Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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11 de setembro de 2015

A Feira de Santa Cita




Andor de Santa Cita que desfila na procissão do Senhor Jesus das Necessidades

Segundo nos conta J.M.Sousa (1) pelos anos 155, da era cristã, durante o domínio dos romanos, viviam perto do local onde hoje se situa a povoação de Santa Cita (2), Caio Atílio, cidadão bracarense e Cássia sua mulher. Tinham em sua companhia uma formosa donzela, de nome Cita que se convertera ao Cristianismo. Perseguida por causa das suas crenças religiosas, fugiu para um ermo, lugar onde os seus algozes a descobriram e lhe deram morte afrontosa.
O seu corpo foi insepulto, como era costume fazer-se por desprezo  para que as feras ou aves de rapina o viessem devorar. Teriam então vindo os cristãos da Nabância, às ocultas, dar sepultura àquele corpo santificado pelo martírio e abençoado por Deus. Sobre o seu sepulcro erigiram mais tarde uma capela, transformada depois em igreja.
Aqui teria sido erguido um  Convento de Frades Franciscanos, não se sabe exactamente em que data (3), embora se conheça a sua confirmação como Convento Franciscano em 1440 pelo Papa Eugénio IV (ver os postes sobre a história do convento neste excelente blog), convento esse que transitou em 1628 para um novo, da mesma Ordem, construído de raiz, nos terrenos da Várzea Grande, em Tomar.
No entanto, em Santa Cita deverá  ter continuado um pequeno convento pois o Padre Carvalho da Costa na sua Corografia Portuguesa e Descrição Topográfica do Famoso Reino de Portugal (1706-1712) refere, no Tratado IV Da Comarca de Tomar, Capítulo I,  Tomo Terceiro daquela obra,  que o  Convento de Santa Cita de Religiosos da Ordem de São Francisco está junto ao Rio Nabão, são seus Padroeiros os Senhores do Morgado e Quinta da Beselga, que tomou o nome da dita ribeira, que passa junto dela nesta Freguesia de Santa Maria Madalena. Diz a memória popular que, após a mudança, no velho convento ficaram apenas três frades "para a guarda das relíquias da Santa". 
E, em 1834 o convento ainda lá existia pois, na sequência da extinção das ordens Religiosas em Portugal, aquele foi mais um dos encerrados, sendo os seus bens secularizados e incorporados na Fazenda Nacional, à excepção dos vasos sagrados e paramentos que seriam entregues aos ordinários das dioceses (4), conforme o registo que se pode ler no ANTTA 19 de Julho de 1834, João António da Fonseca, juiz ordinário, o ex-guardião frei José da Conceição Pinto, António Pereira Mendes, escrivão dos Órfãos da Repartição da vila de Tomar, entre outros, procederam à posse e inventariação dos bens do dito Convento do Senhor das Necessidades no Lugar de Santa Cita na Vila da Asseiceira. 
À época em que J.M.Sousa escreveu sobre o martírio de Santa Cita já o convento estava em mãos de particulares.
Mas a  povoação que nasceu à volta da velha igreja cresceu, manteve até aos nossos dias o nome da Santa e Mártir e continuou com a devoção ao Senhor Jesus das Necessidades, dedicando-lhe uma festa anual. Em 15.06.1926 foi criada uma Confraria com este nome que, ainda hoje, se encarrega da procissão que todos os anos tem lugar em 11 de Setembro.
Nos finais do século XIX era famosa a Feira de Santa Cita (feira do ano, para se distinguir da mensal feira do gado que também aí se realizava), a ponto de suscitar negócios próprios para a ocasião como podemos ver abaixo, com todas as comodidades, incluindo para cavalgaduras, e a preços sem competência. Isto apesar dos eventuais contratempos, das inevitáveis desordens, de anos menos bons e até de grandes epidemias de cólera, em Espanha. 
Os transportes, os trens, os chars-à-bancs, eram providenciados, os normais e os extraordinários para que o público em geral ali chegasse prontamente. Porém, com a chegada do comboio passaram a ser mais fáceis as deslocações e por isso também a ida dos tomarenses à "procissão de Santa Cita " se tornou uma obrigatória e agradável rotina de fim de Verão, de que me fizeram (e muito bem, reconheço hoje) tomar parte, a qual, segundo as notícias, continua cheia de vida e para durar. (MFM)

(1) Autor da obra Notícia Descritiva e Histórica da Cidade de Tomar
(2) Localidade próxima de Tomar, situada na freguesia de Asseiceira, é também nome de uma estação de Caminho de Ferro do Ramal de Tomar.
(3)No sec.XIII  é doado aos Franciscanos pela Ordem do Templo, o Casal do Vale Bom para aí fundarem um convento ao lado da igreja.
(4) Artigos 2.º e 3.º da Lei da Extinção das Ordens Religiosas, da autoria de Joaquim António de Aguiar, promulgada por D.Pedro IV e publicada em 30.05.1834.




7.09.1879
                                                      31.08.1879


14.09.1879


                                    
                                                           
14.09.1880


14.09.1891




11.08.1895
6.09.1896






A Capela de Santa Cita ontem e hoje.

O cruzeiro ainda existente é a últma
 reminiscência do antigo Convento.

