Esta água foi nascer/Naquela encosta do monte/Para vir dar de beber/A quem passar pela fonte
Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
18 de fevereiro de 2021
Memórias - A Tagarela
17 de fevereiro de 2021
Memórias - A Anita
A Anita era uma amiga de sempre da avó. Tinham sido vizinhas em Tomar e tinha-se aproximado e aprofundado amizade com a nossa família, especialmente com a avó apesar de alguns anos mais nova do que esta, depois de ter perdido os pais muito jovem
Era uma senhora alta, com porte distinto, modos sofisticados, muito alegre e simpática, sempre muito bem vestida e de cabelo arranjado, visita regular lá nos Olivais,
algumas vezes acompanhada do filho.
A história da vida da Anita era surpreendente. Ela própria ma contou, já eu era crescida, mas, antes, quando vivera em Porto da Lage já eu tivera ocasião de embasbacar, não era para menos, ao saber o modo peculiar como a Anita regulava, digamos assim, a sua vida.
E muitas noites se seguiram, depois, a esta de reencontro da Anita com o
marido, nada era decidido, nada era feito sem o acordo do Víctor, muitas vezes era
ele a propor iniciativas que conduziriam a melhorias na família. Por conselho
dele, passara ela a ser membro de uma igreja espírita qualquer de onde trazia
sempre livros e algum proselitismo, a única conversa da querida Anita para que não havia ouvidos nem retorno. Ninguém por ali estava interessado em conhecer a raíz da sua crença, em questioná-la ou contrariá-la.Nunca ouvi o avô falar sobre isso, mas tenho a certeza que sustentaria que seria aquele o modo que Deus arranjara para a ajudar a vencer a prova que a vida lhe enviara. Os restantes, embora não se atrevessem a envolver o Senhor em matéria tão sensível, pensavam o mesmo. Ela era nossa amiga e aquilo, fosse o que fosse, ajudava-a. Seguia-se no assunto o lema da tia Alice "cada um era feliz à sua maneira".
Entretanto, depois de ver o filho entregue em boas mãos, passara ela a ser costureira de dentro. Trabalhava em casa de senhoras das quais retirava o seu rendimento e também, parecia-me, aquela desenvoltura e aquele gosto em se vestir.
Depois de, em miúda, ter passado a saber deste “segredo”, que só o seria para nós pois a Anita não tinha pejo nenhum em falar dele (havia sempre muito cuidado com os encontros entre ela e a tia Maria**, apesar da Anita estar avisada, a avó não confiava e procurava que estivessem juntas o menos tempo possível), pelo contrário, aquilo era a sua vida, passei, já mais velha, a pedir à avó para ler as cartas. Sozinha dissecava aquelas descrições de conversas com o Victor, que era, como lhe hei-de chamar? um ser sensato, inteligente, que se exprimia bem.
Eu adorava conversar com a Anita, sempre que sabia que ela estava em Porto da Lage arranjava maneira de também lá ir, para além da alusão por tudo e por nada ao Victor, o que me deliciava (era da gente se esquecer que ele não estava no mundo dos vivos) e a Anita sabia tudo sobre moda, trazia revistas, conhecia intrigas sobre os artistas da televisão. Trabalhava na Lapa, em casa da marquesa de … prima de …. que tinha muitas filhas, meninas que se davam, namoravam algumas até, com actores e cantores e lhe contavam tudo sobre aquelas vidas divertidas, modernas, libertas, tão diferentes da minha, provinciana.
* Numa rua linda, na Madragoa, muito perto do palácio de S.Bento. Rua, onde eu, mais tarde também vivi sem saber que tinha sido a dela. Quando finalmente fiz a ligação (através do remetente de uma carta dela, já todos tinham morrido) interroguei-me sobre a forma como ela explicaria isto.
** Já aqui falei nela, católica apostólica romana com tolerância não incluída, nunca aceitaria nem a Anita nem que ela fosse recebida lá em casa.
16 de fevereiro de 2021
Memórias- A Casa (cont)
Aquela casa solitária, no meio de olivais e com difíceis acessos,
nunca estava sozinha. Havia sempre os empregados, quem vinha buscar e trazer produtos,
fazer negócios com o avô, e as visitas.
As visitas, quer fossem as de média ou curta duração, como primas e amigas da avó e a Augusta que vinham para ficar pelo menos
uma semana, quer as que vinham por um dia ou até por momentos como a tia Maria,
eram habituais.
A tia Maria chegava a vir várias vezes por dia, muito diligente e prestável, lá vinha de sua casa, atravessava a ponte e a horta trazendo sempre alguma coisa ou disposta a ajudar em algo. A doença cardíaca da avó era o pretexto, embora a ajuda fosse recebida pela beneficiária não sem alguma impaciência. Para a tia a ajuda não se oferecia, impunha-se. Mas gostava de mim, era meiga e atenciosa, muito atenta ao meu bem-estar. Só uma vez nos zangámos. Sabendo, num domingo qualquer, que, por uma alteração inesperada eu, para não ficar sem missa, teria que ir com o avô a pé a Cem Soldos, ela achou mal, não concordou e impôs-se “a menina não pode fazer esse caminho todo a pé, não está habituada”, enfrentou o avô, aparelhou a sua mula à carroça e lá fomos.
