A Meritocracia Tuga e a Felicidade na Repartição
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Lisboa, 1700 |
Sermão da Primeira Oitava
da Páscoa* (1647)
Duo ex Discipulis Jesu ibant ipsa die in castellum
nomine Emaus. Luc., XXIV.
IV
[...] Os que se contentam, como S. Pedro, só com ver, são finos. Os que se contentam, como a Madalena, só com que lhes saibam o nome, são honrados. Os que se não contentam, como S. Tomé, senão com o lado, são ambiciosos. Os que se não contentam, como os de Emaús, senão depois de lhes darem o pão, são interesseiros. E os que com todas estas cousas ainda se não contentam? São portugueses.
Verdadeiramente, que se os Portugueses se contentaram, como os Discípulos, não houvera reino de mais contentes que Portugal. Eu já me contentara que fôramos como os que nesta ocasião fiaram menos delgado. Os Discípulos que nesta ocasião andaram menos finos, foram os de Emaús, que não conheceram senão quando lhes deram: Porrigebatillis; mas ainda estes nos levaram muita vantagem. Porquê? Porque se contentaram com o Senhor lhes partir o pão: In fractione panis. Os Portugueses não se contentam com se lhes dar o pão partido; há-se-lhes de dar todo o pão, sob pena de não ficarem contentes. Daqui se segue que nunca é possível que o estejam.
As vestiduras de Cristo, que era o manto, e a túnica, dividiram-nas entre si os soldados que o crucificaram: mas com esta diferença: Os quatro soldados, a quem coube o manto, partiram-no em quatro partes, e ficaram contentes todos quatro. Os quatro, ou fossem os mesmos ou diferentes, a quem coube a túnica, não a quiseram partir, jogaram-na; levou-a um, e ficaram descontentes três. Pois porque razão descontentou a túnica a três, se o manto contentou a quatro? É bem fácil a razão. Os quatro a quem coube o manto, acomodaram-se com que o manto se partisse. E quando os homens se acomodam a que as cousas se partam, e se repartam; com o que se cobre um se podem contentar quatro. Os soldados a quem coube a túnica, não trataram deste acomodamento; cada um quis toda a túnica para si: Non scindamus eam, sed sortiamur de illa.
E quando os homens são de tal condição, que cada um quer tudo para si, com aquilo com que se pudera contentar a quatro, é força que fiquem descontentes três. O mesmo nos sucede. Nunca tantas mercês se fizeram em Portugal, como neste tempo; e são mais os queixosos, que os contentes.
Porquê? Porque cada um quer tudo. Nos outros reinos com uma mercê ganha-se um homem; em Portugal com uma mercê, perdem-se muitos. Se Cleofas fora português, mais se havia de ofender da ametade do pão que Cristo deu ao companheiro, do que se havia de obrigar da outra ametade, que lhe deu a ele. Porque como cada um presume que se lhe deve tudo, qualquer cousa que se dá aos outros, cuida que se lhe rouba. Verdadeiramente, que não há mais dificultosa coroa que a dos reis de Portugal: por isto mais, do que por nenhum outro empenho.
Quando Josué houve de entrar à conquistada Terra de Promissão, disse-lhe Deus desta maneira: Confortare, et esto robustus, tu enim divides populo huic terram. Josué, esforçai-vos, e tende grande valor, porque vós haveis de repartir a terra a esse povo. Notáveis palavras na ocasião em que se disseram! Quando Deus disse estas palavras a Josué, foi quando ele estava com as armas vestidas para passar da banda dalém do Jordão a conquistar a Terra de Promissão. Pois porque não lhe diz Deus, esforçai-vos, e tende valor, porque haveis de conquistar esta terra aos inimigos, senão, esforçai-vos, e tende valor, porque haveis de repartir esta terra ao povo de Israel? Ambas as cousas havia de fazer Josué; havia de conquistar a terra aos Amorreus, e havia de repartir a terra aos Israelitas; mas Deus esforça-o, diz-lhe que tenha valor, porque havia de repartir e não porque havia de conquistar a terra; porque muito maior empresa, e muito mais arriscada batalha era haver de repartir a terra aos vassalos que haver de conquistar a terra aos inimigos.
Em nenhuns reis do mundo se vê isto mais claramente que nos de Portugal. Conquistar a terra das três partes do mundo a nações estranhas, foi empresa que os reis de Portugal conseguiram muito fácil e muito felizmente; mas repartir três palmos de terra em Portugal aos vassalos com satisfação deles, foi impossível, que nenhum rei pôde acomodar, nem com facilidade nem com felicidade jamais. Mais fácil era antigamente conquistar dez reinos na Índia, que repartir duas comendas em Portugal.
Isto foi, e isto há-de ser sempre: e esta, na minha opinião, é a maior dificuldade que tem o governo do nosso reino. Tanto assim, que se pode pôr em problema na política de Portugal, se é melhor que os reis façam mercês, ou que as não façam?
Não se fazerem mercês, é faltar com o prémio à virtude: fazerem-se, é semear benefícios para colher queixas. Pois que hão-de fazer os reis? A questão era para maior vagar. Mas porque não fique indecisa, digo entretanto, que um só meio acho aos reis para salvarem ambos estes inconvenientes. E qual é? Não dar nada a ninguém, e premiar a todos. Pois como? Premiar a todos sem dar nada a ninguém? Sim: o dar e o premiar são cousas mui diferentes. Dar aos que merecem, ou não merecem, é dar; dar só aos que merecem, é premiar. Não fazerem mercês os reis, seria não serem reis: mas hão-de fazê-las de maneira que as mercês não sejam dádivas, sejam prémios. Dêem os reis só aos beneméritos, e fecharão as bocas a todos. Quando os prémios se dão aos que merecem, os mesmos que os murmuram com a boca, os aprovam com o coração. Murmurais do que está bem dado? Apelo da vossa língua para vossa consciência. Este é o único remédio que têm os reis para salvarem a opinião naquele tribunal, onde só neste mundo podem ser julgados, que é o coração dos vassalos.
Enfim sejam os príncipes como Cristo no repartir, e sejam os vassalos como os Discípulos no contentar-se, e cessarão as queixas.
Padre António Vieira