Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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1 de outubro de 2018

« Casas para Habitação de Pessoal »



Hoje.escreve-se "estação de Paialvo" no google, e aparece logo, na Wikipédia: "Esta interface faz parte do troço entre Entroncamento e Soure, da Linha do Norte, que abriu à exploração em 22 de Maio de 1864".

Mas nem sempre foi assim. Quando, há mais de seis anos, começou a aventura deste blog, não havia nada, mas nada mesmo, onde alguém, do grande público, pudesse fazer uma consulta sobre a história do caminho de ferro em Portugal, quanto mais sobre a "Estação de Paialvo". Sabia-se que aquele tinha tido início em 1856 (tinham-se comemorado os 150 anos em 2006) e que a estação de Campanhã se inaugurara em 1875. Destas datas, tinha-se conhecimento das dificuldades de percurso e das grandes celebrações ocorridas. Do que ocorrera entretanto, desconhecimento total, será que se levara 19 anos a construí-lo e só depois arrancara? Pelo menos, a mim, era o que me parecia. Sabia que a construção da linha férrea em Porto da Lage estava em curso, consultando os Anais do Município de Tomar, mas começara a funcionar quando? E procurar onde? Quando, por acaso, li que o corpo de José Estêvão tinha sido transportado de comboio de Lisboa para Aveiro, em 1864, para ali se realizar o seu funeral, pensei - Espera, então já havia linha a funcionar, e tinha que passar por Porto da Lage! E foi assim, e a partir deste dado, que uma cidadã ignorante, que consulta os motores de busca digitais, é verdade, mas também enciclopédias e publicações genéricas, ficou a saber do processo e datas do funcionamento da linha do Norte nos primeiros anos, o que não estava ao alcance de toda a gente, como disse. Mesmo assim, depois de ter sabido da existência da "Gazeta dos Caminhos de Ferro" e de a ter procurado consultar, ainda não fui capaz de dizer aqui, a data exacta, não sabia, apenas mencionei o ano, só mais tarde falei nisso.





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Voltando à "estação de Paialvo"  na Wikipédia. Daqui, nas referências, retirei das  Efemérides da Gazeta dos Caminhos de Ferro de 1 de Abril de 1939, a notícia, abaixo, de 1915, sobre a "construção de casas para habitação de pessoal". Mais uma achega para a história de P.L. Seriam as casas que todos conhecemos e que foram derrubadas há perto de duas décadas? Sem fotos daquelas para aqui mostrar (alguém tem?) socorro-me de outras, de casas arruinadas ou reabilitadas, exemplo de edifícios construídos pela CP para habitação dos ferroviários (MFM).




1915









                                                    (fotografias retiradas daqui  e  daqui )


28 de setembro de 2018

Dulcinda Teixeira



E, por falar em Dulcinda. ..






Nestes dias, em que a saúde lhe tem pregado partidas e o veículo está parado, recordamo-lo aqui para a entusiasmar a pôr-se boa depressa. Faz muita falta a Porto da Lage ( em mais localidade nenhuma, do mundo e arredores, há uma senhora do triciclo como esta!) e a este blog então? Temos que ir dar umas voltas por aí. Combinado? Beijinhos. (MFM)




Dulcinda, a mais pequena de quatro dos sete irmãos.
O segundo é o Ilídio.





26 de setembro de 2018

Almofariz da Belida


O almofariz abaixo veio da quinta da Belida. Na posse actual de Dulcinda Teixeira, diz ela que, sempre que se matava o porco na casa de alguém da família, em Porto da Lage, lá circulava o almofariz para o obrigatório pisar dos alhos.






Da Quinta da Belida vieram todos os Sousa Rosa, alguns já lá nascidos, que deram origem a muita gente que, sei, acompanha este blog. Além dos abaixo retratados, houve mais quatro, dois Antónios, um das Sobreiras que tem muita descendência no Paço, o outro, casado com a tia Florência; Manuel, ascendente do dr. Manuel Rosa, da Luciana e Isaura Rosa e dos Tomás; e Ana, com descendentes Escudeiro em Porto da Lage. A todos apelo que me facultem fotos dos antepassados. Fiquem descansados! não quero originais, até prescindo de papel, uma digitalização basta! Deixem recado aqui nos comentários e a gente combina a forma de me fazerem chegar, até, como se dizia nos anúncios antigos, vou a casa, se for preciso!
Acharia interessantíssimo e de grande valor para a história familiar e local, reunir as fotografias dos sete filhos de um homem  hoje anónimo, mas com valor no seu tempo, possuidor de um património que deu origem ao nascimento de uma localidade. E depois, seria curioso saber se são todos assim: de sobrolho carregado, olho claro, lábios finos e, bem sei que não é feição por isso não desfeia, nariz que sobeja! (MFM)

     

Soledade Sousa Rosa (Assentis1861- PL 1947)



Maria José Sousa Rosa (Assentis 1864- PL1937)



João de Sousa Rosa (Quinta da Belida,1867- Cem Soldos,1958).
Recorte de uma fotografia de grupo da família Mendes Godinho,
de 1947,  em Cem Soldos,  gentilmente cedida por Manuel Mourão.

