A Tagarela


Esta água foi nascer/Naquela encosta do monte/Para vir dar de beber/A quem passar pela fonte


A Anita era uma amiga de sempre da avó. Tinham sido vizinhas em Tomar e tinha-se aproximado e aprofundado amizade com a nossa família, especialmente com a avó apesar de alguns anos mais nova do que esta, depois de ter perdido os pais muito jovem
Era uma senhora alta, com porte distinto, modos sofisticados, muito alegre e simpática, sempre muito bem vestida e de cabelo arranjado, visita regular lá nos Olivais,
algumas vezes acompanhada do filho.
A história da vida da Anita era surpreendente. Ela própria ma
contou, já eu era crescida, mas, antes, quando vivera em Porto da Lage já eu
tivera ocasião de embasbacar, não era para menos, ao saber o modo peculiar como a
Anita regulava, digamos assim, a sua vida.
E muitas noites se seguiram, depois, a esta de reencontro da Anita com o
marido, nada era decidido, nada era feito sem o acordo do Víctor, muitas vezes era
ele a propor iniciativas que conduziriam a melhorias na família. Por conselho
dele, passara ela a ser membro de uma igreja espírita qualquer de onde trazia
sempre livros e algum proselitismo, a única conversa da querida Anita para que não havia ouvidos nem retorno. Ninguém por ali estava interessado em conhecer a raíz da sua crença, em questioná-la ou contrariá-la.Nunca ouvi o avô falar sobre isso, mas tenho a certeza que sustentaria que seria aquele o modo que Deus arranjara para a ajudar a vencer a prova que a vida lhe enviara. Os restantes, embora não se atrevessem a envolver o Senhor em matéria tão sensível, pensavam o mesmo. Ela era nossa amiga e aquilo, fosse o que fosse, ajudava-a. Seguia-se no assunto o lema da tia Alice "cada um era feliz à sua maneira".
Entretanto, depois de ver o filho entregue em boas mãos, passara ela a ser costureira de dentro. Trabalhava em casa de senhoras das quais retirava o seu rendimento e também, parecia-me, aquela desenvoltura e aquele gosto em se vestir.
Depois de, em miúda, ter passado a saber deste “segredo”, que só o seria para nós pois a Anita não tinha pejo nenhum em falar dele (havia sempre muito cuidado com os encontros entre ela e a tia Maria**, apesar da Anita estar avisada, a avó não confiava e procurava que estivessem juntas o menos tempo possível), pelo contrário, aquilo era a sua vida, passei, já mais velha, a pedir à avó para ler as cartas. Sozinha dissecava aquelas descrições de conversas com o Victor, que era, como lhe hei-de chamar? um ser sensato, inteligente, que se exprimia bem.
Eu adorava conversar com a Anita, sempre que sabia que ela estava em Porto da Lage arranjava maneira de também lá ir, para além da alusão por tudo e por nada ao Victor, o que me deliciava (era da gente se esquecer que ele não estava no mundo dos vivos) e a Anita sabia tudo sobre moda, trazia revistas, conhecia intrigas sobre os artistas da televisão. Trabalhava na Lapa, em casa da marquesa de … prima de …. que tinha muitas filhas, meninas que se davam, namoravam algumas até, com actores e cantores e lhe contavam tudo sobre aquelas vidas divertidas, modernas, libertas, tão diferentes da minha, provinciana.
* Numa rua linda, na Madragoa, muito perto do palácio de S.Bento. Rua, onde eu, mais tarde também vivi sem saber que tinha sido a dela. Quando finalmente fiz a ligação (através do remetente de uma carta dela, já todos tinham morrido) interroguei-me sobre a forma como ela explicaria isto.
** Já aqui falei nela, católica apostólica romana com tolerância não incluída, nunca aceitaria nem a Anita nem que ela fosse recebida lá em casa.
Aquela casa solitária, no meio de olivais e com difíceis acessos,
nunca estava sozinha. Havia sempre os empregados, quem vinha buscar e trazer produtos,
fazer negócios com o avô, e as visitas.
