Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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4 de março de 2014

Brueghel e a Belida

Brueghel "o Velho",  Boda campestre,  1621 - 1623 (Galeria online do Museu do Prado, Madrid) 


O Cortejo nupcial segue para a igreja. Os homens à frente, encabeçados pelo noivo, vestido de preto com farta gola branca, de flor em punho. Atrás a noiva, também de preto, no grupo das mulheres. Ao longe já se ensaiam as danças da boda.

Passa-se a cena numa alegre e garrida aldeia da Flandres onde a prosperidade  transparece nos trajes ricos dos camponeses, nas altas casas bem edificadas e na geral boa disposição dos presentes. Tudo brilhantemente reproduzido na nova temática da pintura "nórdica" (como lhe chamavam os italianos) que se inicia nos fins do sec.XVI: a paisagem e os momentos do quotidiano.

[Estas e outras obras-primas de grandes mestres do sec.XVII, provenientes do Museu do Prado, podem ser vistas até ao final de Março no Museu de Arte Antiga.]

Não nos costumamos lembrar disto, mas, a partir de 1580, Portugal , os Países Baixos e a Flandres faziam todos parte do "Império onde o sol nunca se punha" que fora o Grande Império de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, na época já herdado por seu filho Filipe II (I de Portugal filho de Isabel de Portugal, filha de D. Manuel).  
Fazendo embora parte do mesmo "império" penso que pouco teriam em comum as nossas aldeias com as industriosas das províncias neerlandesas que, não obstante a guerra incessante contra Espanha - "Guerra dos 80 anos ou Revolta Holandesa" decorrente de 1568 a 1648 - eram prósperas e dinâmicas de tal forma que, após a independência, conseguiram criar uma Holanda que se transformou numa potência mundial, ameaçadora dos interesses portugueses e herdeira daqueles em muitos casos.
Pois neste período, em 1609 mais precisamente,  a vida também corria, mais pobre e não tão colorida, digo eu, no "nosso território" ao norte da freguesia da Madalena, no "canto" entre Beselga e Assentis. Tanto quanto se pode observar nos movimentos registados em casamentos, era esta zona muito pouco habitada, ao contrário da restante onde pontificavam o Marmeleiro, Machial, Carvalhal grande e pequeno, etc. De Cem Soldos (lugar pequeníssimo)  para cá, Porto Mendo seria o único "lugar", com pouco mais de meia dúzia de vizinhos, sendo o restante território ocupado por "casais", casal do Negro, casal dos Galegos, casal dos Gaios, casal da Velida, casal de Nicolau Dias, cada um deles ocupado por uma família ou gente ligada à família, aparecendo também a menção a "casais da ribeira" de modo genérico, às vezes mencionando gente já designada anteriormente como moradora num dos outros casais, outras vezes designando pela primeira vez, outras pessoas. O Paço, ou Paço da ribeira é mencionado duas vezes entre 1597 e 1625, com dois casamentos lá ocorridos, em que os quatro noivos não têm, aparentemente, nada a ver uns com os outros, isto é, não seriam família, ao contrário do que é habitual nos "casais". Ao todo, Porto Mendo incluído, contei 44 casamentos ocorridos no período de tempo que referi atrás nesta zona da freguesia, enquanto em toda a Madalena se realizaram 232 no mesmo período. 
Porque Porto da Lage só aparece muito mais tarde em  1697, em registos desta natureza, os noivos, neste caso a noiva, mais perto que consegui arranjar, foi no já inexistente Casal da Belida. 
Talvez que os festejos deste casório entre a Maria, da Belida e o Manuel, da Golegã, não fossem tão vibrantes como os que Brueghel nos mostra, apesar de lá estar "quase toda a gente da freguesia", mas de duas coisas estou certa: a alvura da igreja da Madalena com a sua pitoresca galilé (1) e o luminoso céu de São Martinho não deixaram a desejar nenhum templo cinzento calvinista nem a fria claridade do norte. Sempre o sol e o abençoado céu azul a reconciliar-nos com o pouco que tínhamos e temos! (MFM)




« Aos oito dias do mês de Novembro foram recebidos em face da igreja pelo padre frei Aleixo frei coadjutor conforme o sagrado concilio Tridentino  constituinte desta jurisdição Manuel Vaz filho de Simão Alvares já defunto e de Catarina Vaz moradores na vila da Golegã com Maria Nunes filha de Domingos Dias e de Maria Nunes já defunta desta freguesia de Sta Maria Madalena moradores no Casal da Velida testemunhas Pero Nunes Diogo Dias o velho e o novo e Simão Fernandes Francisco Lopes e quase toda a gente desta freguesia e por ser verdade fiz este que assinei dia e mês supra era de 609 anos. Frei Manuel Fernandes (?)» (TT- assentos de casamento da Madalena, Tomar, Santarém)

(1) Sim, eu sei. A igreja actual da Madalena consta ser de 1660. Será. Mas no mesmo sitio havia outra desde quatrocentos. Se tinha galilé ? Se ninguém sabe, porque é que eu não posso achar que tinha?



25 de fevereiro de 2014

A Beselga e o Santo Ofício

Terreiro do Paço no séc.XVII -Óleo sobre tela de Dirk Stoop, Londres, 1662. Museu da Cidade

Manuel Escudeiro, mestre alfaiate estabelecido na rua direita da freguesia de S. Jorge da cidade de Lisboa, era tido como homem abastado e de vida limpa. Mas não vivia satisfeito; com menos de trinta anos, solteiro e com rendimentos, sentia-se em condições de aspirar a mais do que uma vida folgada assente no trabalho. Sonhava ter importância e influência, fruir honras de gente de bem!

E foi assim que, pondo os olhos numa vida futura cheia de enaltecerias, em Setembro de 1697 entregou, no Tribunal da Inquisição de Lisboa, um requerimento dirigido aos Ilustres Senhores Inquisidores Apostólicos da Inquisição da Cidade de Lisboa, no qual declara desejar servir os ofícios no cargo de familiar, pelo que lhes roga que, achando nele os requisitos necessários sejam servidos de o querer admitir nesse cargo.



Antigo palácio dos Estaus, sede da inquisição mais tarde, depois Teatro
Nacional  D.Maria II.

Os Familiares do Santo Ofício eram agentes laicos da Inquisição. Entrar para os seus quadros conferia o mais elevado grau de estatuto social e prestígio, permitindo ascender na escala social do Antigo Regime. Ficava, também,o Familiar imbuído de diversos poderes e regalias no âmbito das diligências do tribunal do Santo Ofício.
 Possuir a carta de Familiar garantia, por si só, que o habilitando tinha limpeza de sangue, meios abastados de subsistência e, essencialmente, atestava a sua origem de cristão velho. Pouco importava a origem social desde que aquelas duas condições estivessem presentes nesta ordem: ser cristão velho e ter meios – fazenda – que lhe permitisse viver abastadamente. E nunca esta ordem era trocada. Conta Camilo Castelo Branco no seu livro Sentimentalismo e História como uma das famílias da nobreza portuguesa “Os senhores da casa de Barbacena”, tão nobres que se colocaram ao lado de D. Miguel nas lutas liberais, nunca conseguiram habilitar-se ao Santo Ofício devido ao seu “defeito” original: descenderem de Antão de Castro, feito cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo da casa Real por D. João III mas declaradamente cristão-novo.
A aceitação do candidato a Familiar era antecedida de um rigoroso processo sobre as qualidades morais, pessoais, familiares, e, sobretudo, a certeza plena de não ter ascendência próxima de herege, judeu, mourisco ou negro, isto é, absoluta limpeza de sangue.