10 de setembro de 2015

Fruta da Época


Jan Roos, 1591-1638

Considerando que há eleições em Portugal, embora não universais, desde há quase duzentos anos, podemos dizer que evoluímos muito.
Os portugueses já não desfilam como ovelhas atrás do cacique regional pelas Corredouras do seu país, não votam movidos a vinho e a carneiro com batatas, sabem o que é um comício e já nem lhes ocorre que campanha pode ser militar. Quanto a brigas, brigam à mesma, mas agora é o futebol que os divide, como em qualquer Inglaterra cultíssima e democratiquissima
 deste mundo.


Podemos portanto concluir que Salazar, a Democracia e a Europa, cada qual à sua maneira, nos tornaram bem-comportados, civilizados e prontos a usar a própria cabeça.
Sem ironia, estou convencida que cada português é livre quando, em frente do boletim de voto, coloca a cruz naquilo que lhe parece ser o melhor para si e para a sua vida, consciente do que está a fazer, informado e sem se sentir pressionado, sem medo.

Esta é uma situação perfeitamente pacífica, hoje em dia, na sociedade portuguesa – o voto resulta da livre escolha individual de cada um e, como tal, é respeitável e respeitado por todos.
Há que aplaudir e ter orgulho no comportamento do povo português enquanto eleitor.
Resta agora esperar que os eleitos, aqueles que pretendem ter um lugar à frente deste povo exemplar,  se coloquem ao nível cultural de quem os elege, deixem de ser broncos e caudilhos trauliteiros (agora com palavras de mais ou menos verniz,: não fui eu, foi o senhor, não fui eu, se não foi o senhor foi o seu pai, etc), sob pena de continuarmos, cada vez em maior número, a ficar em casa por não termos em quem votar .(MFM)





9 de setembro de 2015

Fruta da Época (de outras épocas) II




Luís Egídio Melandez (1716-1780)
                                                                                ....
12.12.1886



No extremo da Rua dos Oleiros, oposto à Azenha da Ordem, de que já falámos, no topo junto ao Pé da Costa, ficava o célebre Pateo da Sra. Henriqueta -como então se dizia- o maior dos dois que existiam no nosso Bairro, sendo o outro o da Sra. Rosa, sito na Calçada do Convento.
Eram estas as duas grandes «garages azininas» do começo do século, quando os solípedes eram ainda o meio usual de transporte e os burros, mulas, cavalos, carroças, galeras, charretes, breaks, milords e Iandaus, não tinham ainda sido substituídos respectivamente pelos ciclomotores, lambretas, mótos, forgonetas, camionetes, ovos, carros utilitários e espadas.
Era um meio de transporte mais vagaroso, é certo, mas que não enchia os jornais de acidentes de viação e que em vez de gastar combustíveis líquidos estrangeiros, dava adubos sólidos e líquidos para as nossas hortas.
Este assunto é talvez um tanto baixo para ser aqui invocado -mas, a propósito lembra-me a história, já com barbas brancas, dum menino bem, filho de um parisiense que fizera a sua fortuna com a arrematação dos canos de esgoto. Quando o teddy boy censurava o pai, por ter um negócio tão ordinário e malcheiroso, este puxando pela carteira, bem recheada, tirou uma nota das grandes, e passando-a pelo nariz do filho perguntou:
-Cheira-te mal?
                                                                           ...

Mas, paremos com esta digressão a que nos levaram os resíduos da gasolina burrical que o tempo já vai longo - e voltemos à Garage - perdão! - ao Pateo, da Sra. Henriqueta, para recordar uma cena ali passada, ainda no tempo da "Outra Senhora".
Nesses dias, o carneiro com batatas das eleições, não era uma mera figura de retórica, mas um suculento e apetitoso prato, com que os caciques pagavam os votos da sua clientela.
Ora sucedeu que, numa das mais renhidas eleições dos últimos anos da monarquia, o chefe de um dos partidos - já não me lembra se o Progressista se o Regenerador - resolveu oferecer o carneiro com batatas no Páteo da Sra. Henriqueta que, como boa Estação de Serviço, tinha anexo, além de um ferrador, uma casa de pasto. Para que não houvesse roubos nem enganos, mandou imprimir bilhetes de admissão que, escrupulosamente, eram distribuídos pelos eleitores à porta da assembleia de voto.
O Chefe contrário, querendo pregar uma bela partida ao opositor, mandou imprimir cartões exactamente iguais, e disse às suas hostes para estarem na Sra. Henriqueta meia hora antes da marcada. Está-se a ver o que sucedeu à chegada dos legítimos portadores dos bilhetes autênticos: Os contrários tinham acabado com todo o carneiro com batatas!!!
Isto não quer dizer que não tivesse havido comida para todos. Houve, e da boa: Castanha em barda, regada a xarope de marmeleiro.
                                                                              ...
  (Amorim Rosa, Uma volta pelo Bairro das Flores, palestra realizada na Sociedade Nabantina, 
    18-11-1961, Edição do Semanário "O Templário")

8 de setembro de 2015

Fruta da Época (de outras épocas) I


Juan de Espinoza (1629-1688)


                                                               ELEIÇÕES EM TOMAR

Por fins da década de 1860, segundo tradição oral, ao serem marcadas novas eleições, o Capitão-Mor do Pintado, cargo já extinto mas pelo qual ainda era designado J. Delgado da Silva (?), morador na dita povoação, dirigiu-se a casa de Plácido Esteves de Brito de Meio e Castro Gameiro - meu avô materno, senhor da quinta dos Ganados, onde habitava, e da Pesqueira e de casa e avultados bens em Alpedrinha (Fundão), mais tarde vendidos para comprar em Tomar as quintas da Granja e das Avessadas - ambos influentes políticos e caciques eleitorais na freguesia dos Casais a fim de com ele estudar o assunto.
Este termo cacique tem ultimamente sido bastante desprestigiado, sem motivo aparente, pois a sua necessidade é evidente e se os seus processos nem sempre são os mais ortodoxos, tem de se considerar a época, os usos e costumes, a cultura local, as pessoas.
Pretendia o Capitão-Mor fazer um pacto eleitoral com o seu antagonista político a fim de não levantar problemas a qualquer deles nem criar na freguesia dissídios ou reacender paixões.
A sua proposta era dividirem território e politicamente a freguesia em duas zonas, ficando os eleitores residentes na zona situada a nascente da estrada Tomar-Cabaças para Plácido de Brito, como era geralmente designado, e a zona poente para o Capitão-Mor.
Plácido de Brito, plácido de nome e de feitio, achando a proposta equitativa com ela concordou e o resultado daquelas eleições na freguesia logo aí ficou resolvido e arrumado.
O tempo passa, a data das eleições aproxima-se e Plácido de Brito, sossegado e confiante, não procura os eleitores, não lhes fala, não se mexe. Quando o faz logo numa das povoações, a Venda Nova que á época ficava toda na sua zona, mas junto à estrada divisória, os eleitores lhe dizem que têm muita pena mas já estão comprometidos com o Capitão-Mor.
Furioso com a traição regressa a casa e sua Mulher lembra-lhe que tem uma forma de resolver o assunto sem prejuízo de maior. Tirar ao Capitão-Mor, mesmo que já estejam comprometidos, os eleitores de uma das suas aldeias e que o Casal Novo, completamente cercado pela sua quinta da Pesqueira, era fácil. Bastava ameaçá-los com não os deixar levar água da sua fonte da Romeira, esplendida nascente da referida propriedade que nunca secara e que eles, praticamente, utilizavam durante todo o verão, e que passaria a acoimar-lhes os gados que entrassem na quinta, o que era quotidiano, pois os caminhos de que tinham de se servir atravessam a propriedade e não têm vedações laterais.
Munido com tão fortes argumentos vai falar com os homens do Casal Novo que têm de concordar em lhe dar os seus votos.
O Capitão-Mor não se deu, porém, por achado e nas vésperas das eleições manda-lhe um recado convidando-o para irem todos juntos para Tomar e que os esperava à Venda Nova. Plácido de Brito, convicto que semelhante convite era para fazer crer aos tomarenses que toda a freguesia votava com ele, responde-lhe que não esperasse, pois iria sozinho com os seus partidários.
E assim fez. Mas, já se sabe, Plácido de Brito tarde e a más horas partiu, com o seu bando, para Tomar. Nesta, já então linda cidade, termina a primeira chamada, decorre o intervalo prescrito pela lei e inicia-se a segunda chamada (Casais é das primeiras freguesias) e Plácido de Brito sem chegar. Os seus correligionários, que lhe conhecem o feitio, estão aflitos, receiam que não chegue a tempo e espreitam Corredoura abaixo para Além da Ponte; vai começar a chamada de Carregueiros quando um suspiro de alívio lhes sacode o peito, ei-Io que chega.
Subindo a Corredoura a cavalo, com o seu criado de confiança também a cavalo (ostentando na lapela da jaqueta o escudete da Casa, como ainda hoje se vê nos coletes dos campinos das grandes Casas agrícolas do Ribatejo) e seguido do "rebanho" dos eleitores, Plácido de Brito vai radiante, recebendo os cumprimentos e vendo a alegria estampada no rosto dos correligionários, com aquele íntimo prazer de se ver admirado e popular, como tanto apreciava.

(Vasco da Costa Salema, Coisas e Loisas de Tomar, Empresa Editora Cidade de Tomar, 1993)

7 de setembro de 2015

28 de agosto de 2015

Casamento em tempo de guerra.






Livro de Assentos de Casamentos da Paróquia da Madalena, Tomar 1650-1713.


Quando o António Lopes, do Bregil e a Maria Dias, da Beselga, se recebem a 24 de Janeiro de 1655 na Ermida de Sta Margarida, não sei se tinham conhecimento que, um ano antes, a 26 de Janeiro de 1654, tinha sido assinada a capitulação holandesa no Brasil.


[O país estava em guerra desde 1640, procurando recuperar a independência perdida em 1580, a qual acabara por acontecer mercê dos alegados interesses que adviriam para Portugal da aproximação de portugueses e espanhóis. Mas, a partir de 1620, operara-se uma viragem na conjuntura económica e social. As classes populares, as únicas que tinham feito frente à união com Espanha desde sempre, açoitadas pela pobreza e pela fome nos campos, agravadas por constantes aumentos de impostos sobre os bens de primeira necessidade provocam agitação social no reino, sobretudo em Évora e no Algarve (1637-38). Esta agitação popular era acompanhada por uma insatisfação crescente por parte das elites. A crise comercial e militar no império português do oriente, com sucessivas perdas para os ingleses e holandeses, e a recessão e instabilidade no comércio do Atlântico (África e Brasil), afectava os seus rendimentos e esfumara-se o desejo, alimentado durante décadas, de transferir para Lisboa a capital da corte ibérica. A partir de 1621, o governo do conde-duque de Olivares, o ministro todo-poderoso de Filipe III, introduziu reformas de pendor centralista por toda a península, crescendo a vontade separatista em alguns círculos da aristocracia portuguesa, que acabaram por se unir em torno do duque de Bragança e promover o golpe palaciano de 1 de Dezembro de 1640 que restaurou formalmente a independência de Portugal e iniciou uma guerra que durou 28 anos.

Até 1659, a Espanha não deu grandes cuidados nas fronteiras terrestres, ocupada que estava na Europa Central com a chamada Guerra dos Trinta Anos e só a partir desta data a intensidade da luta armada aumentou consideravelmente, dando-se as grandes batalhas decisivas ainda hoje famosas e da qual se celebra este ano uma efeméride, a da Célebre Batalha de Montes Claros(1665).



Cerco holandês à cidade de Olinda- Atlas da América de John Olgiby, 1671

O mesmo não se passou com os territórios ultramarinos, os Holandeses que entretanto se tinham estabelecido em áreas que já tínhamos dominado permaneceram irredutíveis e hostis. Com a Holanda a guerra estender-se-á da América à Ásia. Em Africa conquistam Luanda, S. Tomé, territórios que recuperaremos em 1648.O mesmo acontecerá no Brasil de onde serão definitivamente expulsos em 1654. Para este facto muito contribuiu o apoio das populações locais. Sobretudo as brasileiras, que desde o inicio guardavam más recordações dos Holandeses seus competidores no comercio do tabaco e açúcar desde sempre vistos como os responsáveis pela quebra nos rendimentos. Mas, como compensação pelo reconhecimento da soberania portuguesa do Nordeste brasileiro, ex-Nova Holanda, Portugal aceitou as perdas na Ásia, comprometendo-se ainda a pagar oito milhões de Florins, equivalente a sessenta e três toneladas de ouro, valor pago em prestações, ao longo de quarenta anos (Segundo Tratado de Paz de Haia)].


Esperemos, no entanto, que António Lopes e Maria Dias, se não se mantiveram ignorantes das divergências dos grandes do seu mundo, pelo menos não tenham sido demasiado vitimas deles e tenham conseguido um pouco de sossego naqueles tempos conturbados. (MFM)

21 de agosto de 2015

As tardes são mortas.


O milho já parou de crescer nas grandes superfícies plantadas na várzea da ribeira. Não tarda será apanhado. O restolho deixado para trás será, talvez, limpo e o campo lavrado na próxima Primavera, para início do novo ciclo. Nunca se sabe. Desde que começou esta “industrialização” da cultura do milho, com recurso à junção das pequenas parcelas de terreno de diversos proprietários e ao sistema de rega por tubos, que é uma surpresa o que os promotores daquela faina decidirão no ano seguinte. Mistérios do negócio. É certo que os campos abandonados passaram a ser usados, nalguns casos com o sacrifício das velhas árvores, principalmente as seculares e veneráveis oliveiras que, parece, eram obstáculo às dimensões da maquinaria utilizada, a mesma das lezírias ribatejanas pois, parece também, o tal negócio não se compadece com adaptações às características da cada região. Resta saber se a imolação de culturas tradicionais, como a olivicultura ou a figueira, ao lucro fácil da cultura intensiva de regadio valerá a pena, numa terra com pouca água.Ouço dizer que, por aqui, os poços estão exauridos, mesmo os que não estão directamente a regar os milheirais, precisamente porque estes sorvem toda a água existente no solo. 
Mas ela lá vai chegando para as poucas e pequenas hortas domésticas, enquanto as terras se movimentam a partir de Março, o que sempre dá um certo ar de vida agrícola que aquece a alma e acalma consciências de quem só pensa no curto prazo. 

E os povos estão felizes, passeando-se a pé ou de bicicleta nestes fins de tarde de Agosto encalmado,com paragem no café da bomba de gasolina para o gelado e a cerveja, enquanto inspiram o aroma que a brisa quente arranca das espigas, vão mirando as gordas maçarocas verdes e não regressam às suas vidas nas cidades de cá ou de lá da fronteira.

Pela mesma hora, a esposa do senhor motorista do autocarro das escolas, como a própria se apresenta, percorre na sua motoreta as casas dos arredores oferecendo os bolinhos secos de mel ou limão. São deliciosos. Foi convidada a vendê-los nos Bons Sons, há de ter sido um êxito.

Também um rapaz saído do nada, de cabelo de lã de ovelha suja e óculos, dá uns passos estremunhados no largo da estação. Se houvesse alguém para o ver, ali, a cozer-se com a parede, à procura da réstia de sombra, teria com certeza muita pena dele e procuraria ajudá-lo. Mas ninguém sai de casa a esta hora, se é que há alguém naquelas casas. E depois, vai-se a ver, a compaixão era escusada, o rapaz de cabelo de lã e calções, esfalfado debaixo da mochila, não passa, afinal, de um personagem a actuar no espectáculo a decorrer, este fim-de-semana, na região. O autocarro virá buscá-lo, e aos seus clones que descerão do comboio, e transportá-los a Cem Soldos onde entrarão em cena juntamente com mais uns milhares.

Muito antes de chegar à ponte já há carros estacionados. A fila engrossa no largo da ponte, e torna a estreitar na estrada da Beselga. Só automóveis à espera para serem atendidos na oficina. Não se vê vivalma. Lá de dentro ouve-se, por vezes, o ruído de uma peça a embater no chão, o som conhecido de uma ferramenta a cair ou um acelerar de motor. Não há vozes, tosses, assobios, ais ou uis, nada que soe a humano. Fico com a impressão que, se lá entrasse, depararia com carros com olhos pestanejantes, furgões barrigudos e com bigodes, guindastes sorridentes, todos em alegre convívio maquinal, a tratarem uns dos outros como se um hospital de automóveis se ocupasse, aqui, em Porto da Lage, do Faísca McQueen e dos seus amigos.

Nos Olivais, pouco antes (ou depois, de onde vimos nós?) da bomba, o lugar está solitário a esta hora. Cá fora apenas uma carrinha que, tudo indica, pertence ao dono. No interior, no canto entre as batatas e a prateleira dos enlatados um rapaz está sentado espapaçado atrás da ventoinha. Com a entrada de alguém mostra-se, todavia, prazenteiro e levanta-se muito afável. Parece contente por ter, finalmente, companhia. Difícil de passar, a tarde. Durante a manhã é um corrupio de carros a pararem, além dos avios de mercearia e frescos, há sempre quem queira sementes, plantas e flores. Só ao fim da tarde o movimento recomeça. - As tardes são mortas - diz, enquanto corta segunda melancia. Não, não foi o cliente que não gostou da primeira, foi  ele, que faz questão de vender só coisa doce.(MFM)

20 de agosto de 2015

Porto da Lage -nascimento de uma povoação


A primeira imagem abaixo é um extracto da planta de localização da linha do caminho de ferro do Norte, elaborada cerca de 1860, no local correspondente à "Quinta de Porto da Lage", isto é, do lado direito da Ribeira da Beselga, num território mais ou menos contínuo (interrompido por "fazendas" de outros dois proprietários)  sensivelmente entre as duas pontes existentes sobre aquela ribeira, hoje, em Porto da Lage.


Figura 1


A Figura 2 é uma imagem mais aproximada da anterior, agora com o local exacto onde surgiu a povoação de Porto da Lage. Repare-se como a Estrada de Coimbra, que  ultrapassa a linha do caminho de ferro, proveniente de Paialvo, se vai rodear de casas até ao final do primeiro quartel do século XX, a maioria das quais se mantêm, mantendo-se igualmente o traçado da estrada, hoje em dia chamada de Rua Dr. Henrique Pereira da Mota (Figura 3).


Figura 2




Figura 3
Fig. 1- Parte da Planta de localização da Linha do Norte Km 119-121, fornecida pela REFER (actual Infraestruturas de Portugal) em Setembro de 2013.
Fig 3 - Imagem retirada  daqui.

28 de maio de 2015

Beselga



O portodalagense Dr.João Maria de Sousa, como sabemos, escreveu  Notícia Descriptiva e Histórica da Cidade de Thomar, uma obra a todos os títulos recomendável. Nela tomamos conhecimento, simultaneamente, da idade histórica que o autor nos quer dar conhecimento, a história da cidade e seus arredores desde a antiguidade, e também daquela, sua contemporânea, que para nós é já também história, passados que são, agora, mais de cem anos  desde a edição do livro
O último capítulo do livro trata de "três cidades antigas nas imediações de Nabância”, todas elas, curiosamente, vizinhas de Porto da Lage.
Começo hoje a colocar aqui cópias destas últimas páginas. Deliciem-se e, quem ainda o não fez, procure encontrar o livro e comprazer-se com o resto. Dizem-me que é possível lê-lo na net, infelizmente não o consegui achar. De resto, a não ser em alguma biblioteca pública ou alfarrabista é pouco provável encontrá-lo. (MFM)








22 de maio de 2015

Apeadeiro de Fungalvaz - 60 anos


Cidade de Tomar, 22.05.1955


Cidade de Tomar, 29.05.1955

                                               

Apeadeiro de Fungalvaz actualmente. Fotografia retirada daqui





26 de abril de 2015

Henrique, o Primeiro.


Uma das "histórias" da origem de Porto da Lage que a tradição oral conta é que a estação de Paialvo ficou localizada no local onde está por o proprietário da Quinta de Porto da Lage ter oferecido a quinta,  numa versão, ou parte da quinta, noutra, para que nesse terreno fosse erguida a estação, obtendo como contrapartida o cargo de chefe da mesma estação para o filho.


Archivo Pittoresco, 1858, pag. 265
Nas pesquisas que fiz na REFER, nada encontrei sobre isso (1).
Mas confirmo que Henrique Maria de Sousa, o tal filho de João Manuel de Sousa, foi chefe da estação de Paialvo. Parece mesmo que foi chefe antes sequer de haver estação, pois em 1 de Janeiro de 1864 foi baptizado Henrique, filho de Manuel Vieira Adão e Rosa de Jesus, do Corujo e o padrinho é, nem mais nem menos, este Henrique Maria de Sousa intitulado ali "chefe da estação de Paialvo", isto quando a linha do Norte, mais precisamente o troço Entroncamento - Soure, é inaugurado apenas em 22 de Maio desse ano! A  propósito de baptismos, sugiro a quem se chama Henrique, na freguesia da Madalena, que investigue se na origem da escolha do seu nome não está este senhor que era danado, salvo seja, para ser padrinho de Henriques, os quais, por sua vez, terão sido padrinhos de outros afilhados e daí o nome se ter perpetuado na freguesia.
Pois este nosso "chefe da estação de Paialvo" terá permanecido no cargo até 1871, data em que deixa de ser mencionado desta forma nos registos paroquiais, voltando a ser "proprietário", como era designado antes, até 1883, último ano em que se ouve falar de Henrique Maria de Sousa na Madalena. Voltei a encontrá-lo em 1893, era ele "aspirante das alfândegas" e residente na cidade do Porto, numa escritura em que vende, juntamente com o irmão e as irmãs, uma casa em Porto da Lage, "perto da estação", a Faustino dos Santos de Porto Mendo. Nascera em 25.11.1838, constava como solteiro e foi o último descendente, a viver em Porto da Lage, do Desembargador Raimundo José de Sousa, era irmão do Dr.João Maria de Sousa (MFM)
Actual Estação de Santa Apolónia, Archivo Pittoresco, 1866, pag. 1 


(1) Como sabem, a antiga CP dividiu-se, numa destas iniciativas governamentais não sei de que governo, eles são sempre o mesmo, para fazer face aos novos tempos e aos novos desafios, deve ter sido isso, em duas empresas: a CP que gere os comboios e a REFER as restantes infraestruturas, as linhas e as estações genericamente. Quando dividiram "os trapos" dividiram tudo, incluindo os arquivos sendo que, segundo me dizem, a velha CP,quando tudo estava à sua guarda,  tinha tudo organizado e disponível para consulta. Quando tentei saber onde procurar  informações sobre a formação da Linha do Norte em geral, e da Estação de Paialvo em particular, a REFER apenas tinha no seu site uma alusão ao 150.º aniversário do inicio dos caminhos-de-ferro que ocorrera, salvo erro em 2006 e mais nenhuma referência histórica fosse a tempo ou a lugares. Como, pelo contrário, a CP exibia uma morada e horários de abertura ao público do seu arquivo, lá fui eu numa jornada que me ficou marcada na memória pelo esforço escalatório a que me obrigou. Ficando na Calçada do Duque e podendo eu lá chegar de duas formas, em vez de descer subi, e sendo a morada pretendida numa ponta, não deixei nenhum centímetro da calçada por ascender (não é galicismo, confirmei) naquela tarde de forte Verão. Chegando lá acima, contentíssima comigo como será de calcular e quase morta de cansaço, deparei-me com uma senhora muito simpática que, depois de me deixar sentar, me disse que o que eu queria existia sim senhor, mas já não estava na posse da CP, tudo seguira para a REFER, tanto quanto sabia estava num armazém na expo e não disponível ao público, contactos não tinha, mas alguém lá do arquivo tinha um e-mail de outro alguém que se transferira juntamente com o espólio e fez o favor de mo dar. O meu correio para o tal e-mail teve como resposta uma inquirição completa sobre a forma como eu o conseguira, coisa a que me recusei a responder; eu tenho-me por pessoa grata e quem me dá uma cadeira em certas circunstâncias da minha vida é como se desse o cavalo ao outro senhor que o trocava pelo reino. Passado este capítulo e tendo sido aceite que as minhas intenções não eram espiar as secretas maquinações da empresa, que eu nem sonhava existirem mas passei a suspeitar, quiseram saber ao que eu ia, ao que, depois de me mandarem esperar vários dias, responderam que não era ali. Então era onde? Deram-me as relações públicas. Que sim, iam tratar do caso, responderam as ditas relações, mais um mês, nenhuma resposta. Aquilo havia de ter tutela, pensei, fazem greves logo têm tutela, fui-me ao site do governo, descobri a Secretaria de Estado que havia de mandar alguma coisa nos senhores das linhas férreas e apresentei a devida queixa, anexando os mails do percurso da minha cruz ferroviária até àquele momento. Dia seguinte, um mail de uma senhora para eu ir à sede da REFER explicar o que queria. Disse-lhe que agradecia mas a minha vida não era aquela, tinha mais que fazer e o que eu queria estava por mais evidente. Iria, sim, mas ao local onde estivessem os documentos que eu desejava consultar. Eu que dissesse o que queria exactamente que ela ia buscar. Mas se eu não sabia exactamente o que havia, como lhe poderia pedir? -Então se a senhora não sabe o que quer porque é que nos anda a incomodar? Anexei o edificante diálogo e reenviei-o para o Secretário de Estado. À tarde, novo e-mail de outra senhora dizendo-me que teria à minha disposição para quando eu quisesse, tudo o que lhe fosse possível encontrar sobre a Estação de Paialvo. E assim cheguei à sede da REFER que, para quem não saiba, eu não sabia, fica no edifício da estação do Rossio, sim, aquele neo-manuelino, onde, para se entrar se precisa de ultrapassar cento e cinquenta seguranças e correspondentes "pórticos" (está muito além da minha compreensão o motivo de tanta segurança em certas empresas, sobretudo nas deficitárias, nem ouso imaginar do que se querem proteger) e lá me esperava em cima de uma secretária de uma senhora (penso que engenheira de obras, nada que tivesse a ver com arquivos), um maço de documentos referentes "ao alargamento da estação de Paialvo em 1929". Fora o que a boa-vontade da senhora conseguira. O processo, bastante completo, ia desde a publicação no diário do governo da necessidade da expropriação até à correspondência, um a um, com os expropriados e respectivas negociações. Notável na resiliência e persuasão é Ana de Sousa Rosa viúva de Manuel Escudeiro, que consegue, depois de meses batalhadores, que lhe paguem terrenos de mato, herdados do pai, ao preço de outros, agrícolas, com o argumento de que iriam servir para o mesmo. Felizmente este processo continha a planta original do troço da linha férrea entre os quilómetros 119 e 120 da linha do Norte, datada de 1859. Pedidas cópias, consegui aquela planta de localização que indica meticulosamente os  terrenos por onde a linha virá a passar, entre os quais está indicada a Quinta de Porto da Lage e mais fazendas dispersas, pertencentes ao dono da quinta e a outros proprietários. 
Pude concluir, desta minha aventura, que a Quinta não era a exclusiva proprietária dos terrenos na área onde se localiza a estação e, o que eu queria fundamentalmente saber, não havia qualquer malha urbana por ali. Apenas se pode ver uma edificação. Do processo de expropriação dos terrenos nada consegui, pelo que não pude confirmar se João Manuel de Sousa, o dono da Quinta de Porto da Lage teria oferecido algum pedaço daquela à Real Companhia dos Caminhos de Ferro, muito menos a troco de quê.

