Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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18 de março de 2021

O 15 de Março e Eu

 




Eu estava lá. E lembro-me. Da agitação, da pressa, da correria para embalar as coisas, do medo na cara dos adultos. Do meter dentro do carro, da viagem rápida, do encontro na “pousada” não só com a gente habitual que eu conhecia, a dos domingos na esplanada do clube, a do salão de baile, a que ia ao cinema, mas com muita mais, uma multidão como eu nunca tinha visto, que se apertava, que parecia não caber nos sítios, que nos deixava a nós crianças, submersas, lá em baixo, no meio das pernas altas deles, sem ver nada, sem nos ligarem nenhuma, mas ao mesmo tempo sempre a gritar por nós, sempre histéricos à nossa procura, a ralhar-nos para não nos afastarmos, e agarrarem-nos sôfregos depois de deixarem de nos ver durante dois minutos. Tudo tão diferente da liberdade habitual! Depois, à noite, o grande rebuliço da distribuição para dormir. Um corredor cheio de mulheres e crianças e alguém a enfiar uns e outros para dentro de quartos. Eu e uns tantos miúdos da minha idade ficámos num quarto cheio de colchões no chão, acompanhados por umas tantas mães, não sei se a minha estaria entre elas, talvez não, não me lembro do meu irmão nestas andanças e o mais provável é que ela ficasse com ele, sempre mais mariquinhas e agarrado a ela, apesar de mais velho. Coube-me como companheiro de colchão o Fernandinho, a quem devo a eterna recordação destes momentos históricos, não fosse o martírio da noite que partilhámos e acho que tudo se me teria varrido da mente. Tínhamos os mesmos quatro anos, mas, ao contrário de mim, o Fernandinho era baixinho e roliço, um cilindrozinho de carne que toda a noite rebolou atirando-me contra a parede. Seria porque o colchão, ou o soalho, estavam desnivelados ou porque a natureza da forma do Fernandinho a isso o obrigava, o certo é que eu acordei inúmeras vezes com um peso em cima de mim, peso a quem, eu, por achar não ser a ocasião propícia para recorrer a adultos, pontapeava e dava socos para afastar. Mas, tanto ele reincidiu e tanto eu retorqui que acabei por o fazer chorar. Logo uma mãe, a dele ou outra, o veio acalmar e o fez voltar a adormecer. E eu, cheia de desprezo, afinal ele não passava de um bébé gordo e chorão, continuei a defender-me ainda com mais convicção.
Com o tempo, embora não se falasse nisso, soubemos os motivos daquela nossa aventura antiga, lá longe, muitos quilómetros para norte, tinham acontecido coisas horríveis, tinha sido assassinada gente barbaramente e os nossos pais tinham temido que fosse uma questão de tempo até ser a nossa vez e tinham-se juntado num único local para melhor se defenderem. Não fora a nossa vez, mas ficara como precaução a existência de armas lá em casa, uma delas, a que mais me impressionava e me fazia não olhar, era uma com uma baioneta na ponta, imaginar o uso de uma coisa daquelas horrorizava-me mais do que qualquer outra arma que atirasse muitas balas.
Uma história que ligou sempre a minha família materna a estes acontecimentos foi a notícia que lhes chegou a Tomar, de que nós os quatro, pai, mãe e dois filhos tínhamos sido assassinados com uma morte brutal na qual se destacava a minha, “cortada às postas”. Choraram, puseram luto, mas evitaram que, enquanto houvesse esperanças, a notícia chegasse “aos pobres velhos” a Porto da Lage. Tinham recorrido ao homem do regime, o General Oliveira, para que confirmasse o ocorrido. Morrera, de facto, uma família naquelas circunstâncias, com apelido igual ao nosso e uma filha com o meu nome, mas, ficaram a saber, não éramos nós.
Voltando ao Fernandinho, apesar daquela nossa divergência, fomos sempre bons amigos e são bem diferentes as outras recordações que guardo dele. Como aquela de uma festa de aniversário, com ele de oito ou nove anos, de calções e camisa justa à sua barriga cheinha, gravata a emoldurar a cara redondinha, tal Bolinha da banda desenhada, a oferecer-me um embrulho lindo. Continha um guarda joias prateado e encarnado, de forro de veludo da mesma cor, que ainda conservo. A prova de um tempo que, às vezes, duvido que tenha existido. (MFM)


Foi aqui que nos refugiámos


A minha família e amigos, por esse tempo, eu a última criança à direita.


6 de março de 2021

A Quinta da Belida

 



Quando vamos de Porto da Lage para o Paço da Comenda, por aquela que agora é pomposa e oficialmente chamada de Estrada Real, deparamo-nos, imediatamente antes da pronunciada curva à esquerda, com uma pequena casa à beira da estrada, casa antiga mas com aparência muito alegre, recentemente restaurada com gosto, que exibe num canto da fachada uma lápide onde se lê “Quinta da Belida”.

Por que razão lá está a lápide não sei, como também não sei se antes dos arranjos ocorridos na velha casa, que conheci em ruínas, já lá estaria. Aquela não é uma casa de quinta nem por ali existe quinta alguma. Mas o nome não é de todo descabido se atendermos à memória do lugar. Talvez os donos tenham querido, denominando-a assim, fazer perdurar na sua vivenda um nome que foi referência durante séculos por estas bandas, ainda ecoa na memória dos locais e cuja localização se situava por ali, por onde fica aquela casinha.

A quinta da Belida, se não oficialmente mas de certeza oficiosamente existiu como entidade  até ao inicio do sec.XX, pelo que não é nenhum impossível que os mais velhos a conheçam, pelo menos de ouvir falar. Há tempos, perguntei nos Gaios a uma habitante daí, que teria no máximo setenta anos, onde ficaria a Belida, ela levou-me até à berma da estrada que vai para Porto Mendo fez-me olhar para o vale que se estendia à nossa frente e, apontando cabeços, árvores e canaviais foi-me mostrando os limites e os campos que ficavam dentro da Belida. Noutra ocasião, um conhecido meu no Paço apresentou-me três mulheres sentadas numa das mesas da Associação local, uma delas a sua, três irmãs que, segundo me disse, “eram da quinta”, isto é, descendiam dos últimos habitantes da quinta da Belida. Estes dois casos são, quanto a mim, dois exemplos de como ela perdura ainda no quotidiano de muitos.

Mas se se sabe ainda identificar mais ou menos o seu território e alguns dos descendentes dos últimos proprietários, são vagos e incertos os elementos conhecidos sobre a  história da Belida. Conto, de seguida, o que consegui descobrir.

É conhecido que a Ordem dos Templários, como recompensa por ter ajudado o nosso primeiro rei na reconquista, deste recebera extensos domínios situados em torno da «linha do Tejo», com objetivo de defender e povoar aquele território, o que não era novo, pois já antes, em 1128, D. Teresa tinha doado à Ordem o Castelo de Soure e seus termos, procurando repovoar a região e defendê-la das investidas almorávidas.
O papel desta ordem, nos finais do sec. XII e durante o século XIII, foi, mais do que militar, o de colonizador, fundando e dinamizando centros rurais e urbanos, como é o caso de Tomar e seu termo, local onde, nestes dois séculos angariou considerável riqueza patrimonial, proveniente de compras e de doações particulares, cuja concentração permitiu a constituição de um monopólio no que se refere à administração e exploração de bens imóveis, o que lhe conferiu poder e prestígio com visíveis repercussões no futuro. O estabelececimento de Comendas foi uma forma de a Ordem incentivar o povoamento e fixação de povoações (que seriam de anteriores comunidades locais de origem moçárabe ou de colonos provenientes de fora?), em 1321 só para a região de Tomar são estabelecidas as Comendas de Pias, Prado, Beselga, Paul e Tomar. Nelas eram cultivados, pelos seus foreiros, diferentes produtos como vinha, oliveira, legumes, linho, cereal, e criados cavalos, vacas, porcos e galinhas que seriam, para além de consumo próprio, escoados para venda na vila.