Paisagem de Minde
No seu requerimento Manuel Escudeiro, naturalmente, identifica-se. É filho de Domingos da Rosa e de Maria Fradeza, ambos do lugar de Minde, termo de Porto de Mós, bispado de Leiria, local de onde são também naturais os avós paternos Domingos João e Maria Esteves e os maternos, Simão Escudeiro e Maria Fradeza. 
  

Roque Gameiro: casa antiga de
Minde

Na primeira análise ao processo é referido que Manuel Escudeiro “mestre alfaiate e soldado de infantaria vive limpa e abastadamente, sabe ler e escrever, é sujeito muito bom e servido na vida e costumes, muito capaz para se lhe encarregarem todos os negócios de importância e segredo”.

Porém é também notado, nem se pergunta como o descobriram (afinal eram mestres no ofício), que todos os seus ascendentes são de Minde sim senhor, excepto o avô materno que “veio para o lugar de Minde vindo do lugar de Beselga ou de outro lugarejo pegado a este que se chamou ou chamava dos vargos(?) ambos do termo de Torres Novas, este foi ferreiro e serviu de alferes de governação no dito lugar de Minde”.

Não se sabe como Manuel Escudeiro reagiu a esta notícia. Ou se teria tido acesso a ela. Será que estes processos correriam “em segredo de justiça” ou ir-se-ia dando conta das diligências ao interessado? O certo é que não é posta em causa a informação inicial dada pelo requerente sobre a naturalidade do avô materno. Se terão concluído que ele apenas estaria mal informado sobre o assunto ou se os teria tentado enganar não sabemos.

Sabemos, isso sim, que em Novembro de 1701 ( já lá iam quatro anos desde o inicio do processo! ) o Reverendo Beneficiado Julião Pereira Cabanas, notário do Santo Ofício, é enviado ao termo de Torres Novas a saber do tal Simão Escudeiro, avô do habilitante e manda de lá a seguinte carta ( a ortografia actual é minha, a pontuação continua a ser a do Reverendo):

« Seguindo a ordem de V.Senhoria fui ao lugar da Beselga pelo qual passa uma ribeira e da banda de lá da dita ribeira há umas terras louvadias (?) sitio a que chamam as vargens (?) e tudo é termo desta vila de Torres Novas, porém no dito sitio das vargens (?) não havia vestígios nem achei memória de que houvesse nele casas nenhumas e no dito lugar da Beselga não achei pessoa velha que desse notícia de Simão Escudeiro nem que conhecesse seu neto Manuel Escudeiro da cidade de Lisboa e por ser o lugar da Beselga pequeno e ser a freguesia grande quase légua e meia de distância me informei com os moradores dos lugares mais vizinhos ao dito lugar da Beselga que todos são fregueses da freguesia de Nossa Senhora da Purificação de Assentiz e achei algumas pessoas mais velhas e dignas de crédito que conheceram muito bem a Simão Escudeiro que foi ferreiro no lugar de Minde termo da Vila de Porto de Mós e sabem que foi natural do dito lugar da Beselga e que conheceram a um seu irmão inteiro morador no mesmo lugar da Beselga por nome Filipe Escudeiro oficial de serralheiro a casa do qual vinha muitas vezes o dito Simão Escudeiro e conheceram ao padre Afonso de Torres clérigo que morreu sendo beneficiário em uma igreja da Vila de Tomar também irmão inteiro dos acima nomeados e que esses tiveram mais irmãos de que descendem muitos parentes que há em toda aquela freguesia que inda hoje é o seu sobrenome de Escudeiro e alguns são ricos e houvera cinco ou seis anos que morreu um capitão por nome Manuel Escudeiro que dizem se lhe avaliou o que herdaram seus herdeiros em mais de trinta mil cruzados e há outros pobres que houvera dois anos morreram no mesmo lugar da Beselga que usaram e serviam o oficio de serralheiro e as pessoas com quem tomei informação todas disseram que elas não conheciam ao dito pretendente Manuel Escudeiro e que não sabem se tem alguma fama ou defeito mas que bem conheceram o seu avô Simão Escudeiro que casou no lugar de Minde e serviu o ofício de ferreiro e sabem que era cristão velho e limpo sem fama nem defeito algum e que na mesma forma conheceu seus parentes moradores na dita freguesia sem fama nem defeito mas antes todos limpos dos melhores da dita freguesia é tal os muitos parentes entre os moradores da dita freguesia que poucas vezes sucede se celebrar o sacramento do matrimónio que não haja dispensa entre eles e não será fácil acharem muitas testemunhas que não se declarem parentes do dito Simão Escudeiro suposto muitos sejam fora do quarto grau e as pessoas que achei mais antigas são as seguintes Simão Jorge lavrador do lugar de Assentiz que era parente fora do 4.º grau, António Lopes lavrador do lugar de Fungalvaz, Simão Fernandes lavrador do Casal da Torre não conheceu Simão Escudeiro mas que sempre ouviu dizer era irmão de Filipe Escudeiro a quem ele conheceu, Maria Lopes, Maria Jorge, viúvas, Grácia Fernandes casada segunda vez com Manuel Simões lavrador que todas passam dos oitenta anos, que conheceram ao dito Simão Escudeiro e todas declararam serem parentes; a mim me parece que é limpo o dito Simão Escudeiro pela boa fama que têm os Escudeiros da dita freguesia. V.S. mandará o que for servido.
Torres Novas, dois dias do mês de Novembro de mil setecentos e um anos.
O Notário
Juliam Pereira Cabannas »

Sorte a de Manuel Escudeiro! Afinal o avô de origem desconhecida, que lhe poderia ter derrubado todos os sonhos, nem era judeu, nem mulato nem nada! Gente limpíssima, aquela “do lugarejo “ da Beselga!
E o processo prossegue, depois disto, a toda a velocidade! Com inquirições formais a várias testemunhas em Minde e na Beselga, sediado em casa de Simão Jorge.
Enfim, a ansiada Carta é passada a 26 de Abril de 1702, após o pagamento de 6 426 réis, pois conclui-se que …..ele e os seus ascendentes são legítimos e inteiros cristãos velhos e de limpeza de sangue sem fama nem rumor de alguma infecta nação e não incorreu em alguma infâmia ou pena vil de facto ou de direito, …é solteiro e não tem filho algum … tem a capacidade e é merecedor da ocupação que pretende… e assim o julgo limpo de sangue e o habilito para a ocupação de familiar. (MFM)

Fonte: Processo de Habilitação a Familiar do Santo Ofício de Manuel Escudeiro, Arquivo da T.T: Maço 54, Doc.1154

Mercado da Ribeira-Velha, Lisboa. Museu Nacional do Azulejo.


Desabafo Final: Incomoda-me falar sobre a inquisição. Se é certo que a História não se julga com os olhos de hoje, a crueldade, toda ela, é intemporal. A crueldade de quem se julga dono da verdade e quer transformar os outros à custa do terror, da tortura e da morte, está, infelizmente, muito próxima de nós no tempo, e é nossa contemporânea também, embora hoje “deslocalizada” deste pedaço de antigo centro de decisões que é a Europa. Por enquanto. A natureza humana será (?) assim mesmo e a nossa racionalidade aprendeu muito pouco.
E dado este meu “incómodo” assumo o tom ligeiro que tomou a descrição da presunçosa aventura deste nosso quase conterrâneo. Pois ser Familiar do Santo Ofício era coisa séria, nefasta e nefanda, não era, enfim, coisa bonita de se ser. Nem na  época (Cristo com o seu Mandamento Novo já tinha vindo ao Mundo), nem, muito menos, agora. E é por isso que eu pasmo com a quantidade de gente que, a toda a hora, nos sites e revistas de genealogia e afins, exibe, orgulhosa, os seus antepassados Familiares, quase sempre escondendo a origem social ou, não o fazendo, enaltecendo a capacidade de ascensão social do avoengo! Enfim, tal como a crueldade, a vaidade é ilimitada e de todos os tempos!
É claro que também não concordo que se arrenegue parente algum. Família é família, familiar que seja, o Senhor lhe perdoará já que a mim, pobre pecadora, me custa muito. Apesar do seu “defeito” reconheço que Manuel Escudeiro e eu partilhamos um “enésimosinho”  de ADN, sou descendente (através de Augusto Pereira da Motta) de Filipe Escudeiro (1588-1646) e também de  Oriana Escudeira (falecida em 1641 em Fungalvaz), ambos irmãos do tal Simão que a inquisição averiguou. Eles e outros mais (outro irmão Ignácio casa em 1611 com Maria de Sousa do Casal da Velida, digam lá se isto não anda também tudo ligado?), filhos do casal Simão Escudeiro e Maria Jorge, moradores na Beselga no sec.XVI onde ele se dedicava a trabalhar o ferro (ferreiro, serralheiro ou mesmo escudeiro, donde lhe teria vindo provavelmente o nome), ofício que passou aos descendentes, existindo ainda há pouco tempo serralheiros em Ourém com este apelido.(MFM)



31 de janeiro de 2014

O País de Opereta e a Ribeira da Beselga

Quando eu estava no colégio tive um professor de físico-química absolutamente singular.
E ocorre-me singular por ser o que ele era - único - e por ser termo muito do século XIX. Pois, de facto, aquela criatura única nunca deveria ter passado de novecentos. No início dos anos setenta do século passado (o que para aqui já vai de séculos!) o homem era totalmente anacrónico.

Ele tinha consciência disso e verbalizava-o. Se verbalizava! O seu discurso irritado de assento beirão incorporava todo o estertor de um mundo à beira do fim. A todo o momento lhe saíam da boca impropérios sobre o estado do mundo e anátemas sobre o futuro que, com a Graça de Deus, dizia ele, não viveria mas (aqui deixava adivinhar um prazer de perversa vingançazinha) nós sim.

Professor no colégio há várias décadas, dele contavam-se muitas histórias provenientes do seu feitio irascível, nervoso, apressado e cioso das suas coisas, e do seu muito particular entendimento da didáctica da sua disciplina que mantinha os alunos afastados do contacto com materiais, equipamentos e experiências, mesmo nas chamadas aulas práticas, com o argumento que “não sabendo, estragavam”.
Mas não são essas anedotas que me têm feito ultimamente lembrar dele e trazê-lo agora aqui. São a sua visão política e as angústias existenciais que o atormentavam e que ele deu a conhecer a um grupo de miúdas incapazes de compreenderem a honra que lhes estava a ser manifestada.

A minha terá sido das últimas turmas que leccionou e que já pertencia a uma geração perdida. 
Veiga Simão estava no governo, a escolaridade já tinha sido alargada além da primária, havia a telescola, já não tínhamos latim e não eram necessárias notas altíssimas para dispensarmos da oral e entrarmos na Universidade. Estava instalado o laxismo. O pobre achava perverso todo este estado de coisas, aliado a muitos outros que enumerava e que já saíam da esfera da educação, e atirava-no-los à cara sempre que não sabíamos acertar uma equação química ou calcular a distância ou a força ou lá o que fosse fisicamente exigível.
Como éramos realmente más alunas, sobretudo na disciplina dele e não quero dizer que fosse exactamente culpa sua, eram mais as ocasiões em que o erro e a omissão surgiam do que o contrário, pelo que também eram frequentes as ocasiões em que tínhamos de ouvir a sua verborreia acerca dos verdadeiros culpados da nossa santa ignorância (este “santa”, também usado por ele, era adjectivo muito em moda no colégio para classificar a nossa ausência de sabedoria, coisa de notar pois até nem se tratava de um colégio religioso, talvez por isso mesmo).

Por essa época eu escrevinhava. Tinham-me dito, Deus lhes perdoe que já lá estão, que seria escritora e eu tirava apontamentos para memória futura sempre que achava  assunto "interessante". A prosápia não me envergonha agora porque tomáramos todos nós, quando temos catorze anos, ter tido apenas esse pecadilho para confessar. Pois, dizia eu que escrevia e pareceram-me aquelas aulas, aquele professor e sobretudo o que ele dizia (na minha juvenil perspectiva de verdadeira santa e abençoada ignorância) dignos de serem registados pela estranheza, pelo absurdo e até pelo ridículo. E fi-lo. Os cadernos pautados de capa de cartolina vermelha da disciplina passaram a ter as últimas folhas cheias de transcrições das exaltações, expressões, elucubrações e todas as indignações do meu velho professor de Físico-química.

E, dos anos lectivos com aulas de Física às segundas, quartas e sextas e de Química às terças, quintas e sábados, inexoravelmente às oito horas da manhã, resultaram muitos e muitos cadernos que, além dos apontamentos e cópias dos desenhos das experiências que o professor punha no quadro, continham, nas últimas folhas, frases capazes de construírem um tratado sobre o alter ego de um velho, deslocado no tempo, reaccionário às mudanças vigentes e premonitório das desgraças futuras.