16 de abril de 2015

" Aranjuez Com Teu Amor "



O Concerto de Aranjuez de Joaquin Rodrigo é a obra musical espanhola mais interpretada em todo o mundo, particularmente  o seu adagio que nos habituámos a ouvir nas ruas interpretado pelos grupos sul-americanos, sobretudo os incas peruanos que, debaixo dos chapéus e envoltos nos ponchos o fazem assobiar a partir das suas flautas. A minha versão preferida era a cantada por Amália Rodrigues em francês, gravada em 1967. Descobri agora uma versão portuguesa de David Mourão Ferreira. Para aqueles que, tal como eu, adoram Amália de todas as formas e feitios aqui fica. (MFM)






14 de abril de 2015

A Torre do Tombo e Todos Nós

Torre do Tombo actualmente, Alameda da Universidade, Lisboa


Se me perguntassem qual o serviço que conheço, público ou privado, que presta o melhor atendimento e mais bem serve a sua clientela, eu não hesitaria um segundo na resposta – a Torre do Tombo.
Podem-me dizer que é “um nicho” específico a que só alguns, também com interesses muito específicos, acedem. É verdade, mas isso não tira nem põe à existência de cordialidade, disponibilidade, gratuitidade e, já agora para terminarmos na rima, na humildade demonstrada por todos os que lá trabalham e contactam com o público. “Senhores” do maior e mais rico espólio arquivístico, no mundo, da história da lusofonia e, portugueses como são, não seria de admirar que a presunção se apossasse daquela gente. Mas não, são competentes, são académicos graduados, e são simples. Estranha e perplexa combinação em Portugal. Não sei porque são assim, dizem-me que é uma cultura que atravessou regimes. “Bem me pareceu que aquela doutora não anda bem” comentou o Francisco, um dos guardas da empresa de segurança, quando, há anos, nos primeiros dias de lá ir, lhe entreguei uma carteira que encontrara perdida no bengaleiro “outra vez a esquecer-se das coisas, tenho que lhe telefonar”. Perante o meu espanto, esclareceu – somos uma família aqui na Torre, está a ver como a senhora me veio entregar a carteira?- outra pessoa, noutro sítio, ficava com ela! Fiquei a saber, portanto, que “a Torre” tem também o mérito de fazer a gente séria!    A vontade de colaborar começa mesmo nos portões, com os guardas. Pessoa que ali se dirija a querer saber quem é o avô que nunca conheceu mas que a mãe dizia ser de …, a terra do avô que “se estabeleceu em Pernambuco em 1913, e foi de navio, tá vendo?” ou o pai do avô que até comprou a terra que agora é necessário vender mas o notário diz que não tem lá nada que prove e “eu então pensei como vocês têm aqui tudo guardado talvez me pudessem desenrascar” ou o académico estrangeiro que sabe exactamente o que quer consultar, todos são encaminhados e são-lhes tiradas as dúvidas, ali mesmo na Torre, ou orientados para a repartição própria, em Lisboa ou no resto do país.  
No que a mim diz respeito e aos meus interesses, a genealogia e a história local, a Torre do Tombo está no “Top” das instituições a que recorri e em que fui plenamente correspondida, não só pelo acervo que, naturalmente, contém, como na prontidão e simpatia com que respondeu às minhas dúvidas (deixo o eufemismo chamar “dúvidas” à minha santa ignorância).
O seu aspecto vetusto e sério, a sua fama de só conter pergaminhos e estar ao serviço de estudiosos que produzem grandes teses de nível mundial, talvez afastem as pessoas comuns que pensam que não há ali lugar para elas. Nada mais errado. Nunca ali vi distinções, cada um identifica-se com o seu nome. Diz o que quer, não tem que fazer menção do objectivo, se o faz é para clarificar e ser ajudado. Qualquer documento, desde que esteja autorizado e venha a público é entregue a qualquer pessoa que o requeira, o V. pesquisador da aldeia dos avós, lá no seu Minho, emocionou-se quando se viu com uma carta assinada por D.Teresa, mãe do nosso primeiro rei, nas mãos. Lê-la é que já não foi possível, paleografia é preciso já levar sabida. Mas a maioria dos documentos podem ser reproduzidos, o que, único reparo, não é propriamente acessível financeiramente. Mas, considerando que tudo o resto é gratuito talvez seja compreensível, atendendo a que outros serviços, como a Biblioteca Nacional, exigem pagamento de cartão anual de acesso.
A documentação existente na T.T é imensa e vem desde o sec.IX, porém compreende muito arquivo dos dois últimos séculos, como revistas e fotografias (todo o Século lá se encontra) que é fácil e gostosamente inteligível por toda a gente. Basta ir ao site, escolher e apresentar-se lá um dia. Quem o quiser fazer verá que é bem recebido e não se arrepende. Note-se que, por lá, ninguém me encomendou o sermão, nem sequer conhecem este blog, mas é com todo o gosto que digo estas palavras.