Quando, em 1319, a Ordem de Cristo sucede à dos Templários herda as suas propriedades e privilégios, continuando a tirar proventos das comendas anteriores e instituíndo outras. Porém, para o que nos interessa, fiquemo-nos pela da Beselga. O topónimo Beselga (cuja origem moçárabe deriva de basílica, igreja cristã), que além da designação do curso de água que ainda tem este nome e desagua no rio Nabão e do que alguns dizem ter sido uma povoação romana, surge pela primeira vez dentro da nossa nacionalidade, na carta de doação de D. Afonso Henriques do Castelo de Ceras aos Templários em 1159, quando estabelece como limite geográfico do território doado, a estrada entre Santarém e Coimbra. Sendo que esta estrada coincide com aquela que ainda existe (ou existia antes dos viadutos que substituíram as passagens de nível nos nossos dias) proveniente de Paialvo, passando por Porto da Lage e S.Silvestre, direita a Chão de Maçãs, não é de estranhar que o limite inferior da dita Comenda da Beselga fosse sensivelmente por aí, estendendo-se depois pelo Casal dos Galegos, Paço da Comenda (que seria o lugar da casa do comendador), Além da Ribeira e depois, aproximadamente, por aquela que foi a antiga freguesia da Beselga.


É na Comenda da Beselga que em 1504 Rodrigo Anes Velido (Velido virá de bellido que significará bello) e os dois filhos, João e Diogo, amanham alguns dos Casais de que já falámos aqui. Naquelas terras cultivam cevada e trigo, colhem uvas e fazem vinho, apanham as azeitonas que são obrigados a levar aos lagares dos Freires de Cristo para transformar em azeite, apesar dos do termo de Torres Novas ficarem mais perto, e criam gado. No Natal, e no Verão quando o trigo está na eira, pagam o foro ao Comendador, que varia na quantidade de alqueires de trigo, de azeite, de carradas de lenha e de número de galinhas, conforme a dimensão e a produtividade de cada Casal.


O cognome de Rodrigo fornece-nos aquele que poderá ser o primeiro indício do que virá a chamar-se o Casal da Velida ou Belida. Não conhecemos a sua descendência directa (embora existam hipóteses já formuladas) mas o mais provável é que a tenha tido, para lá dos filhos que já falámos, e que ela se tenha distribuído pelos Casais que se vão formando pelo século XVI adiante dentro da Comenda da Beselga e nas límitrofes, Paúl, Sonegado, Pussos e Póvoa.


Destes Casais, em1570 tomamos conhecimento do Casal de Catarina Jorge, belida de alcunha, viúva de Álvaro Anes, gente que mostra algum desafogo económico pois dentro dos seus bens consta também, pelo menos um escravo. Se Catarina era descendente directa de Rodrigo, se o belida lhe chegaria por parte do marido ou se se trata apenas de grande coincidência não o sabemos, fica o registo. Sabemos sim, que naquele ano casa ela a sua filha Maria Jorge com um Jorge Fernandes*, cuja descendência é conhecida.


Um neto de Catarina, proveniente desse casamento, de nome Jorge Fernandes como o pai, é indicado como vivendo, na década de noventa desse século, com sua mulher Leonor de Sousa, na comenda do Saldanha (por esta época o comendador era frei António Saldanha), ou na ribeira ou ainda no seu casal na ribeira. Por fim, em 1609, Leonor de Sousa é referida como morando no Casal da Velida. O Casal da Velida assume aqui pela primeira vez, o nome pelo qual vai ser conhecido mais alguns séculos, continuando a pertencer à mesma família.


Jorge Fernandes e Leonor de Sousa tiveram, pelo menos, cinco filhos, que seriam pequenos quando o pai morre no final do sec. XVI. Ela volta a casar com Domingos Dias também viúvo, continuando os dois a viver no dito Casal com os respectivos filhos. Mas, ou porque os restantes tivessem morrido ou porque herdariam outros bens, apenas se tem notícia posterior de dois filhos dos primeiros, Maria de Sousa casada com Inácio Escudeiro em 1619, com vários filhos nascidos no Casal da Velida entre 1621 e 1639 e cujo futuro de todos se desconhece, a menos que outra Leonor de Sousa (casada com António Alvares que vive nos Gaios a partir de 1641 e aí tem vários filhos) seja sua filha, e de Diogo de Sousa (a partir daqui o sobrenome Fernandes ou Jorge desaparece da família sendo substituído por Sousa, talvez mais prestigioso) que se apresenta como sucessor do pai ao foro do Casal da Belida ainda que prescindindo dele a favor de seu filho Diogo Alvares de Sousa.


Este último, em meados do sec. XVII, requer ao Comendador da Beselga, então o Conde de Soure, que lhe conceda o foro do Casal da Velida o qual, embora não tendo dele título algum por escrito afirma ter estado na posse dos seus antepassados, sendo a última vida a de seu avô Jorge Fernandes. Acrescenta que o sucessor directo do foro deveria ser o seu pai, Diogo de Sousa, mas que, tanto ele como a sua mãe, Margarida Vieira, fizeram um termo de desistência e renúncia a favor dele. E, por ocasião da assinatura do contrato, lá estão eles a declará-lo de viva voz, dizendo a mãe, que não assina por não saber escrever, que o faz da melhor vontade pois não tem outro filho e deste até já tem um neto, Manuel.


Disto se retira, ligando com o que atrás dissemos, que Jorge Fernandes o novo, antes dele Jorge Fernandes pai (por via de sua mulher Maria Jorge) e, ainda antes, Catarina Jorge por si ou por seu marido, teriam sido as “vidas” anteriores foreiras do agora chamado Casal de Belida, geração que porventura se poderá estender lá para trás até Rodrigo Anes Velido, por onde começámos.


No sentido de ser passada a renovação do foro solicitado, o Casal da Belida, é sujeito a um cadastro, o chamado tombo, no qual é mencionado terem sido colocados 32 marcos nos seus limites, os quais, depois de medidos, terão de perímetro 5310 varas (c.5,8Km) e que as suas terras estão prontas para semear pão (trigo) e amanhar vinhas, bem como possuem 160 pés de oliveiras “entre grandes e pequenas”, 69 pés de sobreiros e carvalhos e outras árvores de fruto nas quais se contam pereiras e figueiras.


Lá se situam também as casas de morada de Diogo de Sousa e seu filho Diogo Alvares de Sousa que, do que lemos, podemos, se soubermos, desenhar o seguinte: uma escada de pau com 9 degraus que dá acesso a uma varanda assoalhada de madeira coberta de telhado forrado de cortiça medindo 3 varas de comprimento por 2 varas de largura (cerca de 7,26 m2), por onde se entra para uma “casa assobradada com quatro águas”, que mede cinco por quatro varas (cerca de 24,2 m2) de telha forrada de madeira de pinho, junto à qual há outra “casa” com duas águas com telha forrada de cortiça e uma janela virada a poente, medindo também cinco por quatro varas. São estas casas (o que chamamos agora de divisões ou quartos) de sobrado, por se situarem  num piso superior debaixo do qual se situam as correspondentes “lojas” com as mesmas dimensões.


Para além destas casas de morada, o tombo enumera as seguintes : uma casa térrea de telha vã com um portal de pedraria tosca que mede cinco por três varas (cerca de 18,15 m2) com paredes de terra e barro, e uma porta, com uma loja de sal; uma casa térrea de uma água que serve de adega, mede quatro por quatro varas (cerca de 19,36 m2) e tem uma porta a nascente; dois palheiros cobertos de telha com paredes de terra e barro que medem cinco por três varas (cerca de 36,3 m2); uma casa ou lagar de fazer uvas com paredes de pedra e barro que mede cinco por duas varas (cerca de 12,1 m2) com porta e janela virada a nascente; um curral de ovelhas mais de meio coberto, que mede cinco por quatro varas (cerca de 24,2 m2).


Fica então Diogo Alvares de Sousa foreiro à Comenda da Beselga através do Casal da Belida, por três vidas, que se sucederão da seguinte forma: ele Diogo nomeará quem lhe sucederá ao morrer, o qual, por sua vez, fará o mesmo, não podendo, no entanto, serem nomeadas “pessoas proibidas em delito”. Morrendo a terceira vida, ficará o Casal devoluto, tendo a pessoa que nele habite, se quiser, de pedir a renovação do foro.


O foreiro terá a obrigação de lavrar e semear o casal, bem como de amanhar as vinhas, mandar plantar oliveiras e fazer as benfeitorias que puder, bem como, o mais importante, pagar o foro. Este fica estabelecido em 9,5 alqueires de trigo, 8 galinhas, um alqueire de “bollo” e 1/3 ou ¼ de todos os frutos, consoante a época. O pão (o trigo) será entregue na eira e as galinhas no Natal.


Os rendimentos da família de Diogo Alvares de Sousa, n. 1624, provenientes do cultivo deste Casal e eventualmente de outras terras, tinham-lhe permitido tornar-se bacharel em Cânones (por vezes também surge como licenciado) em Coimbra em 1650, o que o terá feito subir socialmente, embora não se tenha notícia que tenha exercido qualquer cargo relacionado com a sua formação académica. Será senhor da sua fazenda, isto é, viverá dos rendimentos da agricultura, não a trabalhando directamente como os seus antepassados tinham feito. O seu casamento com Inácia Correia, que terá durado muito pouco (quando o filho é muito pequeno já não se fala na mãe, terá morrido de parto?) será mais um degrau na sua ascensão social. Através dela, que fora familiar do Morgado da Beselga (ser-se familiar não significava ser-se parente de sangue ou afim, seria alguém que viveria em casa do morgado, sobre a sua protecção) consegue a aproximação à nobreza, descolando mais do meio onde nascera, herdando também, por via da mulher, a quinta da Mata, onde passa a viver deixando a Belida ao filho. Vive limpa e abastadamente, apresentando-se com vestuário e habitação apresentável nos parâmetros exigidos a um homem honrado, tendo criados e cavalo. Morre relativamente tarde (é vivo em 1690) já com netos do seu único filho, sem voltar a casar mas não livre de relações sentimentais, como mostra, em 1 de Outubro de 1673, uma rapariga solteira do casal do Bregil quando, ao baptizar o filho, que morre pouco depois, dá como pai o Licenciado Diogo Alvares de Sousa.


O seu filho Manuel Pereira de Sousa que casa, muito novo, em Assentiz, com Grácia Maria parente da casa de Vargos, não segue as pisadas do pai indo para Coimbra, prefere criar a sua numerosa família com quem parece viver feliz e alegremente entre as freguesias da Madalena e Assentiz, sendo padrinho de inúmeros casamentos e baptizados, ocupação em que, logo que crescem, os filhos o seguem. Deve ser um homem simples, da terra, que gosta de se dar com os seus conterrâneos e protegê-los, já que os seus meios lhe permitem. Quando morre em 1731 é, como outros parentes,  enterrado na Igreja de Sta Maria Madalena em sepultura dos seus antepassados (na cova do altar-mor).


No início do sec. XVIII deixa de ser feita alusão, nos assentos paroquiais da Madalena, à Belida como Casal passando a ser referirida como Quinta. Manuel Pereira de Sousa, ele, a mulher e os filhos, passam a ser moradores na Quinta da Billida ou na Quinta de Porto da Lage (neste caso por esta localidade já ter algum desenvolvimento e ser a mais próxima da quinta). A mudança da denominação de Casal para Quinta terá a ver com o desejo de elevação de estatuto social dos donos. A denominação de “quintas” que tem a sua origem nas casas de campo dos citadinos nobres ou, pelo menos, dos endinheirados, que as visitam e utilizam como recreio em determinadas épocas do ano, depressa é apropriada por aqueles que nelas vivem e as usam como única habitação e como fonte de rendimento, por essa designação os associar a gente com estatuto social superior.


E chegamos à terceira vida a quem foi concedido o foral da Belida, outro Manuel Pereira de Sousa, nascido em 1681, filho do anterior. Este não será um académico como o avô nem um homem de família como o pai, mas um ambicioso empreendedor que compra casas na vila de Tomar, e terrenos fora do domínio dos freires de Cristo, de forma a adquirir propriedades livres. Pretende, também, confirmar o prestígio que a sua família goza localmente com um estatuto que, não o fazendo elevar-se à nobreza, lhe viria a conferir poder e autoridade. Candidata-se a Familiar do Santo Ofício obtendo a respectiva carta em 1713, a qual atesta, como tinha de ser, a sua limpeza de sangue e a dos seus ascendentes, a inquirição a que se procede nas freguesias de Assentiz e Madalena, de onde provêm os seus antepassados, confirma sem sombras de dúvida que se tratou sempre de cristãos. Não há nele réstia de sangue judeu, mouro ou mulato. É um Cristão Velho cuja família, tanto quanto se lembram as testemunhas, nunca botou a mão no trabalho, não eram mecânicos viveram à lei da nobreza com carruagens e criados. Está conseguido o estatuto pretendido. Só mais tarde, já com 46 anos, se casa com Maria Teresa sua parente em 2º e 3º grau de consanguinidade, nascida no Alvorão, Assentiz (a noiva, uma vez que ele já é Familiar do Santo Ofício, é também objecto de inquirição em 1727, de forma a ser autorizada a com ele contrair matrimónio). Ser Familiar do Santo Ofício, para além de gozar do privilégio de ser julgado por instâncias próprias da Inquisição (o que não era de somenos num tempo em que qualquer um estava sujeito a ser denunciado por insignificâncias) passava por estar sempre ao serviço do santo ofício, controlar o cumprimento de penitências a que fossem condenados os seus conterrâneos, por vigiar e denunciar situações que estivessem sob a alçada do Tribunal da Inquisição, executar prisões e outras diligências que lhes fossem ordenadas e participar em autos de fé envergando o seu hábito. Se Manuel Pereira de Sousa usou ou não, e de que forma, estes poderes, na sua longa vida que termina sem incómodos em princípios de Dezembro de 1760, não o sabemos.


Ainda nesse mesmo mês de Dezembro, o filho do falecido, outro Manuel Pereira de Sousa, também ele Familiar do Santo Ofício, faz um requerimento ao comendador da Beselga a solicitar renovação do prazo, uma vez que o Casal da Belida se encontra vago, sem foreiro (o seu pai era a terceira vida). Tal é-lhe concedido em Junho de 1761.


Mais de cem anos após o foral anterior, a moradia dos Sousa da Belida faz a sua diferença, já não é a casa de um lavrador medieval. A sua simplicidade que assentava e tinha como fins a protecção e a funcionalidade, deu lugar ao conforto, quiçá ao luxo. Tem agora uma fachada de mais de quinze metros de onde se destaca a velha varanda em madeira de castanho forrada de cortiça, agora ladrilhada de tijolo virada para o vendaval, de onde desce uma escada de pedra lavrada para um pátio com laranjeiras e limoeiros. Da varanda entra-se para uma casa sobradada quadrada, que serve de sala, com cerca de 254 m2, de madeiramento de castanho forrada de pinho, com a largura da frontaria da casa, com uma porta e uma janela que dão para a varanda. Seguem-se quatro casas de madeiramento de castanho forradas de cortiça com aproximadamente 24,2m2 de área cada uma, com janelas em redor da casa, e duas delas com portas para a rua, uma outra casa de 6m2, mais outra que serve de cozinha com aproximadamente 10 m2. Por baixo existem lojas com a mesma dimensão do andar superior.
Cá fora deparam-se a adega, os palheiros, o lagar e o curral do gado, redondo, que mede 49 varas de perímetro.


Nas terras do Casal crescem 350 sobreiros e 209 outras árvores de que fazem parte figueiras, pereiras e ameixoeiras, para não falar das vinhas e oliveiras.
Na década de que falamos (60 de XVIII) este "prazo ou quinta" paga de décima sobre os seus prédios rústicos 3$540 réis e sobre os urbanos 765 réis. A décima foi um imposto criado em 1641 por D.João IV no sentido de prover às necessidades da defesa do reino, incidindo sobre 10% de todas as rendas [rendimentos], «assim de bens de raiz, juros e tenças, como de ordenados de ofícios (…) sem excepção alguma, nem privilégio».

Até aos anos noventa do sec. XVIII os Pereira de Sousa, Manuel e a irmã Ana Maria Teresa, entretanto casada com o Doutor Simão José de Faria Pereira, da Quinta do Carneiro, da Colegiada de Ourém, continuam a viver na Quinta da Belida até o primeiro se mudar para Vargos. Herda então aquela casa por falecimento sem descendência dos anteriores proprietários, os seus primos o Capitão Manuel Lopes Moreira e sua mulher Maria Madalena da Silva.


Será a partir desta circunstância que tem início o mito de que a Quinta da Belida pertenceria desde sempre à casa de Vargos. Como vimos, foi precisamente o contrário, foram os foreiros da Belida que, se quisermos, se apossaram de Vargos. Este último Manuel Pereira de Sousa morrendo sem filhos, terá como herdeiros a sua irmã e posteriormente os seus sobrinhos, senão residentes pelo menos sempre ligados a Vargos. Assim, na memória mais recente seria esta família a possuidora de sempre da Belida.


Nos primeiros anos do sec. XIX, com excepção de pouco mais de uma década, até aproximadamente 1820, em que é habitada por um casal que aparenta ter fumos de alta burguesia, Luís Alves de Sousa Lima e Ana Matildes Pereira, parentes dos Preto de Magalhães da Quinta do Milheiro em Ourém, na Belida vivem apenas trabalhadores. Constituem exemplo destes, José Rodrigues e Maria Joaquina Narciso que vêm de Vargos recém casados e aqui dão início a uma dinastia. Esta, que ainda hoje perdura, é depois continuada no Paço da Comenda, através também do segundo casamento de José Rodrigues com uma prima da primeira mulher, oportunamente chamada de Joaquina Maria evitando assim enganos, assente nos seus treze filhos.


Em 1834, com a nacionalização dos bens das ordens religiosas, sendo os da ordem de Cristo, como todos os outros, secularizados e incorporados na fazenda nacional, o que terá acontecido à Belida? Provavelmente os foreiros, na altura os proprietários da quinta de Vargos, tê-la-ão comprado em conta. Tudo foi vendido ao desbarato, a dívida pública era colossal, havia que, pelo menos, arranjar dinheiro para pagar os juros. Como exemplo, lembremo-nos da mais rica das herdades dos freires de Cristo, a famosa Quinta da Cardiga (tão extensa e rica que D.João III autorizou a alteração do percurso do Tejo para que este passasse a banhá-la), que foi comprada por "mil contos", enquanto em 2017, só a sua parte urbana assente em 4,2 hectares, dizem os jornais, estava à venda por dez milhões de euros.É provável que os de Vargos também tenham beneficiado do negócio da venda dos bens da Ordem, à semelhança daquele que veio a ser 1.º ministro de Portugal em 1842 e feito Conde de Tomar, que adquiriu grande parte do edificado do Convento de Cristo mais muitas das terras que o rodeavam.

Trinta anos depois, ocorre o início do último estertor da longa vida do “Casal da Velida” que volta às suas origens de casa de lavoura cultivada directamente por quem a habita. Será ele, talvez um provável descendente de quem a amanhou há 400 anos, Manuel de Sousa Rosa proveniente de Assentiz, que a arrenda, lá passa a viver com a família e a compra em 1880. Mas os tempos são outros, Manuel de Sousa Rosa enriquece, mas faltou-lhe o golpe de asa, a ambição ou a arte de ver que era tempo de mudar, como fez, por exemplo, o seu contemporâneo e compadre Manuel Mendes Godinho. Permaneceu um homem do outro tempo, e assim morreu. Tal como a Belida que em 1920 é abandonada, quando os últimos membros da família que ainda a habitavam, uma filha e um neto, a deixam. Esse neto será a lembrança viva da Belida, conhecido enquanto viveu como o António da quinta. (MFM)

* Estas asserções têm origem em assentos paroquiais que me foram dados a conhecer por  Edmundo Vieira Simões, a quem agradeço.




19 de fevereiro de 2021

Memórias* - A Lança em África


A Lança em África

 

Quando fomos fazer o exame da 4.ª classe a Tomar, à escola da Várzea Grande, a minha turma encontrava-se muito desamparada, a professora estava doente há algum tempo e não viera. Estávamos para ali sozinhas, cada uma com as suas famílias, é certo, mas sem a nossa galinha a unir-nos, a nossa professora, como a dos outros a dar-nos as instruções finais.
 Nas últimas semanas antes do exame, nós, as da 4.ª classe, íamos mesmo a casa dela ter aulas, sentávamo-nos na sala de jantar no chão, enquanto ela estava num cadeirão de braços com uma manta nas pernas (acho que esta imagem só pode ser fantasia minha- cobertor no Verão com as temperaturas daqueles sitios??). 


Penso que a culpada daquele esforço da professora e das aulas extras das minhas colegas era eu! Como além daquele exame, eu teria que fazer mais dois, para os quais eu tivera que arranjar mais uns livros de exercícios, todas elas, por solidariedade forçada, foram arrastadas para aquelas divisões de orações e problemas de capacidade dificílimos que não lhes serviriam de nada pois o seu caminho escolar acabava ali. Mas elas não se queixavam, sabiam tanto ou mais que eu, gostavam de aprender e não teriam que vir a provar nada, como eu. O que se calhar lhes tornava aquela tarefa  mais leve.

E lá estávamos todos nós, em Tomar, à espera de exame, afiambrados nos fatos novos, os rapazes de fatinho, as meninas de vestidinho a estrear.

Depois de entrarmos na sala que nos estava destinada, grande sala que partilhávamos com outras meninas provenientes de outras aldeias, e de nos sentarmos após cantarmos o hino, uma das professoras presentes, a imagem que guardo era que seriam imensas professoras, perguntou-nos se trazíamos cantigas e quem queria começar. Um grupo de outra escola arrancou logo com uma cantiga infantil. 
O meu grupo entreolhou-se, para nós aquilo era uma novidade, não estávamos prevenidas, não trazíamos nada preparado. E, entretanto, todos as outras escolas representadas na sala, iam cantando - debaixo da ponte nascem violetas ao comprido…, foi na loja do mestre André…, a célebre Procissão, etc. estava a chegar a nossa vez. Ora nós tínhamos o nosso reportório, que cantávamos no recreio lá na escola, dele até constavam algumas das já cantadas, não seria por não termos ensaiado que nos íamos negar. E, enquanto as outras cantavam, decidimos. 