24 de setembro de 2018

Padre Nicolau outra vez


Dulcinda Teixeira já nos tinha deixado, aqui  e nos posts seguintes, uma pequena biografia e algumas histórias sobre o famoso Padre Nicolau, pároco da freguesia da Madalena durante décadas. Manuel Maria Azevedo Mendes Mourão, cuja família paterna é sobejamente conhecida em Cem Soldos, enviou-nos, agora, não só uma fotografia daquele sacerdote como mais duas deliciosas histórias, que lhe contaram, sobre o mesmo.



Fotografia do padre Nicolau,  de 1938 ou 1939 ,tirada pelo Eng. Nuno Mourão
 quando este era ainda estudante . 


A foto em referência fez parte de uma exposição fotográfica e documental organizada e apresentada por Manuel Mourão, filho mais velho do Eng. Nuno Mourão, em 2010. Esta exposição com o título "Nuno Mourão (1920-1965) Olhares e Vivências duma Vida que Conta" foi inaugurada em 19 de Junho de 2010 - data em que o seu  pai faria 90 anos, em Cem Soldos.






Quanto às histórias, diz Manuel Mourão:


« No primeiro dia da abertura ao público da exposição “Nuno Maria Godinho Mourão (1920-1965) – Olhares e vivências duma Vida que Conta” apareceram várias dezenas de pessoas e o Senhor José Ferreira contou-me a seguinte história :

O Padre Nicolau, prior da freguesia da Madalena e residente em Cem Soldos, costumava deslocar-se num cavalo emprestado pelo Dr. Henrique Gonçalves para prestar assistência religiosa nas diversas aldeias da freguesia. Num fim de tarde, estava ele numa dessas aldeias, o tempo toldou-se e anunciava uma trovoada iminente. O nosso bom prior tinha terror das trovoadas e por isso um paroquiano solicito logo se ofereceu para o ir levar a casa de Lambreta antes que estalasse a borrasca. Quanto ao cavalo, encarregaram o rapazinho que o acompanhava como sacristão (era o próprio narrador da história) de reconduzir a montada a sua cavalariça em Cem Soldos. O rapazinho nunca tinha tido a oportunidade de montar um cavalo, mas lá se aventurou e meteu-se ao caminho. Às tantas rebentou mesmo a borrasca e um raio risca nos céus seguido de estrondoso trovão. O cavalo empina-se, atira o rapaz e a sela mal apertada ao chão e dispara a galope só parando nas cavalariças. As gentes de Cem Soldos ao verem o cavalo naquela correria e sem sela, depreenderam que o Padre Nicolau estivesse caído e eventualmente magoado algures no trajecto. Logo alguns se meteram ao caminho, não se apercebendo que o sacerdote já estava em descanso e em segurança na sua casa, trazido pelo condutor da Lambreta. Encontraram, isso sim, o pobre do José Ferreira que caminhava um pouco combalido e com a sela às costas.

Outra história, contada pelo mesmo José Ferreira:

Ao fim da tarde, era costume três respeitáveis anciãos da terra sentarem-se num banco no Largo de Cem Soldos gozando o fresco e em amena cavaqueira, muitas vezes acompanhada de sonoras gargalhadas. Eram eles o Padre Nicolau ainda exercendo o seu múnus sacerdotal, apesar de já velhote, o Dr. Henrique Gonçalves e o Professor Mário Mourão, ambos viúvos e já reformados das suas lides profissionais.
Numa dessas tardes um rapazinho mais afoito ousou aproximar-se e tentar escutar a conversa. Logo o Padre Nicolau o caçou e enfiando-o debaixo da sua sotaina disse com um ar agastado: “isto não são conversas para crianças”. Depois lá libertou o rapaz que fugiu espavorido e intrigado ficando sem saber o motivo daquela exclusão. Será que os três anciãos se divertiam a contar anedotas brejeiras uns aos outros?»



21 de setembro de 2018

O Morgado de Assentiz



O livro Portugal Pittoresco e Illustrado,etc  de Alberto Pimentel, de que já aqui falámos, a propósito de Tomar, mais particularmente da estação de Paialvo, ao dedicar-se a Torres Novas, fala de Assentis, uma das avós de Porto da Lage, como já tive ocasião de aqui defender. Mais do que de Assentis, Alberto Pimentel fala do seu morgado, Francisco de Paula Cardoso de Almeida e Vasconcelos Amaral e Gaula (1769-1847), um aristocrata que viveu a época de alteração profunda de regime político e social no nosso país, foi um  bont vivant, liberal e amigo das letras, conviveu com Bocage, Castilho e Alexandre Herculano, mas, sobretudo um amante do teatro. Vejamos esta pequena biografia.

