As visitas, quer fossem as de média ou curta duração, como primas e amigas da avó e a Augusta que vinham para ficar pelo menos
uma semana, quer as que vinham por um dia ou até por momentos como a tia Maria,
eram habituais.
A tia Maria chegava a vir várias vezes por dia, muito diligente e prestável, lá vinha de sua casa, atravessava a ponte e a horta trazendo sempre alguma coisa ou disposta a ajudar em algo. A doença cardíaca da avó era o pretexto, embora a ajuda fosse recebida pela beneficiária não sem alguma impaciência. Para a tia a ajuda não se oferecia, impunha-se. Mas gostava de mim, era meiga e atenciosa, muito atenta ao meu bem-estar. Só uma vez nos zangámos. Sabendo, num domingo qualquer, que, por uma alteração inesperada eu, para não ficar sem missa, teria que ir com o avô a pé a Cem Soldos, ela achou mal, não concordou e impôs-se “a menina não pode fazer esse caminho todo a pé, não está habituada”, enfrentou o avô, aparelhou a sua mula à carroça e lá fomos.
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| Aguarela de Roque Gameiro |
Uma constante na frequência diária de gente lá em casa, eram os jornaleiros, aqueles que chegavam de manhã, habituais nas tarefas de todos os dias que trabalhavam juntamente com o avô, iam com ele para as fazendas ou ficavam por ali, entre os quais se incluíam mulheres que, sendo preciso, também ajudavam em tarefas domésticas. Faziam limpeza, amassavam o pão e lavavam a roupa. Lavavam-na no tanque ou na ribeira em certas épocas. Uma destas era uma prima em segundo grau do avô, filha de um primo direito. Vinha sempre com uma filha adolescente para a ajudar. Era uma pessoa que caía ou batia frequentemente em coisas, das escadas ou no que fosse, pois a cara andava sempre esmurrada, às vezes mesmo ferida. Eu gostava muito de estar com elas, de encher de sabão os lenços, ou outras pequenas peças de roupa, previamente molhados e esticados, esfregá-los com determinação na pedra e, depois, enxaguar na água limpa, a avó deixava, elas eram educadas, falavam bem, não diziam palavrões. Diferente era quando a lavagem tinha lugar na ribeira, ao fundo da horta, nas brancas pedras seculares. Aí chegavam a juntar-se muitas mulheres, provenientes de várias casas da família e de quem pedisse para ir ali lavar, o sitio era propício, a água limpa, e o espaço contíguo de erva baixa indicado para pôr a roupa a corar. Então a conversa era outra. Elas falavam livremente entre si e pouco se importavam com uma miúda que andava por ali, a passear de pés dentro de água, a jusante das lavagens, para não a sujar. Contavam das suas alegrias e tristezas, lamentavam as alheias como ainda pior que as suas. Foi destas conversas que eu percebi que a prima não devia a sua cara esmurraçada a quedas nem a encontrões, ela, como outras cujos episódios de vida eram ali contados, era vítima de uma violência que eu não imaginava existir.
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| Madonna, Munck |
Lembro agora as lojas dos meus encantos, as drogarias, lugar paradisiaco de cor, confusão e cheiro. O cheiro daqueles sítios era único, e para mim completamente perdido no passado. Até que, há algum tempo, em Viseu, o reencontrei. Numa rua estreita e bonita, que depois passou a ser maravilhosa, entrei numa daquelas lojas, que reconheci por toda a parafernália que se alcandora pela porta e se estende sempre pela rua, para procurar um produto que procurava há anos. Encontrei-o claro, e reencontrei o cheiro.