Esses cadernos, guardados amarrados juntos num cordel, seguiram o caminho dos livros escolares usados, de todos os filhos. Encontrei-os, anos mais tarde, dentro de uma arca, ainda com o cordel à volta, transformados em pasta, depois de um dos abraços que, num Inverno qualquer, a Ribeira da Beselga se lembrou de ir dar à nossa casa.
Perdeu-se assim o registo fidedigno que me permitiria, hoje,exibir o olhar sofrido e profético de quem testemunhou a queda do mundo certo e acertado em que nasceu, e vaticinou este nosso triste presente, órfão e tresmalhado.
Quem sabe se não estaria ali a fonte onde iria beber a obra da tal (mal)fadada escritora. Não alcançámos, assim, a imortalidade, nem ele nem eu. Não o quiseram as nereidas das torrentes invernosas da Beselga!

Mas, não se perdeu a mensagem. Pelo contrário, alcançou o seu fim. A figura ridícula e as palavras risíveis, presenciadas por adolescentes, foram, as segundas, finalmente entendidas e ele, o homenzinho grotesco, transformou-se na figura tragicamente simpática que inspirou este texto.
E só lamento não ter o talento necessário para vos fazer ver o que ficará para sempre cunhado na minha memória: a imagem daquele personagem vestido de escuro, magro e tenso, com papéis revolvidos nas mãos nervosas, imparável em movimentos entre o quadro e a secretária enquanto a sua garganta revoltada concluía a longa dissertação –Somos, pois, um país de opereta mas o que aí vem, - e dirigia-se à janela que abria – o que aí vem,- e apontava Rua da Graça abaixo, e nós levantava-mo-nos, curiosas, para lhe acompanhar o olhar– vai ser pior, muito pior, incomparavelmente pior! (MFM)



A janela "do futuro" era a da segunda sacada à direita, no 1.º andar.

A exacta sala de aula com a exacta mobília. A janela referida ficava ao lado da secretária que se vê à direita.Fotografia tirada por ocasião de visita de antigos alunos e retirada  daqui

13 de janeiro de 2014

150 Porto da Lage 150

Em 7 de Junho de 1864 ficou completa a linha do Norte entre Lisboa e a margem esquerda do rio Douro (Gaia).
Completam-se portanto este ano - 2014 - 150 anos que os comboios e Porto da Lage passaram a ter uma vida em comum.

O horário entre Santa Apolónia e Gaia estabelecia, à data, quatro comboios diários, dois dos quais correios.
Infelizmente não sabemos quando e se paravam em Porto da Lage.


 



Além dos votos de que mais alguém, além deste modesto blog, se lembre de comemorar este acontecimento, desejo a todos os que nos acompanham um 
                                                                       
                                                                     BOM ANO NOVO.

23 de dezembro de 2013

nevou na nossa aldeia





Encontrei por acaso, como se encontra tudo nesta vida, este vídeo no youtube. Não conheço o autor, Pedro Santos segundo reza o filme, nem tenho qualquer referência dele. Daí a impossibilidade de o contactar e esta reprodução ser não autorizada. As minhas desculpas ao autor e as minhas felicitações e gratidão pelo documento extraordinário que criou. Não é habitual cair neve em PL, menos ainda será haver registos disso. Para quem, como eu, reclama pela inexistência e destruição de indícios do passado é consolador ver que, mesmo no passado recente, já há quem arquive situações inéditas. É também muito bom saber que, também, há quem olhe para a "nossa aldeia" no presente. Será um privilégio para este Blog dar a conhecer essas pessoas. (MFM)

E, como é Natal, cá vos fica como prenda este roubo fantástico "nevou na nossa aldeia"  publicado em 28.11.2010 por Pedro Santos.
À falta de banda sonora sugiro que seja visto com o  eterno Bach como fundo.

Bom Natal




1 de dezembro de 2013

Pai de Diogo Alvares de Sousa

Em 1650  Diogo Álvares de Sousa forma-se em Cânones na Universidade de Coimbra. Nascera e crescera no seu casal ou quinta da Velida situada na Ribeira da Beselga, freguesia de Sta Maria Madalena, termo de Thomar. Vivera à lei da nobreza, por suas fazendas, com muitos criados e carruagem... (1)
Foi, portanto, um habitante do território onde hoje se localiza, também, Porto da Lage. Não pertencendo à nobreza, os rendimentos da sua família permitem-lhe, no entanto,  viver como tal. Permitem-lhe, também, licenciar-se em Leis na Universidade, não se sabendo se terá sido o amor ao estudo ou a possibilidade de alcançar, no futuro, novo modo de vida, o que o terá levado a Coimbra. Pois a verdade é que não terá exercido profissão resultante do seu diploma e se terá deixado ficar pelas suas quintas (a mulher herda a quinta da Matta onde os dois moram quando morrem), a viver de "suas fazendas".
As imagens abaixo são retiradas da lista de matriculados do seu curso, percebe-se o seu nome e entende-se que se segue o nome do pai: ... filho de .....Sousa. Será Diogo? Domingos? Pedro?
Alguém me ajuda a "descodificar" o nome do sr. Sousa, pai de Diogo Álvares de Sousa?
Com esse dado poderei, eventualmente, descobrir "portalegenses" (e as suas histórias) ainda mais antigos. 









(1) testemunhos, constantes na habilitação a familiar do santo ofício de seu neto Manuel Pereira de Sousa, em 1707, destinados a obter "informação de limpeza de sangue e geração de Manuel Pereira de Sousa natural e morador na Ribeira da Beselga, freguesia de Sta Maria Madalena, termo da Villa de Thomar, filho de Manuel Pereira de Sousa e neto paterno de Diogo Álvares de Sousa".

25 de outubro de 2013

Em Porto da Lage Houve Arraial com Quermesse


       

Agosto mês de Augusto e não só. Foi o mês de uma grande festança em Porto da Lage que deu brado.

Oh geração de 50! Imaginem o larguinho em frente ao armazém da CUF.

No centro a quermesse, ícone das festas de arraial, com balcão hexagonal, prateleiras no centro e um varejão de eucalipto no centro onde flutuava o estandarte do Grémio de Porto da Lage.

Para a tornar mais atractiva, era revestida com papel de várias cores e ramos de arbustos verdes nascidos nos matos.
Fora seu construtor o carpinteiro portalegense, bisneto de Manuel Sousa Rosa e membro da comissão de festas.
 Estamos no ano da graça de Jesus Nazareno 1936. Pelo recinto, cordéis estendidos pelas paredes com bandeirinhas de papel de cor. A iluminação, eléctrica, provinda de algumas lâmpadas, vinha do gerador a vapor da fábrica do álcool.
A comissão de festas reunia todos os jovens, rapazes e raparigas da terra, estimulados pelo promovedor do evento e presidente do Grémio de Porto da Lage. As prateleiras da quermesse estavam modestamente fornecidas de objectos oferecidos, resultantes da profícua acção angariante das meninas da comissão, que os sorteavam por rifas vendidas com um sorriso nos lábios, aos forasteiros que se aproximavam; alguma doceira vinda de algures, expunha para venda sobre um pequeno tabuleiro, pirolitos de açúcar em ponto enrolados em papel espetados num palito e bolos de farinha de trigo, com pouco açúcar, condimentados com erva doce e de formatos diversos; num palanquim, sobre a cobertura da levada, alguns elementos da Filarmónica de Paialvo, dava um concerto musical com trechos de autores desconhecidos.
Não constou que festa tenha sido " rija ". Não houve fogo preso fascinante nem corrida de bicicletas "desportivante" nem as celebérrimas fogaças tão apreciadas nestes tempos de tão grandes carências. As netas do casal Sousa Rosa não estiveram dispostas a ceder das suas despensas o que quer que fosse. O pão de trigo, o chouriço magro, o presunto, o vinho, o queijo de ovelha, ovos cozidos e, sobretudo, alguma galinha velha e gorda, corada no forno da cozedura do pão, eram manjares de alto valor e sabor aprazível e lá em casa havia quem as almejasse. Para receitas monetárias que bastassem as das rifas da quermesse. (Ilídio Mota Teixeira)