Alberto Pimentel, "Portugal Pittoresco e Illustrado, A Extremadura Portuguesa, Primeira Parte, O Ribatejo", 
pag.387 e sgs. Empreza da História de Portugal, Lisboa, 1908

19 de setembro de 2018

Martin Hume em Tomar

Martin Hume veio a Tomar descendo do comboio em Chão-de-Maçãs. Fez mal. Tivesse ele desembarcado na Estação de Payalvo e outro galo lhe cantaria. Além das garantias que o post anterior anunciava (diligência de certeza!) aposto que teria direito a todas aquelas mordomias que já aqui vimos, recepção por damas e cavalheiros, discurso, acompanhamento com banda de música, ,etc.,etc., e até, quem sabe, à noite,a notável marche aux flambaux. Mas nós não somos de ressentimentos. Até porque se escolheu mal, pagou o seu erro. Vamos contar a sua visita na mesma, como se fosse um passageiro da nossa estação.

Ilustração de Though Portugal , da autoria de S.A.Forrest, supostamente sobre a estação de Chão-de-Maçãs



A obra Though Portugal da autoria de Martin Hume (1847-1910) (1)dedica o capítulo V a "Coimbra,Thomar and Leiria", tendo o site  Tomar Digital , de João Amendoeira Peixoto (2) ,publicado, integralmente,  a parte referente a Tomar, .

No livro, o autor conta a sua viagem a Portugal, que deverá ter ocorrido em finais de XIX/principio do sec.XX, pois a obra é publicada em 1907, começando pela cidade do Porto, passando depois por Braga, Guimarães, Buçaco e Coimbra. Após visitar esta última, Hume pretende rumar a Tomar, apanhando para isso o comboio que o levará a Chão-de-Maçãs, e reservando, pelo correio, um hotel que encarrega de providenciar o seu transporte da pequena estação até Tomar. A viagem parece correr bem, tendo o comboio parado em Pombal, provavelmente algumas horas, pois o autor tem tempo de observar ser por ali, aquele, um dia de festa, na qual os camponeses, boa gente que usa roupas alegres, são sóbrios e ordeiros, chegam à estação a tempo e horas, ao contrário dos espanhóis, e fazem as suas compras e vendas no mercado, tudo muito tranquilo e sossegadinho (não se percebe o alcance da observação, estaria à espera de encontrar o quê? Selvagens?). Repara ainda que as mulheres usam tufadas saias curtas e que, embora andem descalças, não deixam de pôr antigas e pesadas filigranas de ouro que aparentam ser valiosas, e impressiona-se com as capas de palha que os homens põem no tempo molhado, admirando-se que, apesar do seu volume, are not heavy, and are an excellent protection against heavy rain.
E finalmente, lá chega o nosso viajante à pequena estação, situada no meio de nenhures, apenas com uma fiada de casinhas brancas, em frente. Mas cadê a carruagem para o transportar até Tomar? Ninguém lhe sabe dar noticias dela. I found myself several miles from anywhere, and with no means of convenyance. Mas os populares apoiam-no, levam-no para a taberna, um grupo que assistia ao trabalho do barbeiro ambulante, que cortava o cabelo debaixo de um alpendre próximo, junta-se a eles, discutem o assunto, culpam o correio pela provável falta de entrega da carta destinada à reserva da carruagem, contam histórias passadas semelhantes. E, a insistências do autor, arranja-se uma solução, que lhe parece não convencer muito o pessoal à sua volta: um rapaz vai buscar um par de mulas, que até parecem capazes, e, de dentro de um estábulo surge um velho carro de atrelagem (shandrydan)! E é aqui que o nosso homem reconhece a razão dos olhares de dúvida da assistência: as mulas não se deixavam prender às varas! Estrebucham e coiceiam com toda a força! Diz ele que mesmo postas correntes, estas não impediam os animais de coicear, a ponto de quase destruírem o velho veículo.
Apesar desta contrariedade, a viagem fez-se, mal-grado o constante coiceio das infelizes alimárias, que as obrigava a um contínuo exercício de ginástica, fazendo-as andar só com os membros dianteiros, segundo o autor.
Mas o homem não podia estar mais feliz!  “Os coices das mulas não tinham forças para estragar o prazer da viagem. A estrada era perfeita, sobre colinas cobertas de pinheiros e vales revestidos de urze roxa. A brisa fresca da montanha, cheirando a tomilho selvagem, trazia consigo uma sensação de deleite em que respirar, só por si, era um prazer, e este velho cansado sentado na desengonçada traquitana sentia-se impelido a gritar, só pela satisfação de ali estar” (minha tradução livre).

(desculpem, mas aqui imponho-me um parêntesis! Um bom tuga deve ficar deliciado e grato quando um estrangeiro nos elogia (é das regras que nunca se infringem) mas alto lá! Há limites que a razão impõe! Ou os coices das mulas não foram coisa por demais e a viagem foi razoavelmente calma, ou, a ser como o descrito, o homem, se berrou, não foi inebriado pelos aromas do tomilho ou da urze ou lá do que lhe cheirava tão bem, gritou como gritaria qualquer um ao ver-se enfiado num desconchavo qualquer prestes a partir-se, puxado por dois animais tresmalhados e endoidecidos, imagino que descontrolados a tentar soltar-se, cada um para seu lado, durante uma dúzia de quilómetros!  Naqueles trabalhos, a gente agarra-se à vida, sim, acredito, mas porque a vê a fugir a cada momento, não porque está empolgado em felicidade extrema, e a última coisa que nos passa pela cabeça, valha-nos Deus, é reparar na formosura e nas fragrâncias da natureza!!! Enfim, aqui, o autor, a bem da verosimilhança da coisa,  bem que nos podia ter poupado a estas pantominices (como diria a minha tia Alice que se deve ter cruzado com ele em Tomar, como adiante se verá).






 O nosso viajante avista finalmente Tomar, um vasto e belo vale com o casario disposto entre a vegetação, na margem do rio, e sobre o mesmo, uma abrupta colina sobre a qual se ergue o castelo. Era um domingo de Outono, e, embora fosse dia (?) viu foguetes no ar e ouviu a banda a tocar - a cidade estava em festa. Soube que se tratava de uma cerimonia de entrega de prémios às crianças da escola por parte da Câmara, e aquelas, limpas, gorduchas e bem vestidas, gritavam e aplaudiam (é aqui que entra a minha tia Alice, criança na época), como os pequenos fazem em todo o mundo, segundo conclui.
Foi calorosamente acolhido no Hotel União, onde ficou a saber que a falta de envio da carruagem a Chão-de-Maçãs não tinha sido culpa do anfitrião, um cavalheiro de modos e costumes cultos, bem diferente do tipo comum de estalajadeiro português (sic) que se mostrava consternado por não ter recebido nenhuma carta a avisá-lo, como deveria. Porém, uma ou duas horas depois entrou ele no quarto do viajante, excitado e triunfante. Tinha obrigado o posto do correio a abrir, embora fosse domingo, e resgatara a carta de uma pilha que os carteiros descuidados não tinham entregado! Daí em diante, o Sr. José Mathias Araújo, foi infatigável em o fazer sentir confortavelmente em casa, em Thomar. Lugar que, enquanto viver, não esquecerá e que define como uma pequena cidade rectangular, limpa, com ruas rectas, de aspecto singularmente moderno, nas margens de um riosinho primorosamente belo, margeado por árvores e jardins, isto embora a vida aqui, em geral, lhe parecesse sonolenta, pois, com excepção de uma pequena fábrica, pouco mais havia no local.
Mas a sua visita tinha um objectivo concreto, ver o “mosteiro-castelo”, antiga sede da fortaleza dos cavaleiros da Ordem de Cristo, sucessores em Portugal dos Templários. A maior parte do capítulo é, aliás, dedicado à descrição do arruinado castelo, ao convento, a Filipe II de Espanha e às Cortes que procederam à Unificação de Portugal a Espanha (não esqueçamos a formação espanhola do autor).
Apesar de afirmar que ainda muito ficou por dizer sobre este mosteiro maravilhoso, but I have said more than enough to prove that the visitor to Portugal who misses Thomar has failed to see a relic, which, in its way, has hardly an equal in Europe, é obrigado a partir, Leiria espera-o.
No último olhar que lança à cidade, já na viagem, não deixa de enaltecer a beleza do riozinho serpenteando pela planície, ponteado pela linha continua de choupos, as colina revestidas de pinheiros- longínquos, mas parecendo ao alcance de uma mão - o aglomerado de casas brancas e cor-de-rosa com telhados vermelhos, e, sobre estas, as duas colinas, uma coroada pelo inolvidável castelo-mosteiro, de largas muralhas, alta torre e a impressionante torre sineira guardada pelos altos ciprestes; a outra colina, em cuja suave encosta verde, se encontra a scala sacra, branca como a neve, com vinte e cinco lances de degraus que conduzem ao resplandecente great white sanctuary of the Misericordia  (está, com certeza, a referir-se ao Santuário da Sr.ª da Piedade). Um céu de um azul profundo e luminoso cobria tudo, e, impregnando todo o suave ar quente, o doce aroma de tomilho, manjericão, esteva e pinheiros.*