E foi assim que aquelas vetustas e institucionais paredes de uma sala de um respeitável estabelecimento de ensino português, de onde pendiam a Cruz de Nosso Senhor e o retrato de Sua Excelência o Sr. Contra-Almirante Américo Thomás, aquelas paredes, dizia, ouviram, pela primeira vez, e única quero crer, o maior e mais pungente dramalhão cantado na época pelos ceguinhos nas feiras, saído com toda a garra e circunstância de dentro de oito gargantas infantis empenhadíssimas em deixar bem vista a sua escola mãe. Consistia o libretto na trágica história de uma criancinha que chorava a sua amarga orfandade à beira da campa térrea da mãe. Nada mais triste, nada mais pesaroso, nada que partisse mais os corações do que aquela dolente área, cantada com toda a alegria e entusiasmo por oito rapariguinhas de aldeia! Juntou-se gente. Vieram professores de outras salas ouvir-nos. Um sucesso.


Mas, afinal, não fora bem assim, apercebemo-nos depois. A presença da nossa professora tinha-nos feito mesmo falta! Disse-nos ela, quando soube, que não deveriamos ter cantado, não éramos obrigadas, só cantava quem queria! A nossa cantoria não parecera própria (hoje interrogo-me se isso se lhe trouxe alguma consequência profissional) iamos lá nós perceber porquê. Então não tínhamos feito bem, aquilo não era um exame, não tínhamos todos de estar igualmente preparados e a escola não tinha que estar representada em todos os aspectos? Comentámos entre nós indignadas, certas do nosso valor e da injustiça de que éramos vítimas. E que não se atrevessem a convencer-nos do contrário. A mim pelo menos, até hoje, ainda ninguém se atreveu!

Depois, eu, a única da classe, fui fazer exame de admissão à escola técnica e ao liceu.

O meu avô comentava estes meus feitos, a toda a família e a quem o queria ouvir, como algo nunca visto, "uma lança em África", palavras dele. Eu tinha "saído vencedora", também segundo ele, “em quatro provas”, quatro. Às três escolares o meu avô João juntava, o que para ele não era de somenos, o meu exame de catecismo, de que francamente não me lembro, mas se ele o dizia! 

E, em Outubro, saí lá de casa, deixei Porto da Lage! (MFM)




*Termina hoje a publicação destas croniquetas escritas há muitos anos. Quando decidi publicá-las, uma vez que eram retalhos (eu não escrevo romances), achei por bem pô-las todas sob um mesmo "chapéu", sob um nome que as contemplasse e unisse e desse ideia do que se tratava. E assim, procurando afanosamente por entre as mais subtis e inspiradoras designações, chamei-lhes "Memórias"!!! Não arranjei melhor nem mais imaginativo, valha-me Deus, até na nostalgia sou pragmática e prosaica!
Já as publicações iam a meio quando me lembrei que também há alguns anos, mas mais recentes, alguém me disse que a memória que tinha de mim era de uma miúda atrás das grades do portão dos Olivais; ora aqui estava um título, que à parte ser roubado, teria sido, para além de exacto, belo e apelativo! Já não vou a tempo de o alterar, mas pegando nessa imagem, peço aos leitores cuja paciência os obrigou a chegar a este maçador e dispensável  pé de página que, se por acaso não tiverem nada mais para fazer e lhes der para lembrar ou reler estas "Memórias", o façam tendo em mente uma criança 
guardada e espantada a olhar de boca aberta para tudo o que era velho como o mundo. Agradeço em nome dela.(MFM)

18 de fevereiro de 2021

Memórias - A Tagarela

 

                                                                               A Tagarela


Era muito animada aquela estrada. Passava e passava-se, sempre, muita gente e muita coisa  por ali. Automóveis, era raro, a estrada era de terra, com fundas poças no Inverno e muito pó no Verão, mas os tractores já eram comuns por lá e as carroças e bicicletas então, era um virote, já para não falar de gente a pé a caminho dos seus trabalhos no campo. Eu costumava imaginar o que haveria lá para o fundo, da estrada, onde eu nunca fora, que arrastaria tanta gente. No Verão, quando o milho e o tomate cresciam, ouviam-se, mal rompia o dia, os motores de rega, sinal da modernidade, ou o chiar das noras puxadas por mulas ou burros, a providenciarem a água que os ajudaria a suportar o calor infernal da tarde. Naquela várzea ao longo da ribeira, as pequenas propriedades, as fazendas, sucediam-se em fatias, paralelas umas às outras, cada uma com o seu poço, algumas com grandes tanques, outras nem tanto, mas todas verdejantes, todas prósperas, com horta, milho e pomar. Isto de ambos os lados da estrada, embora do lado direito, ao longo da ribeira, as hortas predominassem, Do outro, as vinhas estendiam-se, à medida que o vale acabava para a esquerda, para a encosta, e entremeavam com os campos de oliveiras e figueiras, semeados de cereal seco que se colheria no pico da estação.

Ao fim do dia, eu punha-me com a cabeça enfiada nas grades do portão ou ao cimo das escadas, com a tia Alice, a minha madrinha, quando ela estava connosco, a ver a retirada do campo. Vejo agora que este seria (será que já é?) um bom nome para um quadro naturalista, uma estrada à luz estreita quase de crepúsculo por onde rodam pessoas e animais alquebrados, a caminho do merecido descanso nocturno. Os boas tardes, até amanhã se Deus quiser, o vá com Deus ecoavam no silêncio do final do dia e faziam sombras no portão, na estrada, em todos os corpos, de tal forma que aqueles sons se corporizavam e existiam, ainda existem e me correm no sangue.
Umas figuras patuscas que passavam todos os dias pela estrada eram uns pais e uma filha, eles de meia idade, ela pelos vinte anos, muito alta, mais alta do que qualquer rapariga que eu já tivesse visto, esgalgada e ossuda. Iam os três sempre de manhã, de carroça, a cuidar do amanho da terra; ao cair da noite, à volta para casa, quando traziam muito carrego, vinham apeados, quanto muito arranjava-se um lugarzinho na carroça, no meio do feno, das hortaliças ou da lenha, para a mãe, a mais fraca de todos.


Mas, invariavelmente, a pé ou sentada na tábua da carroça, pela manhã, ou ao cair da noite, sempre, sempre, a rapariga ia a falar animadíssima. Estou a vê-la, a pé, a figura alta e magra de saia rodada de flores, e botas grossas, sempre a esbracejar e a atirar com as pernas, entusiasmadíssima com as próprias palavras. Chamávamos-lhe lá em casa a máquina falante.
Nunca percebi nada do que dizia, parece que ninguém percebia. 
A minha madrinha dizia que gabava a paciência dos pais por estarem constantemente a ouvi-la, eu achava que eles tinham muita sorte em tê-la, pois não era a vida deles animadíssima com uma filha daquelas?
Mas a madrinha também tinha pena dela, dizia, embora não explicasse porquê, que ela tinha uma história triste, estava condenada a viver para sempre aquela vida, sempre para cá e para lá com os pais a tratar da sua fazenda, sem vida de rapariga, sem ir passear com as outras, ao café ou aos bailes ao domingo à tarde, sem ter namorado nem casar, e um dia, depois, a ficar definitivamente sozinha. Valia-lhe a sua alegria. 
E eu, conquanto fingisse que não e não fizesse perguntas, sabia o motivo da compaixão por ela, conhecia, através das minhas fontes habituais, as minhas colegas de escola, um pormenor íntimo sobre a rapariga do qual, parecia, toda a gente das redondezas estava inteirada. Eu ouvira-as perplexa - a pobre da tagarela tinha nascido homem e mulher ao mesmo tempo, diziam, e tinham sido os pais a escolher que ficasse com sexo feminino! Eu acreditara, mas não compreendera, nem como se processava fisicamente um fenómeno daqueles, nem, muito menos, porque é que isso a afastava do convívio dos demais!(MFM)

Luigi Gioli ( 1854-1947) Ritorno dai campi 1912

 NOTA: Outras imagens de pinturas: Van Gogh (1853-1890) e Tomás de Anunciação (1818-1879)


17 de fevereiro de 2021

Memórias - A Anita

 

A Anita era uma amiga de sempre da avó. Tinham sido vizinhas em Tomar e tinha-se aproximado e aprofundado amizade com a nossa família,  especialmente com a avó apesar de alguns anos mais nova do que esta, depois de ter perdido os pais muito jovem 

Era uma senhora alta, com porte distinto, modos sofisticados, muito alegre e simpática, sempre muito bem vestida e de cabelo arranjado, visita regular lá nos Olivais, algumas vezes acompanhada do filho.