Bailarico Português, Roque Gameiro
















24 de outubro de 2013

Flagrantes da vida real I

                                                            Os Sousa Rosa

O nosso bem-aventurado, próximo antepassado, bisavô Manuel Sousa Rosa e a nossa, também não menos famosa e afanosa, bisavó Ana Jesus Calçada, deixaram nestas terras que pisaram, que regaram com o suor do rosto e que nos legaram, "o modesto número" de 36 netos, dos quais 10 casaram entre si. Ei-los:
António Sousa Rosa (Sobreiras)
Soledade Rosa Mota (Porto da Lage)
Francisco Sousa Rosa (Sobreiras)
Maria Rosa Escudeiro (Porto da Lage)
Augusto Sousa Rosa (Porto da Lage)
Maria Rosa Mota (Porto da Lage)
Manuel Pereira Mota (Porto da Lage)
Lúcia Rosa Mota (Quinta da Belida)
António Rosa Mota (Quinta da Belida)
Ana Rosa Mota (Porto da Lage)

Nota: Manuel Pereira Mota ou Manuel Augusto Mota, Maria Rosa Mota, Soledade Rosa Mota e Ana Rosa Mota eram irmãos, filhos de Augusto Pereira Mota e Maria José Sousa Rosa.
Deste concerto de uniões houve uma só senhora e nove varões que por aqui viveram uma parte das suas vidas, até que emigraram para outros lugares onde as oportunidades de angariar sustento de vida são possíveis. Somente dois se mantiveram em Porto da Lage. (Ilídio Mota Teixeira)


Soledade de Sousa Rosa (1861, 1947) filha de Manuel de Sousa Rosa e avó de
Ilidio Mota Teixeira.

23 de outubro de 2013

Porto da Lage Antes da Chegada do Comboio



Esta despretensioso informação é possível, devido à investigação e publicação na internet pela Dra. Filomena Mota, ilustre descendente dos nossos avós Manuel Sousa Rosa e Ana Calçada, cujos filhos iniciaram o povoamento do Porto da Lage.
Porto da Lage é um sítio nas margens da Ribeira da Beselga, atravessado pela estrada real, que vinha de Santarém, passava por Lagar, Ponte do Alviela, Almonda, Golegã, Lamarosa, Paialvo, atravessava a ribeira por uma ponte de madeira em Porto da Lage e continuava por Fungalvaz, Chão de Maçãs, Rio de Couros e seguia para Coimbra.
O local era assinalado pela construção de um açude no leito da ribeira com uma levada e uma Azenha, motas e muros de consolidação dos terrenos da várzea, por uma extensão considerável.
Estas construções, como alguns séculos de existência, ainda hoje são bem visíveis o que denota a sua boa construção.
Outras edificações existiram: duas casas muito modestas, no troço da antiga estrada real, hoje estrada que vai de Porto da Lage à Madalena Igreja; uma casa senhorial à beira da estrada, próxima da Azenha. Esta casa foi demolida nas décadas de 1970 ou 1980.
No século XVIII, assim aparenta a sua arquitectura, é edificada uma estalagem, que ainda hoje existe, na quinta de Porto da Lage, pelo seu proprietário. Prestava assistência às diligências e viajantes que transitavam pela estrada real.
A passagem da via férrea do Norte e a edificação da estação ferroviária, trouxeram total alteração ao sitio com a construção de armazéns para recepção e expedição de mercadorias consignadas às fábricas instaladas em Tomar, durante último quartel do século XIX. Deste mesmo período são quatro habitações, uma das quais já desaparecida. Três subsistem.
Pelos anos das duas primeiras décadas do século XX, os netos da Quinta da Belida e gentes das povoações vizinhas aqui vieram erigir os seus lares e construir as suas acções económicas.(Ilídio Mota Teixeira)

Desenho de Domingos Sequeira (1768, 1837)



 

22 de outubro de 2013

A Vaquinha da Prima Marquinhas

Manhã de Primavera, 1912, José Malhoa


A prima Marquinhas tinha uma vaquinha, excelente exemplar produtora de leite, que aumentava a produção de acordo com a procura no mercado. O método era simples: a prima Marquinhas fazia soar o aviso, a Boneca, assim se chamava a vaquinha, bebia um goles de água que fazia atravessar as glândulas do úbere… e saíam branquinhas pelas tetas e caíam no bojo do tarro, mais puros que a água do poço. Quando os consumidores sentiam que o lácteo tinha um sabor mais diluído, perguntavam à prima Marquinhas: que bebeu a sua vaquinha para dar um leite tão digestivo.? Logo ela respondia convicta e sem hesitação: ela, a vaquinha, tem uma teta inflamada…
Assim se ficou a saber qual era a terapia para a inflamação das tetas das vacas e a técnica produtiva de leite. (Ilídio Mota Teixeira)

