de Ramires, rapaz elegante, instruido, formado em Coimbra, com talentos literários (escreve uma monografia medieval sobre um antepassado seu), de fidalguia remontando aos godos mas ... sem meios. Meios que lhe permitam seguir os seus sonhos e alcançar a vida que pensa "ser vida". Para o conseguir, por cobardia, por insegurança, comete actos algo infâmes, mas, apesar disso, a generosidade, a simpatia, o heroismo, de que dispõe, conseguem triunfar e redimi-lo.
Espero que os dois trechos que aqui trago,  para além de abrir o apetite para quem nunca  leu as obras completas ou para quem não as lê há muito tempo, vos reconcilie (andamos sempre um pouco zangados com ela, não é?) com "a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que seja para sempre bendita entre as terras" (MFM)




[Na cidade, no jantar de celebração do 35.º aniversário de Jacinto]:




[Nas serras, quando Jacinto chega intempestivamente, sem ser esperado]:










[Na quinta os três amigos comentam a próxima chegada de Gonçalo, de Moçambique]: