Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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19 de junho de 2023

Carlos Reis

O autor deste post é descendente de gente de Porto da Lage. Um seu bisavô, Aurélio de Sousa Vasconcellos, natural das Moreiras Grandes casado com Maria José Motta, das Sobreiras, era em 1895 empregado de telégrafo na estação dos caminhos de ferro de Paialvo, tendo este casal tido numerosos filhos portodalegenses de que alguns leitores deste blog, porventura ainda se lembrarão. Mostrou Freire da Paz vontade em publicar neste blog a sua admiração pelo pintor naturalista português Carlos Reis assim como a possibilidade de este estar ligado à sua família. As imagens são também pertença do autor. (MFM)

Autoretrato de Carlos Reis



Asas, de Carlos Reis. Exposto no Museu do mesmo 
em Torres Novas.
Nasceu Carlos António Rodrigues dos Reis a 21 de Fevereiro de 1863 na Vila de Torres-Novas, na casa que seus pais possuíam na calçada do Amparo, que do sul faz esquina para a travessa do Prior, pertencente à freguesia de Santiago, em cuja matriz foi batizado a 9 de Março do mesmo ano, conforme consta do respetivo assento, lavrado sob o n.°23 fls, 12 do livro batismos nº 24.

Um dos 8 Filhos, dos quais sobreviveram quatro, entre eles duas mulheres, vindo a ser violinista de renome, D. Elisa Reis, a filha de um deles, do João Reis, oficial do Exército. O mestre em questão, Carlos Reis era filho do conceituado cirurgião do partido municipal, o Dr. João Rodrigues dos Reis, nascido em 1806 e falecido em 12 de julho de 1881 e de sua mulher, D. Maria de Jesus Nazaré Reis, ele natural do lugar da Mata, Santa Eufémia, freguesia de Chancelaria, concelho de Torres Novas e ela do Pedrógão, deste mesmo concelho. Foram seus avós paternos, João Rodrigues Cabeleira e Joana do Carmo dos Reis Cabeleira, maternos o Dr. Carlos António dos Reis Godinho, natural da Chancelaria, também deste concelho, que veio a ser médico em Leiria e muitos anos Diretor do Hospital desta cidade, e D. Maria de Jesus Nazaré.

Verifiquei por curiosidade algumas correspondências que muito provavelmente ligam o bisavô da minha avó materna, a Irene de Sousa Vasconcelos nascida em Nisa concelho de Crato por mera casualidade, devido a seu pai, ter sido chefe de estação dos C.F.P no Alentejo, pois a sua vida até casar veio a ser a terra da sua mãe, Maria José Mota, nas Sobreiras, em Tomar. Ela, a minha avó acompanhou o seu avô em criança até à sua última morada, o seu avô paterno João de Sousa Vasconcelos, que incluía o seio da sua família nestas andanças, e nesta altura por já estar muito debilitado, tendo vindo a ficar sepultado no cemitério de Vale de Peso, concelho do Crato. Ele, “o chinês” como era conhecido em Paialvo e arredores, deve ter falecido próximo da data histórica da nossa implantação da República, pelas minhas contas.

Fiquei muito feliz dado ser um grande apreciador da obra do Carlos Reis, quando deduzi que ele deve estar ligado na ascendência familiar ao pintor aqui apresentado, pois o meu antepassado teve um avô, o João Rodrigues Doutor nascido na mesma povoação natal do pintor, Mata, Santa Eufémia, Chancelaria, apenas estando separado cerca de três décadas no nascimento, antes do pai do pintor na mesma povoação da Mata e como se vê, ambos João Rodrigues. Pude também constatar, devido às minhas investigações genealógicas que a avó paterna da minha avó, a mulher do “chinês”, a Soledade Laranjeira era também descendente de Maria Ignácia dos Reis que nasceu nas proximidades.  (Renato Paulo Correia Freire da Paz, 17.06.23) 

João de Sousa Vasconcelos, o Chinês
Soledade Laranjeira

18 de maio de 2023

Carta de Pura e Irrevogável Venda

 

Continuando o assunto do post anterior vejamos agora neste a forma prática da sua aplicação.

                                                                           
Foto retirada da net.

Em 10 de Dezembro de 1918 o presidente da República Sidónio Pais, eleito por sufrágio directo (ele não quer que se esqueçam disso, ora leiam abaixo) passa uma Carta de pura e irrevogável venda, carta que ele proprio assina (verdade que de chancela, ainda bem para ele, que se o fizesse por sua mão, a esta e a milhares iguais a esta, a causa da sua morte quatro dias depois talvez fosse outra e muito antes) a António Augusto Mota *, morador em Porto da Lage, que adquirira em 20 de Abril do mesmo ano um lote de oliveiras que tinham pertencido à Confraria de S.Braz da Freguesia da Madalena, Concelho de Tomar.