21 de outubro de 2013

A Prima Marquinhas e o Arroz Doce



Um membro da família, que era sobrinho, casou. A mãe e as tias haviam preparado as sobremesas: pão de ló e arroz doce. Os cozinhados com os produtos da capoeira, do ovil ou do cabril, eram da responsabilidade duma conceituada cozinheira vinda dos arredores.
Factos consumados, almoço servido, ingerido e cada qual serviu-se do pão de ló e do arroz doce decorado com canela, dispersos pela mesa em pequenos pratos. Toda a gente lhe prestou a devida homenagem. Os bis e os tris não precisam ser rogados. A mãe do noivo, como anfitriã e briosa em receber os seus convidados, deu conta que os pratos de arroz doce que se haviam preparado, não estavam todos na mesa. Há que traze-los. Na cozinha não estão. Abre a porta dum quarto e sente o aroma da canela. Espreita por baixo da cama que lá estava e...eureka! Quem os levou para lá, para o quarto dos noivos? Tinha sido a prima Marquinhas com a sua tão característica e obstinada ideia da poupança demasiada ou, talvez, para proporcionar aos noivos, antes de adormecerem, noites plenas de doçuras.
O arroz doce continuou, na mira da prima Marquinhas, a ser um manjar só para degustar. Para satisfazer o apetite, havia outras coisas mais económicas, tais como: batatas, feijão, couves mas com pouco azeite. Uns anos mais tarde, depois do casamento do sobrinho, aconteceu um episodio de pouca relevância mas que foi aproveitado durante alguns anos para complemento de apartes de alguns dichotes.
A prima Marquinhas festejava um aniversario na companhia duma irmã, duma cunhada, filho, sobrinhos e primos, numa estancia balnear onde foram veranear durante 15 dias. Depois da simples refeição do almoço, a prima Mariquinhas coloca na mesa uns tantos pratos com arroz doce e deles serve, com conto e medida, os participantes na refeição. Não houve os "parabéns a você" porque no meio social em que se vivia, a cantiga era desconhecida, a não ser os fados do Estêvão Amarante ou as cantigas da Mirita Casimiro. Os pratos onde o arroz foi servido, vão ficando vazios. A prima Marquinhas que tinha sentado a seu lado o sobrinho mais novo, pergunta-lhe em voz audível:
 - Queres mais?
E de imediato, em voz baixa:
-  Diz que não, diz que não, diz que não!
Continuando e memorizar a nossa querida prima e tia Marquinhas, que há muitos anos está com Deus, como era seu ardente desejo, e que me levava na charrete quando eu ia a pé com minha mãe a caminho de Cem Soldos para assistirmos à missa.
Não é uma memória de enaltecimento. É uma memória para caracterizar. E... assim, quando algum mendigo batia ao portão da casa e lhe parecia que era pessoa ainda com bastante capacidade para o trabalho, entregava-lhe uma vassoura rústica (vassoura feita de galhos) e mandava-o varrer todo o pátio. Depois do trabalho feito e inspeccionado, dava-lhe a moeda ou o  óbolo.(Ilídio Mota Teixeira)


As Contas, de José de Brito (1855-1946)



* Era minha tia-avó, irmã da outra,  e igualmente bem viva e muito presente na minha breve passagem por Porto da Lage, em criança.

É verdade tudo o que Ilídio diz, aliás, creio que não haverá na memória de todos os maiores de cinquenta anos, que alguma vez privaram com a tia, prima ou apenas sª D. Maria Mota, ser menos controverso do que a própria. Na sua definição entram unanimemente dois conceitos (as palavras variarão consoante a literacia e a delicadeza de quem as profere): parcimónia e fervor religioso.

Fui, como todos, vítima dos seus interrogatórios acerca do cumprimento das obrigações do culto católico, as confissões e comunhões em dia, as orações ao deitar e levantar, os jejuns dos dias obrigatórios, tudo era questionado quando não era observado ou sabido de fonte segura. Vi uma vez um congénere meu (também sobrinho-neto) rapaz espigadote, de cabelos compridos e calças à boca-de-sino, e em quem todas estes assuntos estavam tão presentes como a água no deserto, ser torturado (não, não ponho aspas, foi mesmo) por, às cinco da tarde de um domingo ter confessado (coitado, foi-lhe perguntado e era um inocente) “ainda” não ter ido à missa!

As hipóteses de “ainda” recuperar do delito foram-lhe apresentadas num raio de vinte quilómetros, a tia sabia os horários de todas as missas nos três concelhos limítrofes! É verdade que os transportes eram inexistentes, o que pouco importava pois o menino tinha boas pernas, ainda faltavam duas horas para a última missa, o sacrifício era bem visto aos olhos do Senhor e Ele havia de o ajudar!

Valeu ao pobre não se pôr a caminho de nenhures (ela dispunha-se a acompanhá-lo) ao fim de tarde de rigoroso domingo de Inverno, o meu avô, que, não obstante não ser menos rígido que a irmã na observância dos ritos religiosos, era pessoa prática e razoável – Chega Maria, já não há nada a fazer! O rapaz terá prometido não faltar a mais nenhuma missa o resto da sua vida (acredito que, pelo menos a uma foi, agradecer a Deus por ter sobrevivido) e deixaram-no ir. Mais tarde partiu para os Estados Unidos. Ainda hoje lá está. Penso que este episódio não terá nada a ver com isso.

Mas não são só estas as recordações que tenho da tia, melhor, estas são as minoritárias.

Recordo a ternura que sempre me demonstrou. Quando a avó adoecia e a tia Alice não se encontrava por perto, era ela que atravessava, de noite, a pontesinha de madeira e a horta, escuras, de lanterna na mão, e me vinha aconchegar à cama. Me dava um beijo de boa noite e me recomendava ao meu anjo da guarda. De manhã quando acordava, já lá a encontrava em casa, na cozinha, à minha espera de caneca de leite com café de cevada e pão com manteiga na mesa. Quando a garganta ou as dores nas pernas me afligiam, impunha-se o seu remédio de eleição: algodão encharcado em álcool! Para a primeira, o dito envolto num pano era amarrado ao meu pescoço e, imediatamente, a cabeça enfiada debaixo dos quilogramas dos cobertores de papa, “para não evaporar”. Funcionava “como a graça de Deus”. Quanto às pernas, friccionava-mas com toda a força com o bendito álcool, tapava-as, também de repente, com as calças de flanela do pijama e ala, cobertores de papa para cima! Parece que o álcool, os cobertores de papa e a rapidez de movimentos, eram, para a tia, o segredo da cura!

Duas ou três vezes fui mesmo “transferida” para casa da tia. E aí a coisa era bem mais divertida. Não havia escadas e a casa cheirava a cera e a flores. E lá existia a Anunciação, sua companheira de muitos anos, pessoa conversadora e simples, que limitava os rigores de culto ao mínimo exigido pela patroa, a quem contrariava e confrontava sem grandes cerimónias num tom de voz meio gritante a que a tia respondia sempre calmamente, baixinho. A disparidade do tom de vozes, aliado ao facto da tia, como todos os Mota, ser surda, tornava aqueles diálogos deliciosos de ouvir. Agora que penso nisso, recordo que assim como eram (e são, incluo-me) surdos, os Mota falavam baixo, com calma, sem exaltações mesmo quando indignados ou até encolerizados.

Quando fiz o meu exame da 4.ª classe, em Tomar na escola da Várzea Grande, foi também a tia que me acompanhou. Lá fomos, de carro com motorista, cortesia das ligações familiares da tia, enquanto as minhas colegas iam de camioneta da carreira. Recordo-me das suas palavas de incentivo antes de entrar na sala, eu deveria, claro, em primeiro lugar “confiar em Deus” mas também lembrar-me que “era muito inteligente”, portanto tudo correria bem.