A história da vida da Anita era surpreendente. Ela própria ma contou, já eu era crescida, mas, antes, quando vivera em Porto da Lage já eu tivera ocasião de embasbacar, não era para menos, ao saber o modo peculiar como a Anita regulava, digamos assim, a sua vida.

A Anita vivia em Lisboa* quando ficara viúva de um militar de baixa patente que a deixara com fracos recursos e um filho pequeno, um rapazinho atrasado mental de menos de dez anos de idade. Contava ela que tinha passado dias de desespero, sozinha sem família que a apoiasse, sem saber como havia de prosseguir a sua vida, pois sentia-se obrigada a trabalhar para sobreviver mas não via como o fazer, por não ter a quem deixar o filho, criança com comportamento difícil e que não aceitava estranhos.

Aqui interrompo para contar o conto de outro ponto, vivia eu em Porto da Lage e já tinha conhecido a Anita que se correspondia muito com a avó. Num dia em que se recebeu carta e, à hora de almoço, a avó a leu em voz alta ao avô e à tia Alice, eu ouvi, ao contrário do que era costume. Acho que se terão esquecido que eu estava por ali. Eram cartas pormenorizadas, as daquele tempo, depois de se perguntar pela saude e informar da própria, recomeçava-se onde se tinha terminado a anterior missiva, contando-se todas as peripécias ocorridas entretanto, ...tinha-se ido ali, ...fulano dissera, ...cicrano acontecera. Mas reparei durante a leitura na referência sistemática a um mesmo nome de que eu nunca tinha ouvido falar, quase em todos os assuntos tratados, que dissera, que aconselhara, o que me intrigou. Claro que eu não tinha direito a meter o bedelho, primeiro porque não, a gente não se metia nos assuntos dos adultos enquanto eles falavam ou tratavam do que fosse lá deles, segundo porque intuía que estava ali por engano e o que eu menos queria era que dessem por mim. Pretendia ouvir o final, mas, chegado a ele, fiquei na mesma sem saber quem seria o tal.
Mas não esqueci. Confiante no efeito surpresa e na salvaguarda da tia Alice, sempre pronta a defender-me, assim que achei oportuno perguntei- Avó, quem é o Víctor? – Qual Víctor, filha? – Ora, aquele de que a Anita falava na carta? E a tia Alice deu uma gargalhada – Descalça lá agora essa bota, Maria José! A avó acabou de lavar a loiça, sentou-se. A avó tinha uma maneira particular de estar sentada, com as costas muito direitas e as mãos cruzadas deitadas com as palmas para cima,  sobre o regaço, penso que deveria ter os braços muito compridos para conseguir aquela posição, e disse – Olha filha, tu já és crescida – o que para mim antecipava a vinda de coisa séria. E lá informou, com um suspiro, que o Víctor era o marido da Anita. E o que é que isso tinha? Casou-se outra vez, pronto! Tanta coisa para isto! -Não filha, é o mesmo marido. – O mesmo, mas não tinha morrido? – Morreu sim!

Regresso dois parágrafos atrás, estava a Anita sem saber o que fazer à sua vida de viúva sem rendimentos quando, uma noite estando a dormir, se sente abanada na cama, acorda e quem é que vê? O falecido marido, que a conforta, lhe diz que tudo vai correr bem e lhe dá um endereço de um local onde ela deverá ir pedir que lhe acolham o filho. Ela assim faz, lá chegada sabe que era uma instituição dirigida por frades que educavam crianças com problemas da natureza dos do filho. O rapaz ali ficou até ser um homem, sempre acompanhado pelo pai que o vigiava e ia dando notícias à mãe, quando acontecia estar doente ou ser menos bem tratado lá se punha ela a caminho e chegava, para surpresa dos frades, para o acarinhar e  regularizar as coisas.  
Quando os conheci era contínuo num escritório de advogados, cargo que levava muito a sério, usando sempre fato e gravata além da inseparável pasta, onde, orgulhoso, levava os preciosos documentos ao tribunal ou onde fosse.  

E muitas noites se seguiram, depois, a esta de reencontro da Anita com o marido, nada era decidido, nada era feito sem o acordo do Víctor, muitas vezes era ele a propor iniciativas que conduziriam a melhorias na família. Por conselho dele, passara ela a ser membro de uma igreja espírita qualquer de onde trazia sempre livros e algum proselitismo, a única conversa da querida Anita para que não havia ouvidos nem retorno. Ninguém por ali estava interessado em conhecer a raíz da sua crença, em questioná-la ou contrariá-la.Nunca ouvi o avô falar sobre isso, mas tenho a certeza que sustentaria que seria aquele o modo que Deus arranjara para a ajudar a vencer a prova que a vida lhe enviara. Os restantes, embora não se atrevessem a envolver o Senhor em matéria tão sensível, pensavam o mesmo. Ela era nossa amiga e aquilo, fosse o que fosse, ajudava-a. Seguia-se no assunto o lema da tia Alice "cada um era feliz à sua maneira".

Entretanto, depois de ver o  filho entregue em boas mãos, passara ela a ser costureira de dentro. Trabalhava em casa de senhoras das quais retirava o seu rendimento e também, parecia-me, aquela desenvoltura e aquele gosto em se vestir.

Depois de, em miúda, ter passado a saber deste “segredo”, que só o seria para nós pois a Anita não tinha pejo nenhum em falar dele (havia sempre muito cuidado com os encontros entre ela e a tia Maria**, apesar da Anita estar avisada, a avó não confiava e procurava que estivessem juntas o menos tempo possível), pelo contrário, aquilo era a sua vida, passei, já mais velha, a pedir à avó para ler as cartas. Sozinha dissecava aquelas descrições de conversas com o Victor, que era, como lhe hei-de chamar? um ser sensato, inteligente, que se exprimia bem.

Eu adorava conversar com a Anita, sempre que sabia que ela estava em Porto da Lage arranjava maneira de também lá ir, para além da alusão por tudo e por nada ao Victor, o que me deliciava (era da gente se esquecer que ele não estava no mundo dos vivos) e a Anita sabia tudo sobre moda, trazia revistas, conhecia intrigas sobre os artistas da televisão. Trabalhava na Lapa, em casa da marquesa de …  prima de …. que tinha muitas filhas, meninas que se davam, namoravam algumas até, com actores e cantores e lhe contavam tudo sobre aquelas vidas  divertidas, modernas, libertas, tão diferentes da minha, provinciana.

A última vez que me lembro de falar com ela, em 1975 ou 1976, estava ela empenhadíssima na construção de uma casinha em área protegida na Fonte da Telha ou Lagoa de Albufeiranão sei bem, motivo pelo que se fizera sócia de uma cooperativa. Dizia ela que tudo estava encaminhado para ser  legalizado. Não foi. Enganou-se o Víctor, ou ela não lhe deu ouvidos. Quando eu soube da noticia da demolição daquele bairro, lembrei-me dela e desejei que já cá não estivesse, pelo menos fisicamente, para ver. (MFM)


* Numa rua linda, na Madragoa, muito perto do palácio de S.Bento. Rua, onde eu, mais tarde também vivi sem saber que tinha sido a dela. Quando finalmente fiz a ligação (através do remetente de uma carta dela, já todos tinham morrido) interroguei-me sobre a forma como ela explicaria isto.