Este lote de "oliveiras em terra" consta de dezoito oliveiras (não afianço esta minha contagem, aceito correcções) distribuídas por doze proprietários de terras em outros tantos sitios: Ribeira de Porto da Lage, Paço, Venda do Seixo, Bouça, Bica, Serrada de Galegos, Vale de Prisco, Pereiro, Bregil, Outeiro, Fonte do Mocho e Valinho, que foram vendidas por dezanove escudos e quarenta e um centavos (19$41 para quem ainda se lembra) após arrematação. Esta importância foi paga na Agência do Banco de Portugal em Santarém, a que se acrescentaram 1$18 de contas de contribuição de registo e emolumentos a serem pagos na tesouraria do indicado Concelho, supõe-se que Tomar.

A Carta determina ainda que se transmite na irrevogável e pura venda toda a posse e domínio que nas referidas oliveiras tinha a Corporação para o arrematante, seus herdeiros e sucessores]?] as gozem, possuam e desfrutem como próprias.

Este negócio do Estado é o exemplo do que acontece quando os regimes mudam e, cheios de "generosidade" retiram bens a quem está, no momento, do lado errado da história. Fora assim em Portugal no Liberalismo com os bens das extintas ordens religiosas, os quais foram vendidos ao desbarato a capitalistas pouco preocupados em cultivar terras, deixando de fora quem efectivamente as cultivava. Foi assim no fim da União Soviética e no início de países ex-colónias onde, alimentada com os despojos do passado, nasceu de imediato uma classe de oligarcas, havendo pouco ou nenhum beníficio para as populações. Em Portugal, à nossa medida quase anã, passou-se o mesmo neste micro-mundo da expropriação dos bens religiosos, sendo exemplo uma pequena freguesia rural com incidência especial nas "oliveiras em terra". 

Senão vejamos, expropriadas que foram as oliveiras, por uma razão ideológica que impedia que um "Culto" detivesse bens materiais (os outros acho que deixava) o que poderia o Estado fazer com elas?  A medida que pareceria mais justa seria dá-las aos donos das terras onde estavam plantadas, por um lado porque o mais certo seria as ditas oliveiras lhes terem pertencido algum dia e terem sido oferecidas a um Santo ou Santa em paga de algum milagre e aí o papel do Estado seria o de as restituir ao dono inicial, que fora lesado pela "falsa doutrina" do clero que o enganara, pelo que ajudaria a reparar um erro e ficaria bem visto; por outro lado porque, em boa verdade, o Estado não perdia nada, as oliveiras nunca tinham sido suas e faria uma excelente figura. Esta medida teria  sido uma boa forma de propaganda política.

Mas como é dos livros que o Estado não nasceu para dar nada a ninguém (nem, no caso do nosso, primar pela inteligência), dou de barato que  não desse as oliveiras, mas que as vendesse aos mesmos de que falei atrás. Ninguém se escusaria a comprar, ninguém gosta de ter na sua propriedade algo que não é seu, de lá ver entrar quem não quer quando quer, ninguém, enfim, quer ter problemas escusados. Seria então criada uma tabela de preços por oliveira a que se juntaria a respectiva e competente conta de contribuição de registo e emolumentos, que cada cidadão proprietário de pequenos olivais pagaria todo contente e aliviado. E uma vez que o inventário estava feito, nada disto encareceria o processo, pelo contrário, pois se, suponhamos, fosse fixado 1$50 por oliveira, seriam arracadados na operação 24$00 a que se acrescentariam as taxas, aplicando a cada uma $09, seriam 1$62. O Estado ganharia então 25$62, face ao que ganhou na realidade com a arrematação - 20$59. Multipliquemos agora a diferença por todas as outras "oliveiras em terra" da Freguesia, depois do Concelho, do Pais. Façamos a mesmo exercício para outros bens e produtos análogos..., não, não vale a pena, You got the idea.

Não, o governo da República não tem que me agradecer a assessoria económica e política retroactiva, foi um gosto. Sou uma patriota (republicana até). Mas já não fomos a tempo. A especulação e a ganância já começaram. O Estado tratou de arranjar intermediários que farão o que ele poderia ter feito, mas pelo preço máximo, e perdendo dinheiro com isso.

