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Torre do Tombo actualmente, Alameda da Universidade, Lisboa |
Se me perguntassem qual o serviço
que conheço, público ou privado, que presta o melhor atendimento e mais bem
serve a sua clientela, eu não hesitaria um segundo na resposta – a Torre do
Tombo.
Podem-me dizer que é “um nicho” específico
a que só alguns, também com interesses muito específicos, acedem. É verdade,
mas isso não tira nem põe à existência de cordialidade, disponibilidade,
gratuitidade e, já agora para terminarmos na rima, na humildade demonstrada por
todos os que lá trabalham e contactam com o público. “Senhores” do maior e mais
rico espólio arquivístico, no mundo, da história da lusofonia e, portugueses
como são, não seria de admirar que a presunção se apossasse daquela gente. Mas
não, são competentes, são académicos graduados, e são simples. Estranha e
perplexa combinação em Portugal. Não sei porque são assim, dizem-me que é uma
cultura que atravessou regimes. “Bem me
pareceu que aquela doutora não anda bem” comentou o Francisco, um dos guardas
da empresa de segurança, quando, há anos, nos primeiros dias de lá ir, lhe
entreguei uma carteira que encontrara perdida no bengaleiro “outra vez a esquecer-se das coisas, tenho
que lhe telefonar”. Perante o meu espanto, esclareceu – somos uma família aqui na Torre, está a ver
como a senhora me veio entregar a carteira?- outra pessoa, noutro sítio, ficava
com ela! Fiquei a saber, portanto, que “a Torre” tem também o mérito de
fazer a gente séria! A vontade de colaborar começa mesmo nos portões, com os
guardas. Pessoa que ali se dirija a querer saber quem é o avô que nunca
conheceu mas que a mãe dizia ser de …, a terra do avô que “se estabeleceu em Pernambuco em 1913, e foi de navio, tá vendo?”
ou o pai do avô que até comprou a terra que agora é necessário
vender mas o notário diz que não tem lá nada que prove e “eu então pensei como vocês têm aqui tudo guardado talvez me pudessem
desenrascar” ou o académico estrangeiro que sabe exactamente o que quer
consultar, todos são encaminhados e são-lhes tiradas as dúvidas, ali mesmo na
Torre, ou orientados para a repartição própria, em Lisboa ou no resto do país.
No que a mim diz respeito e aos
meus interesses, a genealogia e a história local, a Torre do Tombo está no “Top”
das instituições a que recorri e em que fui plenamente correspondida, não só pelo acervo que, naturalmente, contém,
como na prontidão e simpatia com que respondeu às minhas dúvidas (deixo o
eufemismo chamar “dúvidas” à minha santa ignorância).
O seu aspecto vetusto e sério, a sua fama de só conter pergaminhos e estar ao serviço de estudiosos que produzem grandes teses de nível mundial, talvez afastem as pessoas comuns que pensam que não há ali lugar para elas. Nada mais errado. Nunca ali vi distinções, cada um identifica-se com o seu nome. Diz o que quer, não tem que fazer menção do objectivo, se o faz é para clarificar e ser ajudado. Qualquer documento, desde que esteja autorizado e venha a público é entregue a qualquer pessoa que o requeira, o V. pesquisador da aldeia dos avós, lá no seu Minho, emocionou-se quando se viu com uma carta assinada por D.Teresa, mãe do nosso primeiro rei, nas mãos. Lê-la é que já não foi possível, paleografia é preciso já levar sabida. Mas a maioria dos documentos podem ser reproduzidos, o que, único reparo, não é propriamente acessível financeiramente. Mas, considerando que tudo o resto é gratuito talvez seja compreensível, atendendo a que outros serviços, como a Biblioteca Nacional, exigem pagamento de cartão anual de acesso.
A documentação existente na T.T é imensa e vem desde o sec.IX, porém compreende muito arquivo dos dois últimos séculos, como revistas e fotografias (todo o Século lá se encontra) que é fácil e gostosamente inteligível por toda a gente. Basta ir ao site, escolher e apresentar-se lá um dia. Quem o quiser fazer verá que é bem recebido e não se arrepende. Note-se que, por lá, ninguém me encomendou o sermão, nem sequer conhecem este blog, mas é com todo o gosto que digo estas palavras.
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O Arquivo nacional da Torre do Tombo estava aqui colocado em 1860, no então Palácio das Cortes (Arquivo Pittorescho, pag. 405), actual Assembleia da República, lugar onde permaneceu entre 1755 e 1990, até se mudar para a Cidade Universitária. |
Quando, há meia dúzia de anos, quis
conhecer as minhas raízes sabia que não tinha onde as consultar, não havia
livro em livraria ou biblioteca, muito menos pesquisa na net que me valesse. Não
tinha “livros de linhagem”, avós, nem sequer pais vivos que me ajudassem com
memórias. Tinha um trabalho para fazer literalmente de raiz: ir às fontes. O
senso comum e o conhecimento razoável do funcionamento da administração pública
diziam-me que a “papelada” a consultar: certidões, de nascimento, casamento,
óbito, estaria algures. Passados os primeiros escolhos, tirar certidões dos
avós em Tomar (em Tomar é tudo sempre tão difícil – qual a finalidade, tem que saber o dia, senão nada feito, na altura
eu ainda ignorava que o dia que constava era de baptismo, eu só conhecia o de
aniversário, o nome exacto, agora não temos tempo, etc, etc,-
diga-se porém, em abono da verdade, que a atitude foi mudando, não
por mérito do serviço mas porque, francamente, os cansei, passe a vaidade), todos os passos
seguintes, quer em Santarém quer na TT, resultaram numa agradável surpresa.
Na época já muita região do país
tinha a informação sobre os assentos paroquiais on-line, e hoje cada vez há
mais. Infelizmente no distrito de Santarém nada está feito (descobri agora que
há unicamente três períodos da freguesia da Madalena, só essa, que existem na
net, coincidência ou não, correspondem, precisamente àqueles que eu, e outra
pessoa, pagámos para serem digitalizados !).Por razões desconhecidas toda a
informação relativa a paroquiais de Santarém foi integrada, em determinada
data, no arquivo distrital de Lisboa, motivo pelo qual a informação está na
Torre do Tombo e não no Arquivo Distrital de Santarém. Como deveria. Deveria
mas não me daria jeito nenhum. Foi assim que cheguei à Torre do Tombo. Diga-se
que os livros paroquiais podem ir até meados do sec.XVI –data em que passou a
ser obrigatório o registo escrito daqueles actos, o que, na maioria dos casos
não acontece devido a incidentes vários. A freguesia da Madalena é uma privilegiada
pois tem livros desde 1557, com pequenas interrupções de livros desaparecidos
no sec.XIX. Acontece que estão apenas acessíveis a consulta, através de
microfilmes, livros de casamentos a partir de 1600 e baptizados a partir de
1691. Os anteriores nem sequer podem ser digitalizados devido a mau estado. Segundo
informações não há orçamento oficial para proceder aos restauros, mas qualquer um
pode pagar os custos, se quiser, o que tem acontecido com associações, câmaras
municipais e juntas de freguesias, até particulares, noutros casos. Em Tomar, então vila,
existem livros de baptismos desde 1626 e casamentos desde 1779, com
interrupções por época das invasões francesas, que vão sendo reconstruídas
durante o século XIX (alguém que se tenha baptizado ou casado em período que
tenha coincidido com “a invasão do inimigo” arranja testemunhas e vai reconstituir
o acto). Em Ourém as coisas são muito piores, só existem livros após as
invasões, todos os livros anteriores, que estavam depositados em Leiria na Sé
Diocesal foram destruídos. Na freguesia de S.Silvestre da Beselga também só
existem livros desde 1830.
Ler estes livros é uma aventura, que,
como todas, pode ser maravilhosa e repleta de descobertas ou cheia de torturas desesperantes e mesmo sem saída, tudo depende do padre, prior, vigário, Deus o
tenha Consigo, que redigiu os assentos. A caligrafia, aquela coisa ancestral e
em desuso, é tudo. E não se pense que melhora com o decorrer dos séculos, nada
disso. Os gatafunhos dependem de cada um independentemente da época. Há um sr.
Prior em Tomar no final do século XIX em que as ameaças a lápis nas margens são
tão elucidativas que se pode concluir que só não foi assassinado por algum leitor futuro, por motivos óbvios. Por outro lado, é um regalo ler os assentos
de frei Amador de Sousa, em 1600 na Madalena. E os visitadores (aqueles
senhores que faziam inspecções, a mando do bispo, para saber se os livros
estavam nos conformes) faziam notar isso, lá pelo sec.XVIII um deles, em
Assentis, deixou a seguinte mensagem para a posteridade: “devia escrever bem, ou melhor, devia aprender a escrever”, é por estas
e outras que a religião católica é a minha religião preferida.
Leitura conseguida, não se fica só
a saber os nomes de pais ou avós, pode-se conhecer a categoria profissional dos pais e
padrinhos, percursos de vida (num casal, ao longo do nascimento dos vários filhos
pode perceber-se a mudança de morada ou mesmo de profissão), o relacionamento e a ambição familiar (quem é
padrinho de quem, se a pessoa importante da terra se os irmãos da mãe ou do
pai), como morreu, se teve ou não tempo de tomar os últimos sacramentos, se foi
enterrado dentro da igreja, no altar-mor, no adro. Se fez testamento, nalguns
casos o testamento está transcrito no óbito. Acompanha-se a vida de alguém, o
seu nascimento, o primeiro e segundo casamentos, o baptisado dos netos. Não me
esqueço da primeira vez que encontrei o batisado de uma criança filha de mãe
solteira e da minha alegria quando, folhas adiante, vi o casamento da mãe
acompanhado da legitimação da criança, na geração seguinte observei o casamento
desta. Este happy end enternece. Da mesma forma que deprime ler, nos óbitos,
páginas e páginas cheias de crianças, muitas sem nome. Enfronhar-mo-nos nestes
livros é mais do que entrar num romance, é conhecer os personagens e
construí-lo. É viver outra vida. Aconteceu-me percorrer Assentis, onde eu nunca
tinha ido, no sec.XXI e reconhecer o Casal do Pombo e o da Estrada e as Moreiras
Grandes e as Pequenas e tantos outros locais de onde eram provenientes as
gentes das minhas pesquisas. Quem ia comigo no carro duvidou da minha sanidade
mental perante as minhas exclamações de alegria do reencontro e explicações sobre quem e
quando ali nascera.
Esgotados os livros paroquiais, ou porque desapareceram ou porque se chegou ao limite possível, outra forma de se descobrir
antepassados é através das Inquirições de Genere. Algo de precioso que aprendi
na Torre do Tombo. A partir do estabelecimento da inquisição em Portugal, uma
das suas funções era proceder a estas inquirições. Como o nome indica eram
processos que se destinavam a inquirir, no caso, a família de alguém.
Resumidamente, ninguém podia ter uma carreira eclesiástica, na “função pública”
da época (magistrado, bacharel na chancelaria, etc) ou, muito menos ser
funcionário da própria inquisição (familiar do santo ofício) se não provasse
ser de sangue puro, sem qualquer mácula de mulatice ou judaísmo. Assim sendo,
era necessário investigar a família. Estes processos geralmente muito bem
instruídos fornecem informações, às vezes até aos bisavós dos inquiridos, com treslados
de certidões de avós, tios-avós, etc, bem como sobre comportamentos e estatutos
sociais. São ouvidas testemunhas que, consoante a capacidade literária do
relator, nos podem dar uma visão mais ou menos boa dos modos de vida de duas ou
três gerações, a avó guardava cabras, o
pai era lavrador, o tio era capitão de milícias, etc.
As inquirições de Genere
eclesiásticas encontravam-se distribuídas por quatro Câmaras Eclesiásticas:
Braga, Coimbra, Lisboa e Évora, hoje, respectivamente à guarda das
Universidades do Minho, Coimbra, Torre do Tombo e Universidade de Évora. A
Torre do Tombo tem um arquivo das pessoas sujeitas a inquirição por nome
próprio, por apelido e por freguesias de proveniência. A pesquisa por nome
próprio, a menos que se saiba à partida quem se vai investigar, pouco ajuda, a por
apelido ajuda um pouco se conhecermos sobrenomes dominantes na família e se
estes forem pouco comuns. Por exemplo, o apelido Escudeiro vim a verificar
pertencer sempre à mesma família e estar ligado à Madalena, Assentis ou
Beselga. A pesquisa por freguesias é, de longe, a mais produtiva. No meu caso,
quase todos os padres de Assentis, não digo que fossem meus antepassados, não
só dada a impossibilidade oficial da coisa mas também porque, estou certa, eram
castos e tementes a Deus, mas eram irmãos e primos de avoengos meus pelo que,
através deles, encontrei ascendentes.
Quanto
à freguesia da Madalena e outras em Tomar, em geral, é muito difícil saber onde
se encontram as inquirições de Genere dos padres lá nascidos. Sendo Tomar uma Vigararia
autónoma os pretendentes a clérigos não tinham que se “formar” obrigatoriamente numa
diocese sede, como acontecia em Torres Novas relativamente a Lisboa.
Outras inquirições são as
chamadas leituras de Bacharéis. Qualquer jovem formado em Coimbra que
pretendesse colocar-se ao serviço do rei lá fazia o seu requerimento e lá
submetia a família a inquirições. Aqui havia uma diferença em relação às outras inquirições, em princípio estava
vedada a carreira das leis a filhos de gente mecânica, isto é, que trabalhasse
com as mãos, camponeses ou artesãos, mesmo que fossem legítimos cristãos-velhos. Mas esta condição era transponível com requerimento ao rei, sendo então o bacharel filho de um sapateiro, por exemplo, colocado em início de carreira no ultramar,
Índia ou Brasil eram uma hipótese.
Por último, as habilitações para
familiar do santo ofício, as mais exigentes quanto a pureza de sangue, e para a
Ordem de Cristo também exigiam inquirições de Genere.
As Chancelarias régias, nas quais
constam os registos de mercês, doações e ofícios dos reis, podem levar-nos, também, a
conhecer as profissões ou bens de antepassados. No caso da freguesia da
Madalena, uma vez que as suas terras pertenciam à Ordem de Cristo, a leitura
dos respectivos fundos, que estão catalogados e existem em livros encadernados desde
o sec. XVII, dá-nos a conhecer os “proprietários” (foreiros ou rendeiros) das
terras das comendas. Foi desta forma que descobri o aforamento do Casal da Belida a
Diogo Álvares de Sousa por três vidas em 1651 e a confirmação ao neto em 1758 por
mais três vidas. Pode ser que, numa destas leituras, me surja, um dia, numa época longínqua, qualquer referência a Porto da Lage. (MFM)