Poucos elogios calaram tão fundo em mim como este, em toda a minha vida nunca me esqueci. Assim como sempre me lembrarei da merenda que a tia  me trouxe depois e que comi sentada num banco de pedra no recreio da escola, pão-de-leite com fiambre, um verdadeiro luxo à época.
Terá sido esta uma das últimas vezes que privei com ela. Depois de sair de PL via-a esporadicamente. Já adulta, visitei-a quando estava muito doente, dias antes de falecer. Voltei então a entrar na casa dos meus encantos de criança, o cheiro ainda lá estava à minha espera. E recordo a tia a dormir, com a cabeça descansada numa bela almofada branca bordejada com largas rendas engomadas, a face visível muito rosada e um enorme sorriso que só podia ser de felicidade. O mesmo sorriso que vi na cara do meu avô no momento que partiu.  De certeza que foram, os dois, para onde sempre aspiraram ir. (MFM)

17 de outubro de 2013

Esta água foi nascer naquela encosta do monte, para vir dar de beber a quem passar pela fonte



Dia sombrio, de Natal de 1950. O ilustre médico vereador da Câmara Municipal de Tomar, marcou este dia para a inauguração da obra pública de abastecimento de água mineral a Porto da Lage, sua muito bem querida aldeia natal. Eram convidados dois membros autárquicos, o presidente da junta da freguesia da Madalena e seus adjuntos, o pároco da mesma freguesia e mais algum elemento local que colaborara na obra. Ao grupo de convidados, juntou-se uma parte da população e um reduzido número de pessoas que tinham vindo comemorar o Natal.

.....implantada em terreno público, contíguo à ponte que atravessa a Ribeira....


A operação inauguração começa na fonte implantada em terreno público, contíguo à ponte que atravessa a Ribeira. O pároco é convidados a iniciar a cerimónia. Retira duma maleta, que o auxiliar transporta, os objectos necessários que compõem o ritual da bênção com água benta. Este cumprido, o promotor da obra acciona a torneira e a água esparge - se com abundância no fundo da pia.
....agradece aos beneméritos que não estão
presentes ...


Em seguida, com umas breves palavras, agradece aos beneméritos, que não estão presentes, a cedência do uso da água que vem lá de cima da mina do monte para dar de beber a quem passar pela fonte.
....A pia do fontanário destinada aos animais foi transformada
em vaso onde foi  plantado um salgueiro...
 Segue-se a inauguração do fontanário que está na berma da estrada, ao lado da Levada, no larguinho do armazém da CUF. É uma obra ligada à da fonte da ponte. Tem em um dos lados uma torneira e um apoio para as vasilhas e no lado oposto uma torneira e uma pia para os animais beberem.
Muito bem! Finalmente os animais são bem tratados. Beberão água mineral de boa qualidade, só que, há um "busílis", têm que pisar terreno privado e o dono veio reclamar o abuso ao promotor e convidados.
Grosseria autêntica, imperdoável.


Realizada a inauguração e incidente ultrapassado, segue-se a reunião no Grémio, sala de visitas incontornável e sempre franqueada a todos os visitantes desta aldeia familiar.
O vereador e promotor dirige mais umas palavras à assistência, refere-se com bastante mágoa ao incidente do fontanário e termina com um agradecimento à vinda dos convidados.



.....A água da mina do tempo dos mouros era e ainda é
de excelente qualidade...
O Presidente da junta da freguesia que estava entre a assistência, espera pela última palavra do orador e, pegando numa laranja de um prato que estava sobre a mesa de pingue-pongue, lança-a ao ar várias vezes como quem está a calcular o seu peso e qualidade e anuncia, em jeito de pregão: vai falar o Senhor presidente da Junta de Freguesia!
E disse umas tantas palavras soltas, olhando sempre para a laranja que tinha na mão.

A pia do fontanário destinada aos animais foi transformada em vaso onde foi plantado um salgueiro e o abastecimento da água mineral aos fontanários das duas povoações, Porto da Lage e Paço da Comenda, foi feito durante cerca de 30 anos.

A conduta em cano de fibrocimento foi-se deteriorando até que ficou inutilizado. A água da mina do tempo dos Mouros, como se dizia, era e ainda é de excelente qualidade.(Ilídio Mota Teixeira)





16 de outubro de 2013

O Luisinho das Flores



Espantando os pardais da seara, José Malhoa


Pelos anos de 1930 e 1940, era frequente aparecerem em Porto da Lage pequenos grupos nómadas, vagabundos, estropiados, vadios, indigentes. Os ciganos erguiam as tendas na margem da Ribeira, estacionavam a carroça, apascentavam os animais na relva da Ribeira e, por ali ficavam durante alguns dias. Os vagabundos aproveitavam o que o abrigo lhes oferecia. Os pedintes esmolavam de porta em porta, anunciando-se com rezas e lamúrias. Os vagabundos vagueavam durante o dia e desapareciam durante a noite.

Roque Gameiro, Ilustração das Pupilas do
Senhor Reitor
Desta gente anónima, sem eira nem beira, havia uma figura que se destacava pelas suas qualidades artísticas e conduta social. É o Luisinho das flores. Tinha 20 e poucos anos, estatura média, franzino, semblante afável e levemente formoso. Não pedia coisa alguma. Vendia os seus méritos de artista nato. Tocava maravilhosamente músicas populares com um pífaro feito de folha de Flandres, mais conhecido como pífaro de lata que era muito vulgarmente vendido em qualquer feira anual. Exibia-se a pedido de qualquer pessoa cobrando-se de uma moeda de 50 centavos em níquel. À sua aptidão natural para a harmonia dos sons, juntava-se a de esculpir em papel de cor as pétalas de uma flor, uma rosa ou um cravo, formava-a sem qualquer ferramenta de corte. Usava as unhas dos dedos das mãos. Pelo mesmo preço da tocata a solo, vendia a flor. Foi esta capacidade artística que lhe valeu o cognome, das flores. O diminutivo vinha da sua pouca idade e aparência física.



O Luisinho das flores, em um dia sem data registada, deixou de aparecer assim como a "velha do chá", o ex- soldado gaseado da guerra 14 e mesmo os ciganos. Ficaram na memória de alguém, para os bem recordar..(Ilídio Mota Teixeira).



O Emigrante, José Malhoa

15 de outubro de 2013

A Velha do Chá




Pelos anos finais de 1930 e alguns de 1940*, aparecia em Porto da Lage uma senhora, de quem não se sabia a idade mas que não aparentava ser idosa. Vinha por períodos curtos com uma pequena trouxa à cabeça, de aspecto andrajoso e refugiava-se em qualquer recanto que lhe parecesse mais abrigado. De noite, acendia uma pequena fogueira com pequenos garavetos para se acompanhar e aquecer. Ali estava sentada, espevitando a pequena fogueira, balbuciando palavras imperceptíveis. Durante o dia mantinha-se no mesmo local, na mesma posição, a cozinhar, não se sabia o quê, em pequenos recipientes recolhidos de algum lado.
A boa gente de Porto da Lage conhecia-a por "velha do chá", baptismo que terá sido sugerido pelo chás variados que ela preparava e bebia.
A pobre senhora não importunava ninguém a esmolar. Quando se socorria de um auxílio, era sempre como um empréstimo; era um ovo, uma colher de açúcar, uma chávena de arroz. Quando se dirigia às pessoas para contrair empréstimo, usava de palavras e tom de voz que acreditassem o favor. Se não era atendida no seu pedido, que acontecia com frequência, lastimava-se com palavras de resignação.
Nestas tristes condições, esta pobre senhora por aqui viveu, vagabundando, durante alguns anos. Desconhecia-se a sua origem e a identidade. Não terá sido uma vagabunda qualquer. A sua fisionomia ainda delicada, comportamento e modo de se expressar, denunciavam alguma educação cuidada.
A história desta mulher fica por contar. É desconhecida. Seria dramática? Desditosa ou simplesmente uma vagabunda?(Ilídio Mota Teixeira)