Aguarela de Roque Gameiro |
Uma constante na frequência diária de gente lá em casa, eram os jornaleiros, aqueles que chegavam de manhã, habituais nas tarefas de todos os dias que trabalhavam juntamente com o avô, iam com ele para as fazendas ou ficavam por ali, entre os quais se incluíam mulheres que, sendo preciso, também ajudavam em tarefas domésticas. Faziam limpeza, amassavam o pão e lavavam a roupa. Lavavam-na no tanque ou na ribeira em certas épocas. Uma destas era uma prima em segundo grau do avô, filha de um primo direito. Vinha sempre com uma filha adolescente para a ajudar. Era uma pessoa que caía ou batia frequentemente em coisas, das escadas ou no que fosse, pois a cara andava sempre esmurrada, às vezes mesmo ferida. Eu gostava muito de estar com elas, de encher de sabão os lenços, ou outras pequenas peças de roupa, previamente molhados e esticados, esfregá-los com determinação na pedra e, depois, enxaguar na água limpa, a avó deixava, elas eram educadas, falavam bem, não diziam palavrões. Diferente era quando a lavagem tinha lugar na ribeira, ao fundo da horta, nas brancas pedras seculares. Aí chegavam a juntar-se muitas mulheres, provenientes de várias casas da família e de quem pedisse para ir ali lavar, o sitio era propício, a água limpa, e o espaço contíguo de erva baixa indicado para pôr a roupa a corar. Então a conversa era outra. Elas falavam livremente entre si e pouco se importavam com uma miúda que andava por ali, a passear de pés dentro de água, a jusante das lavagens, para não a sujar. Contavam das suas alegrias e tristezas, lamentavam as alheias como ainda pior que as suas. Foi destas conversas que eu percebi que a prima não devia a sua cara esmurraçada a quedas nem a encontrões, ela, como outras cujos episódios de vida eram ali contados, era vítima de uma violência que eu não imaginava existir.
Madonna, Munck |
Dentro do meu assombro com esta novidade brutal juntava-se o estilhaçar da imagem que eu tinha de maridos e pais, dos que eu conhecia realmente e da dos livros, e a profunda pena por aquelas mulheres e crianças espancadas pelo poder caprichoso de quem tinha força, o que me magoava e não me deixou sossegar por muito tempo. Tanto mais que não havia ninguém para me acalmar, como noutros casos, não era suposto eu conhecer nada disto, eu sabia que "não eram coisas para a minha idade", não havia, portanto, razão para conversa. Apenas na escola, onde me fui apercebendo da banalidade do fenómeno. Os pais assíduos das tabernas, bêbados ao entrar em casa noite fora pondo toda a família em sobressalto, espancando a mãe e os filhos que intervinham, por vezes a fuga para casa de vizinhos e parentes, eram a triste rotina de muitos dos da minha idade.
15 de fevereiro de 2021
Memórias - A Casa (cont)
(continua)
12 de fevereiro de 2021
Memórias - A Casa
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.
Mas não é desse mundo que retiro as memórias que quero transmitir, é de outro, de outro tempo, quiçá de outra dimensão, que passou fortuitamente por mim em criança e cuja lembrança me assalta agora num fundo agridoce de dor e de maravilha. E, como recordações de criança que são, entendo que apenas outras crianças parecidas comigo, como terão de ser forçosamente os meus netos, as compreenderão.
11 de fevereiro de 2021
Memórias - A Prima A.
A Prima A.
Agora sim! Já pode começar a desanca que eu acompanho! Homens! Insensibilidade masculina no seu melhor, só pensam neles! Pobre avó, tão empenhada no bem-estar dele! Pobre prima, preterida por não se encaixar no seu ideal de beleza, não obstante as suas inúmeras qualidades!(MFM)
Pintura exibida na imagem - Mulher de vestido vermelho e chapéu de palha -1937, Picasso (1881-1973)
10 de fevereiro de 2021
Memórias- A Augusta
A Augusta
Ao lado da casa da tia Anita morava a D. Elisa. Entrava-se para casa dela subindo as mesmas escadas do pátio da tia e passando pelo alpendre de que já falei. Se havia outra entrada não conheci, foi sempre este caminho que tomámos quando ia provar os vestidos lá a casa - um deles o de risquinhas cor- de- rosa, com peitilho de botõezinhos, que eu adorava e que estreei no exame da 4.ª classe. A D. Elisa, além de costureira, era senhora também de uma figura impressionante, daquelas que é suposto na tradição, nos livros infantis e no cinema, im-pre-ssio-nar mesmo as criancinhas, não me metia medo porque era afável e delicada e também porque, diga-se a bem da verdade, nunca estive sozinha com ela, mas o seu físico desmedido e as suas feições - era altíssima e espadaúda, tinha um grande nariz e o rosto cheio de pelos e verrugas - deixavam-me .... bem, não vale a pena entrar em detalhes, já viram muitos filmes e sabem como ficam os miúdos quando vêm as gémeas da D.Elisa.
A Augusta não era, portanto, burra, pensava com os instrumentos que conhecia e, mais do que isso, era como deve ser, quer dizer, distinguia o bem do mal, tinha valores. Faltava-lhe o conhecimento e o sotaque exigido, pois falava com o assento particular da sua gente que troca os b pelos v e o inverso, diz avelhas e obelhas e que bai ber e oubir as vandas de música, o que a avó considerarava muito feio. Mas tudo se compôs, aprendeu a falar, a estar e tirou a 3.ª classe nocturna, faltando-lhe a 4.ª por não ter sido leccionada em Porto da Lage.