Em Ourém


Durante um par de horas seguimos por uma boa estrada, de calçada, serpenteando pelo sopé das colinas e seguindo a sinuosidade dos vales férteis, ladeada de campos de terra vermelha, com urze, pinheiros e oliveiras. Por fim, ao longe, ergue-se abruptamente uma colina mais ousada do que as restantes, coroada por outra grande fortaleza, que parecia de uma altura inescalável, com um aglomerado de velhas casas aninhadas logo abaixo dela. Porém, subindo uma estrada escarpada, na encosta, alcança-se sem dificuldade aparente a metade da colina até à moderna vila de Ourém, onde tinha marcado um descanso para os cavalos e uma refeição para mim. O lugar parecia morto aquecendo-se sob o sol quente, toda a vila abrasava mostrando a cor uniforme branco-amarelada do solo da colina sobre a qual se erguia. O esquálido castelo amarelo era apenas suavizado pela verdura de uma coroa de pinheiros, tendo logo abaixo das muralhas a antiga localidade e o grande velho mosteiro.*
A hospedaria era bastante humilde, mas uma velha espertalhona e tagarela serviu-me um excelente almoço, tornando-se encantadoramente amigável quando lhe elogiavam o vinho, de que se orgulhava muito e, com razão, pois era bom e provinha da vinha que crescia atrás da casa. Ficava igualmente satisfeita com a aprovação da sua marmelada, e insistia para que o seu hóspede comesse os doces caseiros, enquanto repetia os “os senhores ingleses que veem gabam muito o nosso vinho” pois a aprovação dos ingleses sobre qualquer coisa é sempre tomada como a afixação do selo final de excelência, neste país. *

(outro parêntesis se impõe, as coisas mudaram, já não são só os ingleses a gravar o selo de excelência neste país - e a pôr-nos todos contentinhos, com o rabinho a abanar, por causa destas festinhas - é todo o não-luso. Qualquer bicho careta seja de que nacionalidade for, e mais ainda, os supra nacionais como é o caso da sodona Madona, decidem,  logo ali, num instantinho, a propósito do que for, que somos os melhores, o que, coitados, até nem lhes fica mal, são simpáticos, ou mesmo, verdadeiros!! A nossa actitude é que não nos fica nada bem, sobretudo quando os próprios estrangeiros nos topam a fraqueza, como é o caso.)

Rua principal da Vila de Ourém

Lá fora, na rua principal da vila, a quietude reinava no sol forte do meio-dia. Contra o céu índigo, o imenso castelo lá em cima mostrava-se claramente, como nada se vê na nossa atmosfera carregada de névoa. Um homem passa carregando uma grande cesta em forma de barco, cheia de grandes uvas negras, quatro comparsas de capas negras e longos varapaus nas mãos cavaqueiam à sombra da torre da igreja; donzelas ágeis com lenços de cabeça fluidos, amarelos e brilhantes, passam balançando alegremente; passa depois, mancando dolorosamente debaixo de um pesado fardo de cabaças amarelas, uma velha descalça; um homem passeia a cavalo, com arreios em relevo de latão e grandes estribos de caixa. Então, faz-se silêncio novamente, por mais meia hora, é assim a vida em Ourém.*


                                                             A Caminho de Leiria

Continuando a atravessar terra de pinheiros e urze e belos e pequenos vales plenos de vinhas, figueiras e oliveiras, viajámos por mais duas horas e, assim que começou a anoitecer, entrámos na cidade de Leiria, a Calippo dos romanos, por muito tempo a fortaleza de onde os mouros atacavam os cristãos que avançavam do norte. É um lugar encantador nas margens do Liz, situado no meio de colinas cobertas de pinheiros e no centro de um grande distrito agrícola. Também aqui, as duas abruptas eminências que pairam sobre a cidade são coroadas, respectivamente, pela enorme fortaleza medieval e pela casa religiosa que parece sempre acompanhá-la - a espada e a cruz, instrumentos gémeos do soldado e do padre, destinados a submeter o povo, ambos, agora e felizmente, ultrapassados, pelo menos em Portugal, por meios mais esclarecidos.*


Castelo de Leiria
(a viagem continuou por Batalha, Alcobaça, Sintra, Lisboa, Setúbal, Tróia e Évora, e, com muita pena, lá partiu o nosso viajante,  the big steamer was lying in the harbour ready to sail for England, and though Lisbon tempted me, I could not choose but go... e ....Fifty-two hours afterwards , lá penetrou no nevoeiro I was shrinking from the chill embrace of a November fog in London. FIM)






* Estes Parágrafos foram  traduzidos livremente por mim, a partir do original. (MFM)

(1)João Amendoeira Peixoto, que já contribuiu para o acervo deste blog, e que demonstra ser um amante de Tomar e dos Templários, a julgar pelos trabalhos que publica, promove no seu site, um serviço público admirável. Põe, à disposição de todos, livros e publicações sobre aqueles temas, que estão, há muito, fora dos circuitos habituais, quer de livrarias, quer até de bibliotecas, alguns mesmo desconhecidos.

(2)Martin Hume, começou por se chamar apenas Martin Andrew Sharp, nasceu em Londres, tendo acrescentado o nome Hume em 1877, como exigência para o recebimento de uma herança de uma propriedade em Espanha, da parte de uma velha parente materna. Foi jornalista, escritor e historiador, tendo feito parte da sua educação em Espanha, dominava a língua e grande parte da sua obra foi dedicada àquele país.

NOTA: As Ilustrações do livro em questão são da autoria de A.S. Forrest, Archibald Stevenson Forrest (1869-1963) nasceu em Greenwich, Londres, Retratista e pintor de paisagens, ficou, no entanto, mais conhecido como ilustrador de livros sobre países estrangeiros‘Morocco’ (1904), ‘The West Indies’ (1905), ‘Jamaica’ (1906),  ‘South America’  (1912),  ‘Normandy’, ‘A Tour through Old Provence’, and ‘Portugal"

17 de setembro de 2018

A estação mais procurada é a de Paialvo




Alberto Pimentel, "Portugal Pittoresco e Illustrado, A Extremadura Portuguesa, Primeira Parte,
O Ribatejo
", pag.421, Empreza da história de Portugal, Lisboa, 1908



....o viajante tem a certeza de encontrar conducção em diligência, a 200 reis por logar.*




...e, finalmente, o valle da cidade aparece, radioso e suave.
* No desenho está escrito "Diligencia vinda de Tomar, cheguei às cinco e meia da manhã aos Valles", será um esboço de A.Keill que concretizou num quadro estas viagens que fazia entre Paialvo (vindo de Lisboa) e os Valles, Ferreira do Zêzere, onde tinha uma casa.

14 de setembro de 2018

Saudades das Férias I



Quando o meu pequeno M. me questionou, fui procurar as duas fotografias da estrada de Paialvo, de que me lembrava, e produzi o post anterior. Só depois me ocorreu que, pela  "Ilustração Portuguesa ", também havia algo sobre a mesma matéria.  A capa do  n.º 882 de 13 de Janeiro de 1923 daquela publicação, exibe, também, o "castelo lá em cima", altaneiro sempre, mas sereno e pacifico, sobre a suave colina, visto de uma estrada bem arborizada mas batida pelo sol, onde se somem, ao fundo, três figuras negras. Uma maravilha de romantismo!







Na mesma publicação, a secção "O estrangeiro em foco", dá-nos conta da vida, à data, de dois personagens, com quem o M. , por enquanto, ainda não se preocupa, mas de quem, um dia, virá a ouvir falar, de tal forma eles mudaram a vida deste planeta. Sobre a noticia, a visita à Península Ibérica não incluiu Portugal, onde o cientista só esteve um dia de passagem , quanto a Lenine, acabará por morrer em Janeiro de 1924, não se tendo, assim, garantia de a noticia ser ou não verdadeira (MFM)





11 de setembro de 2018

Saudades das Férias





- Vó, como é que se chama aquela terra, onde se vai à praça comer farturas, e quando se desce de Potalage se vê um castelo lá em cima? (M. 6anos)





                         
                     (Estrada de Paialvo, anos 20 e 50/60 do sec.XX, retiradas daqui)

1 de junho de 2018

Transitoriedades



Imagem retirada daqui

A Adega Cooperativa de Tomar fechou em 2011. Quem hoje por lá passar vê o que a imagem mostra, ou, talvez,  ainda maior degradação!

Segundo li, foi constituída em  1957 e iniciou actividade em 1965.

Antes, no ano de 1962, decorreu a compra do terreno onde foi construída. Era uma parte ínfima de uma enorme propriedade situada na encosta sobre a cidade, entre a estrada nacional (Algarvias) e o Alto do Piolhinho, chamada de O Telégrafo, precisamente por lá se ter situado o primeiro posto de telégrafo, que pertencera ao meu bisavô José do Coito e fora depois aumentada pelo meu avô João Mota.
É no diário deste último que podemos ver como, em apenas três episódios decorridos em quatro meses, se ficou, com erro de ortografia, a pensar na possível venda, se propôs o valor e se esperou pela habitual e inevitável resposta do Estado, para, finalmente, concretizar o negócio. Chegaram três conversas com o primo dr. (de espantar, se não fosse primo!), uma delas ao telefone, para se gizar o futuro local do edifício da Adega Cooperativa de Tomar.