Intermediários que fizeram o raciocínio simples e sensato que eu fiz. Que concretizaram o negócio ideal,  um investimento limpo e sem riscos - compra-se sabendo haver clientes certos e dispostos a pagar tudo. Só quem não podia é que não se metia nele, só não via quem não queria - O Estado! Será que não via mesmo? (MFM)

PS - Em Junho de 1929 foi publicada a Portaria n.º 6259 que permitia manifestações públicas do culto católico, com procissões e toques de sinos, o que conduziu a que o ministro da guerra Júlio Morais Sarmento comandasse protestos anticlericais sendo a portaria  anulada em Conselho de Ministros (mesmo depois do 28 de Maio a senha anti-clerical continuou mesmo entre ministros). Perante isto, o ministro da Justiça e dos Cultos, Mário de Figueiredo, que tinha publicado a portaria, demitiu-se no que foi acompanhado por Salazar, então ministro das Finanças. 
Mais tarde, a Constituição de 1933  mantém a separação entre Estado e Igreja mas uma revisão constitucional em 1935 já declara que o ensino público fica submetido aos «princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País» e no ano seguinte a Lei de Bases do Ensino estabelece que «em todas as escolas públicas do ensino primário infantil e elementar existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição».
Em 1937 o próprio Salazar começa a negociar a Concordata com a Santa Sé, que será assinada em 7 de Maio de 1940, recusando então que os bens da Igreja que tinham sido nacionalizados em 1911 lhe viessem a ser devolvidos  ou que fosse paga qualquer indemnização pela sua nacionalização. Esta concordata vigorou na íntegra até 2004, com excepção da alteração feita em 1975 sobre a possibilidade do divórcio civil em casamentos católicos. 





*António Augusto Mota nasceu em Porto da Lage em 25 de Junho de 1897 filho de Augusto Pereira da Mota e Maria José de Sousa Rosa, de quem já temos falado neste blog. Foi uma figura social e economicamente proeminente em Porto da Lage, destacando-se a sua ligação à fábrica de Alcool.

Nota: Agradeço a H.C.M. a disponibilização dos documentos acima.

13 de maio de 2023

O Artigo 62.º na Freguesia da Madalena

Nota prévia: A 24 de Dezembro último o Pai Natal (eu, o menino Jesus da minha infância não me atrevo a chamar aqui) pôs uma prenda no sapatinho deste blog (por meio de um comentário) a qual, depois de devidamente desembrulhada, ainda não tinha tido, até hoje, oportunidade de ser mostrada. Cá vai agora, espero que o resultado agrade e aí chegue, à Lapónia ouço dizer, em condições.(MFM)


A 21 de Abril de 1911 o Governo Provisório da República Portuguesa publica a Lei da Separação do Estado e das Igrejas. Definia esta nos seus primeiros artigos os principios  da liberdade de consciência e liberdade religiosa para todos os cidadãos, determinava o fim do Catolicismo como religião oficial do Estado, explicitando que "A República não reconhece, não subsidia nem custeia culto algum" colocando em pé de igualdade todos os credos e todas as igrejas. Apartava, deste modo, a organização do Estado e a política do campo de atuação próprio das organizações religiosas, quaisquer que elas fossem. 
 Os louváveis avanços civilizacionais preconizados  nos principios da Lei  acabaram por não ter os significado e resultado relevantes que mereceriam devido ao restanto articulado daquela e, sobretudo, à sua execução, que conduziram à  despropositada, selvagem e carnicenta perseguição de que a Igreja Católica foi alvo depois.
Pois que esta medida de Afonso Costa, suportada no Republicanismo anti-clerical que  culpava a influência da Igreja Católica de todos os males da vida social portuguesa, visando  assim restringi-la, acabou por não trazer nenhum bem nem à República nem, como é costume, a Portugal. A proibição do ensino religioso a um povo maioritariamente católico assim como das ordens religiosas, que na época se dedicavam sobretudo à providência social a um povo também faminto, a fiscalização do culto religioso (o culto público necessitava de prévia autorização, foram proibidos o uso de hábitos ou vestes talares fora dos templos, bem como as procissões religiosas e o toque de sinos nas igrejas), a nacionalização de todos os bens e rendimentos da Igreja deram origem ao descontentamento de grande parte do país. 
A esta decisão peregrina o partido no poder  juntou outras duas de igual vulto, mandar milhares de jovens camponeses analfabetos serem assassinados na Flandres e não atender as reivindicações e reprimir violentamente as lutas do operariado urbano. Foram estas, em suma, cumulativamente, as três principais razões que levaram o movimento republicano a perder toda a sua base de apoio e a tornar bem vindo o regime que lhe sucedeu.
Mas não é para discutir a bondade ou falta dela da primeira República que este post se destina. Desculpem o desvio da conversa. Voltemos à  Lei da Separação do Estado e das Igrejas e a um artigo da mesma que está relacionado, já adivinharam claro, com o que a dita prenda nos trouxe. Trata-se do famoso artigo 62.º que determinava que todos os bens até aí afectos à Igreja Católica passariam a ser pertença do Estado e como tal deveriam ser arrolados e inventariados, sem necessidade de avaliação remetendo-se os bens móveis de valor "cujo extravio se recear" ou às Juntas da Paróquia ou a museus. Com vista a essa inventariação o diploma prevê a criação em cada Concelho de uma Comissão Concelhia de Inventário.


  

Artigo 62.º da Lei da Separação do Estado e das Igrejas

E chegamos finalmente ao momento, que já tarda, de abrirmos a nossa prenda. Consiste esta nos documentos que comprovam o inventário e arrolamento feitos ao abrigo do dito Artigo 62.º na freguesia da Madalena.

Referem aqueles que a 13 de Outubro de 1911, os cidadãos António Mathias de Araújo, administrador do Concelho de Tomar, José Gomes dos Santos Regueira membro da Junta da Paróquia e José da Silva Pereira d'Albuquerque, Secretário da Comissão Concelhia de Inventário para os fins previstos no Artigo 62.º, compareceram "nos edificios denominados" Igreja de Santa Maria Madalena, Capela de Santa Marta e Capela de Santa Margarida, principiaram e arrolaram "o inventário da forma seguinte" ...

 Descrevem depois todos os bens móveis existentes dentro dos tais "edifícios" e que constam das imagens abaixo (a abertura do link proporciona melhor leitura).

         

Igreja da Madalena









Capela de Santa Marta - Marmeleiro






Imagem de Sta Margarida.






Como podem ler, do inventário consta além do edificio de cada templo com as respectivas confrontações, todos os bens supostamente encontrados no interior, sendo naturalmente os da igreja matriz em maior número, e que variam desde as imagens dos santos, aos quadros com pinturas sem autor, até aos paramentos clericais, casulas, alvas e estolas, etc. passando pelas 17 copas da irmandade e acabando nos panos môscas de cobrir os santos. Tudo foi arrolado, pelos vistos bem guardado e conservado a ponto de ser impecavelmente devolvido  em 28 de Agosto do ano da Graça de Nosso Senhor de 1942. Afinal tudo acabou em bem, embora pela minhas contas um pouco tarde. Não acham? 1942, só? O homem era mesmo cuidadoso, safa!!
Esta devolução deve ter sido formal pois a própria Lei deixava, salvo excepções, à guarda de Confrarias, Irmandades,  Fábricas da Igreja, quer os templos usados em culto quer o que constava no interior.
O Inventário faz ainda menção aos rendimentos da Igreja católica provenientes da freguesia: terrenos arrendados ou aforados, os quais são depois vendidos, sendo-o também alguns foros, e às "oliveiras em terra", distribuídas por 196 parcelas de terra de particulares, numa média de uma a três oliveiras por parcela. Estas oliveiras serão também vendidas por grosso em hasta pública. "Puxando a brasa à nossa sardinha" verifiquei que Porto da Lage é mencionada através de dois proprietários, Augusto Pereira da Motta que tinha sete oliveiras nas suas terras que teriam pertencido anteriormente à Igreja, uma no Casal dos Pretos, três na Fonte do Picoto, duas no Casal do Negro e uma em Porto da Lage, enquanto que a viúva de Manuel de Sousa Rosa, também moradora em Porto da Lage, tinha três em Porto da Lage e uma na Ribeira (?). 

Por último, tenho de referir ainda a estranheza por não fazerem parte deste inventário as capelas de Cem Soldos e  de Porto Mendo. Ou houve extravio dos respectivos documentos ou seriam capelas cuja propriedade não era do patriarcado de Lisboa (então a autoridade eclesiastica local), situação que o artigo 62.º excepcionava da nacionalização. (MFM)



Capela de S.Sebastião, Cem Soldos
Capela da Senhora da Saúde - Porto Mendo













                                             

18 de abril de 2023

Para Memória Futura

 




Aqui ficam para registo histórico os arcos da Ponte de Pedra de Porto da Lage. Eu nunca os tinha visto e não acredito que o volte a fazer. O lado a montante já não está muito visivel (é certo que a fotografia feita com telemóvel também não ajuda) tal a velocidade a que a vegetação cresce, não permitindo chegar mais perto, para voltar a tudo tapar. (MFM)




13 de janeiro de 2023

Hoje, há Cem anos



                                       A Estrada de Paialvo e o Castelo lá ao fundo.


Publicação de 13 de Janeiro de 1923

 

21 de novembro de 2022

República dos Costa

 

Costa é um nome comum em Portugal (consta ser o sexto apelido mais usado, depois de Silva, Ferreira, Pereira, Oliveira e Santos) e muito antigo também, pois já o era de D.Gonçalo da Costa, do solar da Quinta da Costa, Guimarães, senhor do Couto de Mancelos, cavaleiro de D. Afonso Henriques.

Talvez já então D.Gonçalo usasse o curioso brasão dos Costa que hoje conhecemos. Aquele que, ao primeiro olhar, parece ter  costelas firmadas sobre o escudo vermelho. O que até viria a propósito dado que "Costa" em latim significa "costela lateral". Mas os heraldistas não não estão de acordo com esta visão tão simplista, segundo eles o que está representado não são costelas mas sim seis facas de sapateiro com lâmina curva e sem ponta, que tinham precisamente o nome de “costas”, e eram usadas, naturalmente, por quem tinha aquele ofício.

A ser assim, talvez D.Gonçalo não gostasse muito de divulgar esta versão da sua linhagem e tivesse antes querido que se soubesse que tinha costelas no peito em vez de sovelas de sapateiro ou lá o que é que era aquilo. No que teria razão. Eu, por mim, também preferiria.

Já o mesmo não digo dos Costa destes nossos últimos séculos, os quais com certeza, exultarão e terão toda a honra nos seus antepassados artesãos, sejam eles os confectores da bota alta do nobre e do sapatinho da burguesa, os das meias-solas de vão-de-escada ou, mais ainda, os sofridos e revolucionários operários das grandes fábricas de calçado. Refiro-me aos Costa da quadra abaixo e aos que lhes seguiram, muito nossos conhecidos, muito interveniente nas coisas cá do burgo, e, ao que se tem visto nas últimas semanas, muito amigos uns dos outros. Se dão ou não "cabo da gente" a doutrina divide-se. (MFM)

Um Costa matou o Rei
Outro Costa o Presidente
E um Costa que eu cá sei
Foi quem deu cabo da gente



(A quadra acima apareceu espichada nas paredes de Lisboa na manhã sequinte a 14 de Dezembro de 1918, dia do assassinato de Sidónio Pais. Os Costas aludidos eram Alfredo Luís Costa e José Júlio da Costa, respectivamente assassinos do rei D. Carlos e do Presidente Sidónio, e Afonso Costa visto como o inspirador daqueles actos).

Nota: Á Wikipedia e quejandos da net, os meus agradecimentos pelas informações facultadas para a elaboração deste post.

4 de outubro de 2022

É Pena




    Em Porto da Lage, no passado, podia ler-se num painel de azulejos o que consta neste velho prato de Alcobaça. Agora já não se pode. É pena. (MFM)

20 de setembro de 2022

E Não É que Agora me Morre a Rainha?

 

Só me faltava esta!



  

Neste mundo, que cada vez é menos o meu, vejo cair a toda a hora a esperança da criação de um mundo de liberdade, bem estar, justiça social e tolerância, o que na minha juventude parecia estar a construir-se porque as pessoas ansiavam e lutavam por isso. Esse mundo esvaiu-se. Hoje, ao hedonismo junta-se o radicalismo de que são exemplos a defesa de únicos e exclusivos oprimidos, de hoje e de ontem, e a famigerada teoria de género, que só conduzem à tribalização e à promoçáo do ódio constante ao outro. A essência da democracia foi-se, agora resume-se a eleições, impera a ditadura da "única verdade", que não aceita a discussão muito menos oposição, e o controlo da linguagem como exercício de poder.

Durante décadas ignorei a existência da rainha, depois passei a associá-la às revistas cor-de-rosa, últimamente dei por mim a pensar nela como exemplo de missão e de sacríficio de vida por uma causa. Mas, apesar de tudo, soube sempre dentro de mim que ela lá estava, lá estava quando nasci, lá continuava e continuaria a estar.  Como as rochas que  só se alteram levemente pela força dos elementos e que são eternas. Afinal enganei-me. A surpresa da notícia atordoou-me primeiro, entristeceu-me depois e não percebi logo porquê. Depois vi que era o meu lamento pela perda de um símbolo, o do mundo que se está a acabar. Estou com muita pena de mim!(MFM)




..... Também Javier Márias partiu por estes dias. Um grande escritor que eu admirava e que dizia não se sentir bem neste "mundo de maluquinhos".

14 de junho de 2022

Segredos Sanguíneos

~
O público em geral que me desculpe que isto não vos interessa nada, mas não resisti a pôr aqui este segredo familiar. Pelo facto  peço a vossa compreensão e, já agora, discrição (isto que conto era dantes, agora já toda a gente é como nós). (MFM)


A minha avó paterna contava que não fora por falta de informes (avisos?) da sogra que deixara de tomar conhecimento das idiossincrasias da família daqueles a quem uma e outra tinham ligado os seus destinos. Segundo aquela minha bisavó, tratava-se de gente não totalmente "pura" da cabeça, que era dada à melancolia (cismadores descomedidos), à fantasia e à obstinação, três ingredientes que, quando juntos em grandes proporções, produziam entes (alguns saídos das suas próprias entranhas, ela reconhecia-o) aluados, pouco amigos da verdade ou do trabalho, ambiciosos (antigamente era defeito), inconscientes e muito, terrivelmente, desconfiados e teimosos. Seria para perguntar por que ponta, escolhendo dentro de tal sortido de pechas,  é que elas lhes teriam pegado. Pois parece que foi por isso tudo, a mistura era supostamente irresistivel. Pena que tal tenha perdido efeito nas gerações seguintes! Desse legado não nos teriamos queixado. 
Eram aquelas e outras  mais coisas que as senhoras em causa, as duas de que já falei a que se veio juntar depois a minha mãe que também se deixou prender por um, apontavam como estando no "sangue", aquela substância  terrível e única que escorre das feridas abertas, dos M. Mas mais não digo até porque herdei uma outra falta que lhes era bastamente assinalada, "eles" nunca, por nunca ser, falavam "mal uns dos outros", "encobriam-se", diziam. E assim me calo, corre-me no sangue, é mais forte do que eu.
Mas vá lá, até para tudo isto faça sentido sempre vos conto de uma frase que ouvi muitas vezes lá em casa quando um de nós, éramos todos low-profile,  inesperadamente e com toda a calma se saía, de dentro dos seus silêncio e invisibilidade habituais, com uma novidade estrondosa ou dava uma réplica ainda mais estrondosa a uma suposta novidade "é mesmo M. uma gente que nunca pergunta nada mas sabe sempre tudo ". (MFM)

Foto tirada num alojamento de turismo rural algures em Itália,
local onde ninguém soube dizer nada sobre os livros, bem
fechados num armário envidraçado.
 

10 de maio de 2022

Aviso aos Médicos

 Em 1580 Garcia da Orta foi julgado e condenado à fogueira por judaísmo. O já estar morto e enterrado desde 1568 não constituiu obstáculo à execucão da sentença. Foi-se à Sé de Goa, exumaram-se-lhe os restos mortais e ateou-se-lhes o fogo. Que, quando o exemplo urge e é preciso queimar a raiz, que ela arda e se purifique!

Lembrei-me  deste facto, antigo de mais de 400 anos, ao ver a reacção que as fotos abaixo suscitaram numa publicação num site de velharias. Ardeu Tróia meus senhores! Os comentários foram de fazer gelar o sangue de uma boa pessoa, que era eu. Que, quanto aos outros, ardeu-lhes  aquele líquido vermelho em cadeia ascensorial, cada vez mais fervente de comentário para comentário, em invenções de torturas retroactivas de todas as espécies contra os médicos que, em algum tempo, se atreveram a exercer "o trabalho de responsabilidade" de cigarro em punho. Uma comissão, já!, para apurar quem praticou tão nefandos crimes! E penas exemplares (muitos defendem antes, outros depois do apuramento dos factos) com lavaredas bem vivas que aqueçam e regozigem a alma de quem sofre com  tamanhas iniquidades!

E depois de ler isto srs. drs. fiquei preocupada convosco e temerosa com o perigo que correis. Tende cuidado, eles "andem", "andem" mesmo aí! (MFM)




Declaração de interesses: Eu não fumo nem nunca fumei. Não o digo hoje com orgulho,  assim como não o disse no passado!  Deus sabe o que custou à vida social da minha juventude não o fazer, ainda guardo cicatrizes da ferida profunda infligida no meu ego à conta disso! É preciso ser-se da minha geração para se compreender o quanto ficava mal, em certos meios, uma rapariga não traçar a perna, pôr o cigarro entre o indicador e o médio e, sofisticadamente, deixar o fumo desprender-se sobre o ombro e a cabeleira. Quem é que queria passar pela vergonha de não exibir esta prova seminal de libertação feminina, quiçá sexual, neste país de opereta!? Eu lá querer não queria, mas a repugnância pôde mais do que eu e, embora me garantissem que, com o tempo, me havia de habituar, o meu comodismo natural pouco dado a sacrificios, que aqui além de físicos eram financeiros, venceu! E então, por parte das minhas companheiras, da fama de antiquada menina recatada não me livrei! Mas, ao contrário do que aquelas minhas ingénuas contemporâneas fumadoras julgavam, a vida rolava independente dos rolos do fumo de cigarro e brevemente elas mudaram de opinião ... pois, fumar ela não fuma, mas ... E da fama de sonsa não me livrei! (MFM)

13 de abril de 2022

Páscoa sem Fé

 

 

Gustav Klint, Death and Life

 




Eu bem sei que a Pascoa é a compreensão da Ressurreição depois da morte. Que ela quer dizer que depois do desamparado caminho da cruz se segue a irupção da vida. Sei que os hoje mercantis ternos coelhinhos e os coloridos ovos de chocolate são, afinal, símbolos bem antigos da fertilidade e do ressurgimento da vida após um longo Inverno. Sei, mas  não estou convencida. Os tempos que vivemos só me deixam ver longo caminho do calvário estendido à nossa frente, não consigo crer, muito menos festejar a esperança da Redenção. Mas para os que ainda conseguem Boa Páscoa. (MFM)
 



A um Crucifixo

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?

 Antero do Quental 1842-1881, Sonetos Completos, Publicações europa-américa, 1984.

10 de abril de 2022

Hora H

 




A Primavera cheira a laranjas.
(Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que chamam laranjas.)
O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios.
(Dizem que as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos.)

                                             António Gedeão,1906-1997, Poesias Completas (1956-1967)

7 de abril de 2022

Questão "em estrangeiro" para ficar claro

 




"Ci chiediamo se il prezzo del gas possa essere scambiato con la pace. Cosa preferiamo? La pace, o star tranquilli con l'aria condizionata accesa tutta l'estate? Questa è la domanda da porsi"
 Draghi sobre o  embargo ao gás russo.

"In peace nothing so becomes a man as modest stillness and humility; but when the blast of war blows in our ears, then imitate the action of the tiger; stiffen the sinews, disguise fair nature with hard favoured rage…"
Henry V,  William Shakespeare

"Cowards die many times before their deaths; the valiant never taste death but once."
Julio César, William Shakespeare


28 de março de 2022

Os Lusíadas - 450 anos da sua Publicação


Moeda de 50$00 em prata editada em 1972



Eu não consegui, ainda (pode ser que lá chegue), ver qualquer beneficio na velhice. A minha geração e a anterior vêm nisso muita, muita "coisa positiva", falamos assim, sentem-se lindamente na sua, deles, pele, agora é que se sentem eles próprios, nunca estiveram melhor, bla, bla, bla, mas cá para mim, coitados, isso é maleita que lhes deu, assim como lhes dão outras trazidas pela idade, mas que a mim, graças à minha proverbial ruindade filha da minha lucidez, não me atacou.
Uma das famigeradas e proclamadas vantagens é a sempiterna sabedoria, que será superior nos mais velhos, o que, aparentemente, não merece contestação pois que até a simples aritmética está com ela. Se adquirimos uns tantos conhecimentos por ano, assim como adquirimos quilos, rugas, rendimentos ou não rendimentos, pontos para subir na carreira, etc. ,etc.,contas feitas, quem mais anos tem, mais conhecimentos abriga (de abrigar, dentro da cabeça). Até aí concedo. Mas terão também de conceder que se o dito abrigo (o continente) falha, como diabo fica e se publicita o conteúdo? Ah pois é, e estes continentes não costumam ser muito de fiar com o passar dos anos.
Isto tudo para dizer que eu sabia, ora se sabia, que em Março deste ano se assinalavam os 450 anos da publicação de Os Lusíadas. Sabia mas esqueci-me. O que só prova a minha tese, pelo menos quanto à minha pessoa ela está certa. Tenho conhecimentos mas não me lembro deles, coisa que à humanidade se torna muito útil. Adiante, também não é preciso juntar a neura à deslembrança.
E, como sempre sucede nestes casos, se não me lembrei do que se passaria amanhã recordo-me lindamente do que aconteceu há cinquenta anos. Nos 400 anos da publicação, nos idos de 1972, não se falou de outra coisa. Houve até uma Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas, a imprensa, a rádio, a televisão única, para já não falar em multiplas comemorações culturais, encarregaram-se de dar a conhecer, ou lembrar, aos portugueses quem era Camões, o seu poema épico e do que tratava. E foi tão vivo e intenso o acontecimento que ninguém dividava que no exame nacional de português desse ano sairiam Os Lusíadas. E assim foi. Lá estava um Canto para a gente identificar, as estrofes para interpretar porque, não, não havia só orações para dividir, embora a gramática fosse exigente dizer isso é (era) desculpa para quem não sabia nem queria saber nada sobre as intervenções dos deuses do Olimpo nas desgraças e prazeres da viagem, da admiração do poeta pelo povo português e da forma poetica de conhecer a História.
Este ano, sinal dos tempos, o que aconteceu, se aconteceu, quanto a celebrações, foi nos nichos habituais de gente que troca o que investiga e publica entre si sem se preocupar em divulgar para o grande público ou sem que os meios de comunicação os façam chegar ao grande público.
De uma dessas situações tive conhecimento através de Francisco José Viegas no seu blog A Origem das Espécies (sapo.pt), que dá conta da tradução para indonésio de Os Lusíadas e de um prodigioso (digo eu!) congresso sobre o tema realizado nas Molucas! (MFM)

"Os Lusíadas em Jacarta 

 Por FJV, em 14.03.22

Uma das razões por que gosto de Os Lusíadas tem a ver com o halo de doidice que percorre o poema épico. O que ali está é um grupo de estouvados que vai pelo mundo fora a desafiar os deuses, os Elementos e a ordem das coisas – o que irrita muito as pessoas que deve irritar. Como poema, é uma construção quase perfeita; como leitura do mundo, é de um atrevimento notável. No sábado passado assinalámos os 450 anos sobre aquele momento em que o impressor António Gonçalves, a 12 de março 1572, em Lisboa, deve ter folheado o primeiro exemplar. Não abriu nenhum telejornal, claro, mas hoje gostava de vos falar de Danny Susanto (professor na Universitas Indonesia, em Jacarta) que falou de Camões e de Os Lusíadas num congresso sobre o tema; tudo online, organizado na Ásia, mas virtualmente em Ternate, no arquipélago das Molucas, lugar essencial dos roteiros camonianos – onde Camões teria começado (ninguém garante) o poema. Foi um belo dia para Danny Susanto: cumpriu um dos objectivos da sua vida – traduzir Os Lusíadas para indonésio. Saiu agora e está disponível. Um abraço para Jacarta."

                                                      Francisco José Viegas Da coluna diária do CM. em 14.03.2022

25 de março de 2022

Paciência

 

Marques de Oliveira, Rapariga na Praia


"O povo não costuma perder a paciência, porque ela é o seu único bem".

                                                                                Carlos Drummond de Andrade 


Deve ser por isso que aceita sem mais:



- Os pivots da televisão que, hoje na guerra como ontem na pandemia entendem que faz parte das nossas obrigações de espectadores aturarmos os seus estados de alma. Parece que pretendem com isso mostrar que são humanos e que sofrem com as noticias. Olhem que choradeira insanável (e útil!) não seria se nos hospitais, locais onde se recebem os mortos e feridos, campos de refugiados, etc., etc., o pessoal que lá trabalha também "fosse humano" como eles. Ganhem juízo.

- O nosso presidente (por quem ainda sinto um bosquejo finissimo da dita porque acredito que tem, ao contrário de outros governantes passados presentes e futuros, um genuino amor e interesse por este triste povo) pela sua verborreia incessante que atingiu mais uma vez os píncaros da respeitável sublime cretinice ao vislumbrar na actual guerra grandes vantagens turisticas para Portugal, à semelhança do que sucedeu na 2.ª Guerra Mundial (sic). Valha-o Deus.

- Quem manda nos bombeiros de Tomar que decidiu acabar com a sirene que, quem viveu nesta cidade e é vivo sempre se lembra de ouvir tocar ao meio-dia, para não perturbar os refugiados aqui acolhidos. Eu só espero que o autor da ideia (que continua de saúde, prova de que o ridiculo não mata) não tenha tido outra que a supera em estupidez: a de a fazer saber aos infelizes ucranianos como prova da sua preocupação com eles. Seria juntar o insulto à ignomínia. Perdoai-lhe Senhor. (MFM)

20 de março de 2022

Primavera

O equinócio da Primavera ocorreu, em Portugal continental e na Região Autónoma da Madeira, hoje, 20 de março às 15:33 horas (menos 1 hora nos Açores), instante que marcou o início da Primavera no hemisfério Norte. 


Ah, que bela manhã de Primavera!



Abram ao sol as portas, as janelas!

Cheira a café com leite,

a sabonete,

a goivos, a sol novo, a vida nova!

A Rua canta!… sinos e pregões,

apitos e buzinas, vozes claras.

- “Gostas de mim?”

- “Gosto de ti” 

e o céu cobre a Cidade com seu manto azul.


Ah, que bela manhã de Primaver
a

                     .....

                                                                    Os eléctricos voam, transbordantes,

                                                                      a tilintar, a rir nas campainhas,

                                                                      e os automóveis, como borboletas,

                                                                      circulam, tontos, nas ruas sonoras.

 

                                                    No Tejo, os vaporzinhos de Cacilhas

                                                    brincam aos barcos grandes, às viagens,

                                                    e o pequeno comboio vai e vem,

                                                    como um brinquedo de menino rico.

                                                    Confundem-se nas árvores, ao sol,

                                                    folhas e asas, pássaros e flores.

                                                    É festa em cada rua. Em cada casa,

                                                    um canário a cantar, uma cortina,

                                                    um craveiro florido na janela.

                                                    Despejaram-se armários e gavetas,

                                                    frasquinhos de perfume…Toda a gente

                                                    foi para a rua de vestido novo,

                                                    de fato novo, de gravata nova,

                                                    e tudo canta, a Rua é uma canção.

 

             Ah, que bela manhã de Primavera!

 

–“Gostas de mim?” — é o tema da canção.

–“Gostas de mim?” — pergunta-lhe ele a ela.

–“Gostas de mim?” — pergunta à flor o vento

e a flor ao rouxinol… — “Gostas de mim?”

–“Gostas de mim?”, “Gostas de mim?”

Cheira a goivos, a sol, a vida nova…

 

Ah, que bela manhã de Primavera!

 


     (Fernanda de Castro 1900-1994, in "Asa no Espaço", 1956)