Ele provirá, no mundo real, de um produto ou de vários mas, para mim, cá no meu mundo de Dorothy Gale, ele surge, o cheiro nasce da visão louca de mil e uma cores e coisas desencontradas, do pente vermelho, do escadote, do alicate azul e da sertã cor de burro quando foge enfiada no cabo da vassoura laranja, da rede da capoeira e do shampoo que representa as últimas tendências em encaracolamento de cabelo! Nesta confusão de sentidos, os meus olhos cheiraram na primeira drogaria, depois noutra, mais outra, de tal forma que Viseu ficou, para sempre, a ser uma terra querida devido às suas drogarias encantadas. (MFM)(continua)

à ribeira lá ao fundo, e sobre esta, uma pontesinha aparentemente frágil permitia a ligação rápida da casa ao centro da povoação. Na horta medravam as árvores de fruta e os legumes de época, destinados à família, regados pela água do poço que tinha fama de ser a melhor nascente daquela várzea, talvez mesmo da região, nunca secava. Nos anos em que a secura apertava era ver os vizinhos virem abastecer-se de água ao nosso poço, o único que permitia, ainda, que os alcatruzes a transportassem fresca e transparente, das suas profundezas, puxados pela nora que a mula fazia movimentar.
Por baixo existia o celeiro,
onde, dentro de grandes arcas de madeiras repousavam o milho e o feijão, que se
mediam através de caixas de madeira – “os alqueires” - cada uma com seu tamanho
correspondente a determinada capacidade que se media precisamente em alqueires.
Já o azeite, ali também guardado em talhas de barro, media-se em almudes e, talvez
por isso, as bilhas de latão com tampa, de diversos tamanhos, nas quais também
se colocava o azeite, se designavam genericamente por “almudes”. Mas estas antigas unidades de medida, o alqueire e o almude, seriam só usadas por hábito e para uso doméstico, já tinham sido ultrapassados, oficialmente, pelo litro e pelo quilograma, pois também existiam uma balança e um "litro" se a intenção fosse vender.
O pátio lá atrás,
onde também havia um poço com nora e um tanque, onde a prima Anita lavava a roupa, estava rodeado de alpendres, um aberto com
gamelas baixas onde se avistavam as cabeças dos porcos sempre ocupados a comer, e onde, mesmo ao lado, descansavam há décadas as enormes galeras cheias de pó, antigos carros puxados por bois que tinham servido para transporte de mercadorias entre a estação local de caminhos de ferro e Tomar. Nos alpendres fechados, situava-se, num, o forno onde, depois de amassado pela Celeste, se fazia o pão
ao sábado, no outro, ao lado, era o local onde se preparavam os alimentos que requeriam mais
espaço e provocavam sujidade, se matavam e depenavam as galinhas, se faziam as
compotas, as caldas de tomate e pimento para todo o ano, a avó fazia queijo fresco quando havia leite de cabra ou ovelha, apertando com as duas mãos a coalhada até sair o soro e colocando-a depois em cinchos de aluminio, se retalhavam
azeitonas e cortavam finas as couves incapazes para a cozinha, misturando-as com farelo para
dar às galinhas.
Quando passaram a ser servidas à mesa dos restaurantes as migas
com couve como fazendo parte da “cozinha tradicional portuguesa”, não pude
deixar de recordar em como era percursor e requintado o menu das galinhas de
Porto da Lage. Aliás, eram mesmo bem tratadas, aquelas galinhas. Passavam o dia
numa capoeira grande e arejada neste pátio e, quando se punha o sol, abria-se-lhes a porta e elas iam sozinhas, atravessando o redil das cabras e ovelhas e o
palheiro da mula, até ao pátio da frente onde se situava o seu dormitório todo
emparedado, que as mantinha fora do alcance dos predadores. 
A Prima A.
Agora que olho para trás e tento recordar a sua figura, imagino que talvez ela fosse uma excêntrica, uma velha hippie de 70 anos, afinal aquele era o tempo deles, e não o soubesse. Não era uma camponesa, vestia roupas simples, saias estreitas de fazenda, blusas de algodão, sapatos de grosso cabedal, casaco comprido de lã no Inverno, nada de tamancos ou lenços na cabeça, dir-se-ia uma modesta senhora da cidade, talvez mesmo uma estrangeira, uma country woman inglesa.
Pintura exibida na imagem - Mulher de vestido vermelho e chapéu de palha -1937, Picasso (1881-1973)