E a história decorreu. Gloriosa, primeiro, triste depois, decadente, por fim, como todas as histórias. Sobram as ruínas e os papéis, a provarem a existência e a transitoriedade das coisas (MFM)








14 de fevereiro de 2018

Liberdade, liberdade

Nave dos Louco (1490-1500), Hieronymus Bosch




Nisto do projecto de lei sobre a eutanásia há, pelo menos, uma coisa que me agrada. Ao contrário dos ventos que ultimamente têm encaminhado tudo o que governa as nossas vidas, esta, e outra lei ainda, vão em sentido contrário – deixam-nos! É tão bom saber que pudemos! Desde criança que eu não sentia esta sensação de liberdade de “ter autorização”, já nem me lembrava de como era! Que maravilha haver um recreio no mundo da proibição instituída - de fumar, de comer, de beber, de ver, ler, falar o que vai contra o código aceite,etc,etc, - e onde nos é permitido escolher duas coisas: morrer  e levar o cão a almoçar fora!
Só espero que o vento não tome a direcção habitual e elas passem a ser obrigatórias, não por causa do morrer, que, isso, enfim, se o que há-se vir ao tarde vier ao cedo … , mas o resto? porque já o meu paizinho que sempre teve cães e os adorava, dizia – cães às refeições, nunca, que isso só os faz sofrer! (ele era reaccionário, eu sei). (MFM)


12 de fevereiro de 2018

Bom Carnaval (sem laranjadas)



                                                                 Carnaval no sec. XVI




Pieter Brueghel, o velho (1525-1569) Luta entre Carnaval e Quaresma (pormenor)



...para o carnaval não têm [os lisboetas] recreação nenhuma senão atirar laranjas azedas, e em especial nos dois últimos dias, de tal forma que nenhum gentil-homem sai fora de casa durante aqueles dias, acontecendo mortes de homens.  (Gianbattista Confalonieri , final sec.XVI)


Nota: De tal forma a violência marcava esses dias que, nos inícios do século XVII, Filipe III viu-se obrigado a proibir as «laranjadas e brigas de Entrudo». E, já agora, bom carnaval, para quem é de carnaval, para quem não é, uma terça feira de entrudo bem sossegadinha, como a que eu desejo para mim. (MFM)

18 de janeiro de 2018

Coisas que se dizem....


Coisas que se dizem ....

Se não fosse o mau gosto o que seria do amarelo?


Elizabeth Sonrel, Jeune fille en jaune


Jean-Honoré Fragonard, A Young Girl Reading.

Veloso Salgado (1864, 1945), Juventude 

Michael Steirnagle, 2010,  Yellow Dress 

William MacGregor Paxton (1869-1941), Girl with the Sea Beyond

Thomas Wilmer Dewing, 1888, Lady in Yellow 

Alfred Stevens,1867, In the Country 

Jan Toorop, 1901, the three girls, Marie, Lies and Nellie Volker van Waverveen.

Serge Ivanoff (1893-1983), Portrait of Simone Gentile in a Yellow Gown.


Gunnar Berndtson (1854-1895), 1889, The Mirror.

                                                                   

                                        .... mas não se entendem.


11 de janeiro de 2018

As primas Pena


 William George Gillies (1898–1973) Sisters Emma and Janet



Do lado direito da casa do meu avô, nos Olivais, estendia-se, perpendicular à estrada, uma estreita faixa de terra, sem árvores nem poço, onde, no tempo próprio, crescia apenas algum cereal e pouco mais. Era a “fazenda das penas”. Ao contrário do que a imaginação possa imediatamente suscitar, este nome, por que era popularmente conhecida, não se devia à aridez do terreno nem a qualquer infortúnio ocorrido no local. Mas, muito simplesmente a ser aquela, muito propriamente dito e articulado, à maneira da minha avó, “a fazenda das primas Pena”. E as primas Pena eram o que o nome literalmente indica, primas nossas, de apelido Pena. Duas. Eram duas, as primas. Secas, solteironas e respeitáveis. Moravam em Assentis de onde eram naturais, últimos rebentos de um ramo velho da velha árvore de onde brotara igualmente o meu avô. De que forma aqueles velhos esgalhos tinham nascido e estavam articulados na antiga vergôntea de modo a chamarem-se primos, não sei dizer, não perguntei, não era costume perguntar-se tal coisa, ser-se primo era coisa natural por aquelas paragens e por aqueles tempos.