** Já aqui falei nela, católica apostólica romana com tolerância não incluída, nunca aceitaria nem a Anita nem que ela fosse recebida lá em casa.

16 de fevereiro de 2021

Memórias- A Casa (cont)

 

Aquela casa solitária, no meio de olivais e com difíceis acessos, nunca estava sozinha. Havia sempre os empregados, quem vinha buscar e trazer produtos, fazer negócios com o avô, e as visitas.

As visitas, quer fossem as de média ou curta duração, como primas e amigas da avó e a Augusta que vinham para ficar pelo menos uma semana, quer as que vinham por um dia ou até por momentos como a tia Maria, eram habituais.

A tia Maria chegava a vir várias vezes por dia, muito diligente e prestável, lá vinha de sua casa, atravessava a ponte e a horta trazendo sempre alguma coisa ou disposta a ajudar em algo. A doença cardíaca da avó era o pretexto, embora a ajuda fosse recebida pela beneficiária não sem alguma impaciência. Para a tia a ajuda não se oferecia, impunha-se. Mas gostava de mim, era meiga e atenciosa, muito atenta ao meu bem-estar. Só uma vez nos zangámos. Sabendo, num domingo qualquer, que, por uma alteração inesperada eu, para não ficar sem missa, teria que ir com o avô a pé a Cem Soldos, ela achou mal, não concordou e impôs-se “a menina não pode fazer esse caminho todo a pé, não está habituada”, enfrentou o avô, aparelhou a sua mula à carroça e lá fomos.


O avô amuou e foi a pé. Íamos as duas sentadas na tábua da carroça devidamente tapada com uma manta quando a tia reparou no tamanho da minha saia e não gostou. Por duas vezes ma puxou para baixo. Pretendia tapar-me as pernas, processo impossível, o vestido era curtíssimo como todos os daquele tempo, e mais curto ficava por eu ir sentada. Farta da insistência, não arranjei melhor para dizer do que a expressão um tudo vulgarucha (teria a avó razão ao proibir-me certas companhias?!) então em uso na minha escola – Mas o que é que tem? Isto não é nada do outro mundo! Ela olhou-me, surpreendida com o despropósito nada habitual em mim e disse- Pois não, não é do outro mundo! E aí é que reside o mal! Eu esbugalhei os olhos à resposta a tentar perceber, olhando para a sua cara acusadora. Quando compreendi, morri de vergonha das minhas escanzeladas e brancas pernas e só desejei ter ali um longo hábito, como os usados pelas santas dos altares, para tapar aquelas pecadoras.

Aguarela de Roque Gameiro

Uma constante na frequência diária de gente lá em casa, eram os jornaleiros, aqueles que chegavam de manhã, habituais nas tarefas de todos os dias que trabalhavam juntamente com o avô, iam com ele para as fazendas ou ficavam por ali, entre os quais se incluíam mulheres que, sendo preciso, também ajudavam em tarefas domésticas. Faziam limpeza, amassavam o pão e lavavam a roupa.  Lavavam-na no tanque ou na ribeira em certas épocas. Uma destas era uma prima em segundo grau do avô, filha de um primo direito. Vinha sempre com uma filha adolescente para a ajudar. Era uma pessoa que caía ou batia frequentemente em coisas, das escadas ou no que fosse, pois a cara andava sempre esmurrada, às vezes mesmo ferida. Eu gostava muito de estar com elas, de encher de sabão os lenços, ou outras pequenas peças de roupa,  previamente molhados e esticados, esfregá-los com determinação na pedra e, depois, enxaguar na água limpa, a avó deixava, elas eram educadas, falavam bem, não diziam palavrões. Diferente era quando a lavagem tinha lugar na ribeira, ao fundo da horta, nas brancas pedras seculares. Aí chegavam a juntar-se muitas mulheres, provenientes de várias casas da família e de quem pedisse para ir ali lavar, o sitio era propício, a água limpa, e o espaço contíguo de erva baixa indicado para pôr a roupa a corar. Então a conversa era outra. Elas falavam livremente entre si e pouco se importavam com uma miúda que andava por ali, a passear de pés dentro de água, a jusante das lavagens, para não a sujar. Contavam das suas alegrias e tristezas, lamentavam as alheias como ainda pior que as suas. Foi destas conversas que eu percebi que a prima não devia a sua cara esmurraçada a quedas nem a encontrões, ela, como outras cujos episódios de vida eram ali contados, era vítima de uma violência que eu não imaginava existir.

Madonna, Munck

Dentro do meu assombro com esta novidade brutal juntava-se o estilhaçar da imagem que eu tinha de maridos e pais, dos que eu conhecia realmente e da dos livros, e a profunda pena por aquelas mulheres e crianças espancadas pelo poder caprichoso de quem tinha força, o que me magoava e não me deixou sossegar por muito tempo. Tanto mais que não havia ninguém para me acalmar, como noutros casos, não era suposto eu conhecer nada disto, eu sabia que "não eram coisas para a minha idade", não havia, portanto, razão para conversa. Apenas na escola, onde me fui apercebendo da banalidade do fenómeno. Os pais assíduos das tabernas, bêbados ao entrar em casa noite fora pondo toda a família em sobressalto, espancando a mãe e os filhos que intervinham, por vezes a fuga para casa de vizinhos e parentes, eram a triste rotina de muitos dos da minha idade.
Mas até esta infeliz matéria, servia de tema à avó para uma das suas mise-en-scène habituais como contarei a seguir. Embora não com muita frequência, apareciam por vezes ao portão, os “pobres de pedir”. Pediam por amor de Deus algo para comer e, fugindo ao lema da família do marido, em que tudo tinha que ser merecido, senão de outra forma, através do trabalho, a avó dava sempre, sem exigir nada em troca. Dava sempre, pelo menos, uma mão-cheia de azeitonas ou de passas, passas de figo que havia sempre de sobra.

A Caravana Cigana, Van Gogh
Uma “pobre” que aparecia uma vez por ano era uma cigana. Fazia parte de uma caravana, composta por várias carroças puxadas por tristes e famélicos cavalos ou mulas, que atracava anualmente em Porto da Lage e por ali ficava uns dias.

Do lado de fora do portão, agarrando-se às grades chamava ela pela avó. Oh minha amiga, minha amiga! A avó aproximava-se e lá ficavam, a avó no pátio, a outra na estrada, separadas pelo portão fechado, falando longamente por entre as grades. Nestas conversas contavam coisas das vidas e famílias respectivas das quais nunca se saberá qual a mais fantasiosa. A avó inventava coisas pois "não convinha que ela soubesse da nossa vida” sem quaisquer remorsos porque, segundo ela, a outra fazia precisamente a mesma coisa. Mantinham assim uma amizade de longos anos, na qual só este sentimento era verdadeiro, tudo o resto eram flores (expressão da avó quando se queria referir ao supérfluo) baseada numa hora de representação anual ao portão de uma casa em nenhures, em que ambas eram simultâneamente as actrizes e as espectadoras! Sessão acabada, antes de se despedirem, a avó ia buscar uma garrafa de azeite e dava-lho. O azeite não se dava a não ser para fazer um agrado a quem se estimava ou se devia favores. De resto, destinava-se, por exemplo, para a candeia da Senhora da Piedade (costume tomarense) mas esse era do velho, dos anos transactos. Este era azeite do bom, do ano, que a cigana escondia debaixo das saias, enquanto agradecia muito, a recomendava muito a Deus para que lhe desse saúde e paciência, lembrando-lhe que Ele um dia havia de a recompensar. E ia-se. Se, por acaso lobrigava o avô, longe ou perto, imprecava-o sempre – O diabo te arrenegue homem maldito. Que vás parar às profundas do inferno. Homem maldito! repetia bem alto, levantando os braços com os punhos fechados unidos, enquanto a vista o alcançasse. O avô era surdo, quando se lhe gritava era pior, e neste caso, mesmo que ouvisse levaria tudo em conta das excentricidades de uma cigana, e não ligaria. Mas a coisa tinha sentido e era séria. No papel que lhe coubera na farsa arranjada na sua imaginação, a avó era uma vítima espancada constantemente pelo marido, o qual seria capaz de a matar se soubesse que tinha tirado um litro de azeite da talha. (MFM)