As Papas, 1898, José Malhoa, 

* Ainda me lembro de a ver de pés descalços e pernas nuas, envolta em sacas de sarapilheira, cerca de 1966.(MFM)

14 de outubro de 2013

Flagrantes da Vida Real




A Taberna Vendia Leite à Medida








É verdade!… A mui antiga taberna da velhinha estalagem da Quinta de Porto da Lage, oferecia para venda duas bebidas, cada uma delas a mais antagónica: vinho tinto da região e leite mungido das vacas estabulada no pátio.
Os fregueses são diferentes mas são atendidos no mesmo balcão já muito negro, queimado pelo tempo e pelo vinho nele entornado ao longo de tantos anos. O tarro com leite ordenhado na tarde está no chão, debaixo do mesmo balcão, juntamente com garrafões de vinho, alguns cheios de vinho e outros vazios. O freguês, infante ou  dona, anuncia o que quer com a vasilha de que vai munido em cima do tal balcão. As medidas legais para servir os dois líquidos, estão juntinhas na prateleira que está por cima da pia de pedra mármore rosado.
O taberneiro, pessoa escolarizada do século XX, foi objectivo: satisfazia e complementava as refeições do dia; para o pequeno almoço da manhã, leite; para almoço e jantar da tarde, vinho da região. (Ilídio Mota Teixeira)

11 de outubro de 2013

O Xico Pirum




Diariamente  o Xico Santos, mais conhecido como Xico Pirum, guiava uma junta de vacas atreladas a uma galera, entre o cabeço da quinta e o forno de tijolo em Porto da Lage. O trabalho que fazia nunca se alterava. Era monótono e tranquilo. Ao ritmo do passo das vacas, partia das instalações do forno de tijolo, atravessava a povoação, a ponte sobre a ribeira, seguia pela frente da escola, do lagar e da casa do lagar. Na curva do moinho deixava a estrada, subia a ladeira da quinta até ao topo onde existira uma pequena casa que fora habitação do rendeiro e depois proprietário da Quinta da Belida. Nesse mesmo sitio havia sido descoberto um banco de argila. Chegando aí, o Xico Pirum escavava a barreira, com o auxílio de uma pá, lançava a argila para cima da galera. Depois era fazer percurso inverso e descarregar o barro junto ao forno. Este constante labor humilde e sem exigências, prolongou-se por tantos anos, quantos durou a cerâmica. Xico Pirum já fora do serviço de boieiro e com idade avançada, contava as suas desventuras com a polícia de trânsito, quando ia entregar alguma encomenda de tijolos a locais distantes e tinha que utilizar as estradas nacionais.
retirado daqui
As distâncias eram de alguns quilómetros, os animais andavam muito devagar e a ida e volta tinham que ser feitas no mesmo dia. Levava-se pasto de folhas de milho e pão de trigo ou de milho com algum conduto; toucinho de porco, petingas fritas, queijo de ovelha, bacalhau salgado e, manjar dos manjares, chouriço de carne magra de porco.
O Xico, contava ele, foi levar uma encomenda de tijolos lá para os lados de Tomar. Levantou-se de madrugada, muito antes do nascer do sol e pôs-se a caminho que, para ele e para as vacas, era bem conhecido. Quando se aproximava a íngreme ladeira de Cem Soldos, senta-se na boleia da galera, atravessa a vara de condução no colo e toca a passar pelas brasas, que o dia ainda vem longe, enquanto as vacas, muito lentamente vão subindo a ladeira; mas, azar dos azares, a Polícia de Trânsito, que não tinha trânsito para vigiar, estava especada no cimo da ladeira. Ora, segundo as leis do antigo Código Nacional das estradas, os boeiros ou condutores de bois, tinham que ir na sua frente e guiá-los  pela soga (corda ou correia atada aos chifres). O Xico vinha sentado atrás e a dormir. Código das estradas infringido, o polícia colhe os elementos contidos na licença camarária de trânsito e prescreve a multa. O Xico, na sua ingenuidade apela ao polícia, com coração de Marquês de Pombal, o perdão da multa, dizendo: as vacas quando chegassem ao topo da subida parariam para mijar, como fazem habitualmente, e eu acordava…e assim chegámos ao final da história das vacas que urinavam sempre que chegavam ao cimo da ladeira de Cem Soldos. O patrão do Xico pagou a multa de 50 escudos e foi-lhe descontando, semanalmente, 5 escudos na féria. O Xico, de peru nada tinha. O epíteto condizia melhor com  a pessoa do polícia que o multou, exibindo enfatuado uma autoridade de que fora investido, cobrando uma multa de valor superior ao valor da féria semanal do autuado. O Xico Pirum, como muitos outros Xicos que guiavam carroças de bois, de leis nada entendia e, muito menos, para que foram legisladas. Para ele, ir sentado na boleia da galera a dormir para compensar o sono interrompido às 4 ou 5 horas da madrugada, não continha qualquer prevaricação. Para o ordenador do serviço, pagar uma multa por um erro que não cometeu, não era justo. O Xico e a família com um pouco menos durante dez semanas não lhe causa qualquer preocupação. Continuará em paz e sossego a conduzir as vacas, a cavar o barro no alto da quinta, a transportá-lo para o forno de tijolo e a madrugar cedo para entregar tijolos em qualquer lugar.(Ilídio Mota Teixeira)



10 de outubro de 2013

Amor a Dar com Pau.




Ai credo!, José Malhoa


Um nosso conterrâneo estava mesmo com uma forte e violenta paixão. Para a acalmar, muniu-se de papel de carta perfumado que comprou na mercearia local, que fora aconselhado por peritos altamente colocados, sentou-se a uma tábua a servir de escrivaninha e, caligrafando o melhor que conseguia, inicia a missiva, transferindo para o papel que lhe vai no mais íntimo da alma e começa: menina Angélica, gosto muito de si…


Figura a Ler, José Malhoa

Mas por mais voltas que desse ao seu conhecimento, não havia meio de encontrar as palavras que exprimissem o seu profundo sentimento até que, na falta das ideias, aí vai: amo-a à cachaporra…e mais  algumas que não constam nos anais das gentes de Porto da Lage.
Também não consta nem constou que a carta tivesse obtido resposta positiva, o que não admirou; oferecer amor à mocada, por mais premissas que ofereça não agrada a qualquer mulher.(Ilídio Mota Teixeira)