As primas Pena visitavam uma ou duas vezes por ano a sua propriedade, que traziam arrendada, e, de caminho, enquanto faziam horas para a camioneta de carreira, que também as trouxera, apareciam lá em casa. Graves, reverentes, corteses, vestidas adequadamente, como era adequadamente pequeno-burguês tudo o que diziam e faziam, em conformidade com todo aquele mundo a que pertenciam. A que pertencíamos. Trajavam sempre de casaco, mesmo no pino de Julho, curto, de mangas abaixo dos cotovelos, à francesa, traziam pendurada da mão ou do antebraço a célebre “mala-de-senhora”, e, quiçá, uns anos antes, o chapéu também lhes tivesse encimado a cabeça, embora, no meu tempo, trouxessem já o cabelo, onde a cabeleireira colocara os competentes rolos, enlacado na requerida permanente. Eram senhoras, portanto. Que se sentavam, observavam do crescimento das crianças, perguntavam dos achaques e informavam dos próprios, comentavam das sementeiras e colheitas, clima e ano agrícola em geral, e partiam. Eram assim as visitas das primas, como todas as outras.

Em 1974, depois da revolução e da formação dos novos partidos políticos, a minha avó, sempre atenta e informada, e, nesta época, mais do que nunca, tratou de nos fazer saber que um sobrinho das primas Pena se dedicava, agora, à política. Era ele o Dr. Rui Pena, do CDS.

Porque era jovem e ingrata e não dava a devida importância aquilo que devia, o que, hoje, nunca lamentarei o suficiente, também aquela informação não me despertou qualquer interesse. Ao longo da vida pública do senhor, quando o via na TV, ou ouvia falar dele, não me ocorreu, nunca, a levíssima, ténue, ligação familiar que pudéssemos ter. Mas, esta semana, ao saber da sua morte lembrei-me, logo, das primas Pena. Que coisa extraordinária nos traz a idade! Donde raio se levantam estes fumos desgraçados que nos toldam e exalam um cheiro tão antigo e tão presente, nos trazem tudo à memória e nos obrigam a penitenciar das nossas falhas? Como eles me evocam, agora, aquele fim de tempo que eu presenciei. Em que tudo encaixava e era previsível. Tempo onde tudo cabia. Até a subversão. Que só causava escândalo. Mais nada. (MFM)



Nota: À família enlutada do Dr. Rui Pena , pretexto deste pequena evocação, apresento as minhas condolências.

9 de janeiro de 2018

Vieira Guimarães, Camilo e eu

                             






Para os tomarenses actuais "Vieira Guimarães" é o nome de um edifício. A casa que o seu dono, dono também do mesmo nome, mandou edificar em 1922 (data nela inscrita). Pelos anos sessenta do século passado, a casa estava condenada por um PDM que queria Tomar desafogada e com grandes avenidas e que considerava o edifício um pastiche neo-manuelino de mau-gosto. Foi por essa época que eu a conheci, moribunda, cheia de rachas nas paredes e com escadas rangentes, trémulas quando se subia e baloiçantes quando se vinha para baixo. Mas, para além de tectos onde a falta de caliça, que tornava permanentemente o soalho arenoso,  deixava adivinhar os relevos decorativos de outros tempos, que me encantavam, o seu piso superior estava cheio de outras coisas que me faziam galgar as ditas escadas, sem me importar nada com os seus gemidos - os livros. E livros à-mão-de-semear, livres nas estantes, sem qualquer constrangimento. A Biblioteca Gulbenkian tinha esta modernidade que só dezenas de anos depois as bibliotecas públicas implementaram. Sei do que falo, a minha tristeza quando entrei pela primeira vez na biblioteca municipal e me mandaram procurar no ficheiro o livro que queria! Sabia eu lá! Eu ia à procura de livros, não de um livro! A Gulbenkian, essa, sim, mostrava-mos, exibia-os, com cheiro, cheiro a velho, o meu preferido, ou a novo ainda a cheirar a tinta, o cheiro, esse filtro indispensável nos livros! Foi ali que, aos dez anos, nas férias grandes, vinda da aula de natação na piscina, eu descobri duas grandes prateleiras de livros encadernados a vermelho. Retirado um, li "OBRAS" com o O inicial meio trespassado por um ramalhete. Aquele livro tinha então por título "O Bras"!? Conclui que sim. Retirei segundo, era também "O Bras". Seria continuação? Mas havia muitos mais!  Aquele autor só tinha livros com o mesmo título? Folheei um dos "Bras", afinal não era "bras" era " Obras  de ...", vi melhor,  aquele "O Bras", era a obra literária chamada de "o Bem e o Mal" que começava assim " apresento o sr. Ladislau Tibério Militão de Vila Cova". Comecei então, desta maneira, a ler Camilo Castelo Branco, continuei sempre e ainda não acabei! (MFM)