   

15 de fevereiro de 2021

Memórias - A Casa (cont)

 

Naquelas casas naquele tempo não havia “lixo”, aquilo a que hoje em dia se chama lixo doméstico  que é escolhido cuidadosamente atendendo à origem, e com todo o empenho colocado em inúmeros compartimentos diferentes “para reciclar”. É claro que haveria o equivalente, proveniente das limpezas e da cozinha mas não se chamava lixo, agora que penso nisso, nem sei se teria algum nome particular. Havia os “restos” da preparação da comida, o que estava cru, cascas de batata, legumes, etc., e os “restos dos pratos”, coisa quase inexistente pois a gente só se servia da quantidade que pensava ir comer e havia que ter sempre presente aqueles que queriam comer e não o tinham e por isso teríamos que comer tuuuuudo o que estava no prato (confesso que a causalidade entre os dois fenómeno me escapava quando era muito pequena, mas tinha tanta pena dos meninos que me contavam que tinham fome que, apesar de não perceber como, para não lhes piorar a situação, obedecia e comia- -assim nos era inculcado o sentimento de culpa  desde a infância, pena foi que, em vez de ser só para nosso beneficio o não fizessem também para intervir e procurar o dos outros).

Mas, enfim, como não eramos obrigados a comer ossos, espinhas, ou quejandos, sempre sobraria qualquer coisa para o Liró e para o Preto. Outros habitantes lá de casa, o primeiro gozando do previlégio de ter uma identidade, graças ao meu irmão que o baptizara, o outro, que não tivera essa sorte, era apenas nomeado pelo que a natureza o distinguira, sendo os dois considerados seres assim a meio caminho entre os cristãos o gado e a criação. A criação compunha-se de tudo o que tinha pena e mais os coelhos (estes nunca lá os conheci, parece que ficara toda a gente com repugnância dos ditos, depois da chegada da grande praga da mixomatose nos anos cinquenta), o gado eram os outros animais, e os cristãos seriam os sobrantes quer o fossem ou não (ali, como é sabido, eram, de grande qualidade).

Era doutrina vigente, tudo e todos terem a sua função e o seu dever a cumprir. Até eu, a mais protegida, tinha responsabilidades, ia à escola e fazia recados. Quanto aos animais, com excepção da mula, que fazia pela vida puxando a carroça e o engenho, os outros, cumprida a sua missão de pôr ovos, dar leite e reproduzir-se, mais tarde ou mais cedo obedeciam ao seu destino e iriam parar à panela, à nossa ou à alheia. No cumprimento daquele preceito, os dois gatos, ao contrário do que é habitual num pet doméstico (já naquele tempo o era), não eram apaparicados nem senhores de lugar de cadeirão nem mantinha, tão pouco estavam autorizados a pôr  as patitas dentro de casa. Não tinham, portanto, direito a pertencer à classe inactiva, como ninguém por ali tinha. Também eram obrigados a dar o seu contributo para o bem comum. Utilizando as suas competências, obviamente, para o que era mister (o que eu gosto desta expressão!) incentivá-los não lhes dando de comer. Só assim se entusiasmariam a atacar a rataria. Daqui se depreende que nem eles eram estúpidos para fazerem esse trabalho por puro prazer (dizer-se que gostam só pode ser calúnia, logo eles, tão amigos da limpeza, gostar de tarefa tão asquerosa?) nem, muito menos, a avó que lhes conhecia de ginjeira a manha e sabia do que eram capazes. E assim, mesmo que houvesse pratos a transbordar de espinhas de pescada cozida ou carapau grelhado, aqueles trabalhadores incansáveis não tinham direito a refeição completa, fossem buscar o segundo prato aos sótãos e lugares recônditos como era de sua obrigação! Acho que a avó nunca soube que parte da minha tigela de leite (coisa longe do meu agrado desde sempre) do pequeno almoço e do lanche tendia a contrariar, na medida do que me era possível, esta estratégia tão bem delineada.


Mas, voltando aos restos, os provenientes da confecção da comida eram encaminhados directamente para os consumidores seguintes, naquele nosso ciclo de vida. As galinhas, embora estas com direito ainda ao seu capricho, não adianta, acabam por estragar, mais vale ir já para os porcos e estes últimos com quem não se fazia cerimónia nenhuma, até porque não se davam ao respeito e não desdenhavam absolutamente nada. Criaturas absolutamente sôfregas, incapazes de parar de comer fosse o que fosse, viesse de onde viesse, mesmo as ricas espinhas de carapau esbulhadas ao Liró e ao Preto. Recordando aquela avidez cúpida, não posso deixar de compreender aqueles povos nossos conhecidos que rejeitam esta carne por impura. 
De facto!!! Mas, pensando melhor, antes assim, a bela costeleta do cachaço e a orelha de coentrada, o que é que têm a ver com o caso, se a gente não pensar nisso? Onde é que já vai o pecado original da coisa? Ser cristão é muito libertador.

Haveria também os desperdicios provenientes do que não vinha da horta ou dos nossos animais e se adquiria na mercearia ou drogaria, que muitas vezes era um único local. 
Nas mercearias não existiam produtos empacotados como agora, tinham elas tulhas de onde nos miravam e rescendiam os mais variados produtos, que eram daí retirado com uma pá, colocados em cartuxos de papel, caso do grão e feijão, arroz, massa de meada, levados à balança e aí ajustado o peso desejadoEm grosso papel pardo embrulhava-se a manteiga e o atum de conserva, por exemplo. Também assim era embalado o sabão, o azul e branco e o amarelo. O  papel dos cartuxos e o dos embrulhos, era guardado para embeber o azeite dos fritos, peixe, batatas fritas, croquetes e, quando já não tinha utilidade, queimado para ajudar a atear o lume. Tudo era aproveitado. Não havia plástico, pelo menos não embalagens. Já apareciam sacos desse material, verdadeiros tesouros, lavados e postos a secar para voltarem a ser usados. Os únicos materiais não orgânicos que poderiam ser dispensados seriam o vidro ou as embalagens de lata, mas nunca, serviriam para colocar coisas, por exemplo, para o avô dividir os pregos por tamanhos ou pôr os mais variados liquidos ou compotas.
Lembro agora as lojas dos meus encantos, as drogarias, lugar paradisiaco de cor, confusão e cheiro. O cheiro daqueles sítios era único, e para mim  completamente perdido no passado. Até que, há algum tempo, em Viseu, o reencontrei. Numa rua estreita e bonita, que depois passou a ser maravilhosa, entrei numa daquelas lojas, que reconheci por toda a parafernália que se alcandora pela porta e se estende sempre pela rua, para procurar um produto que procurava há anos. Encontrei-o claro, e reencontrei o cheiro. Ele provirá, no mundo real, de um produto ou de vários mas, para mim, cá no meu mundo de Dorothy Gale, ele surge, o cheiro nasce da visão louca de mil e uma cores e coisas desencontradas, do pente vermelho, do escadote, do alicate azul e da sertã cor de burro quando foge enfiada no cabo da vassoura laranja, da rede da capoeira e do shampoo que representa as últimas tendências em encaracolamento de cabelo! Nesta confusão de sentidos, os meus olhos cheiraram na primeira drogaria, depois noutra, mais outra, de tal forma que Viseu ficou, para sempre, a ser uma terra querida devido às suas drogarias encantadas.  (MFM)

(continua)