 O Arquivo nacional da Torre do Tombo estava aqui  colocado em 1860, no
 então Palácio das Cortes  (Arquivo Pittorescho, pag. 405), actual Assembleia
da República, lugar onde permaneceu 
entre 1755 e 1990, até se mudar para a
Cidade Universitária.


Quando, há meia dúzia de anos, quis conhecer as minhas raízes sabia que não tinha onde as consultar, não havia livro em livraria ou biblioteca, muito menos pesquisa na net que me valesse. Não tinha “livros de linhagem”, avós, nem sequer pais vivos que me ajudassem com memórias. Tinha um trabalho para fazer literalmente de raiz: ir às fontes. O senso comum e o conhecimento razoável do funcionamento da administração pública diziam-me que a “papelada” a consultar: certidões, de nascimento, casamento, óbito, estaria algures. Passados os primeiros escolhos, tirar certidões dos avós em Tomar (em Tomar é tudo sempre tão difícil – qual a finalidade, tem que saber o dia, senão nada feito, na altura eu ainda ignorava que o dia que constava era de baptismo, eu só conhecia o de aniversário, o nome exacto, agora não temos tempo, etc, etc,- diga-se porém, em abono da verdade, que a atitude foi mudando, não por mérito do serviço mas porque, francamente, os cansei, passe a vaidade), todos os passos seguintes, quer em Santarém quer na TT,  resultaram numa agradável surpresa.
Na época já muita região do país tinha a informação sobre os assentos paroquiais on-line, e hoje cada vez há mais. Infelizmente no distrito de Santarém nada está feito (descobri agora que há unicamente três períodos da freguesia da Madalena, só essa, que existem na net, coincidência ou não, correspondem, precisamente àqueles que eu, e outra pessoa, pagámos para serem digitalizados !).Por razões desconhecidas toda a informação relativa a paroquiais de Santarém foi integrada, em determinada data, no arquivo distrital de Lisboa, motivo pelo qual a informação está na Torre do Tombo e não no Arquivo Distrital de Santarém. Como deveria. Deveria mas não me daria jeito nenhum. Foi assim que cheguei à Torre do Tombo. Diga-se que os livros paroquiais podem ir até meados do sec.XVI –data em que passou a ser obrigatório o registo escrito daqueles actos, o que, na maioria dos casos não acontece devido a incidentes vários. A freguesia da Madalena é uma privilegiada pois tem livros desde 1557, com pequenas interrupções de livros desaparecidos no sec.XIX. Acontece que estão apenas acessíveis a consulta, através de microfilmes, livros de casamentos a partir de 1600 e baptizados a partir de 1691. Os anteriores nem sequer podem ser digitalizados devido a mau estado. Segundo informações não há orçamento oficial para proceder aos restauros, mas qualquer um pode pagar os custos, se quiser, o que tem acontecido com associações, câmaras municipais e juntas de freguesias, até particulares, noutros casos. Em Tomar, então vila, existem livros de baptismos desde 1626 e casamentos desde 1779, com interrupções por época das invasões francesas, que vão sendo reconstruídas durante o século XIX (alguém que se tenha baptizado ou casado em período que tenha coincidido com “a invasão do inimigo” arranja testemunhas e vai reconstituir o acto). Em Ourém as coisas são muito piores, só existem livros após as invasões, todos os livros anteriores, que estavam depositados em Leiria na Sé Diocesal foram destruídos. Na freguesia de S.Silvestre da Beselga também só existem livros desde 1830.
Ler estes livros é uma aventura, que, como todas, pode ser maravilhosa e repleta de descobertas ou cheia de torturas desesperantes e mesmo sem saída, tudo depende do padre, prior, vigário, Deus o tenha Consigo, que redigiu os assentos. A caligrafia, aquela coisa ancestral e em desuso, é tudo. E não se pense que melhora com o decorrer dos séculos, nada disso. Os gatafunhos dependem de cada um independentemente da época. Há um sr. Prior em Tomar no final do século XIX em que as ameaças a lápis nas margens são tão elucidativas que se pode concluir que só não foi assassinado por algum leitor futuro, por motivos óbvios. Por outro lado, é um regalo ler os assentos de frei Amador de Sousa, em 1600 na Madalena. E os visitadores (aqueles senhores que faziam inspecções, a mando do bispo, para saber se os livros estavam nos conformes) faziam notar isso, lá pelo sec.XVIII um deles, em Assentis, deixou a seguinte mensagem para a posteridade: “devia escrever bem, ou melhor, devia aprender a escrever”, é por estas e outras que a religião católica é a minha religião preferida.

Leitura conseguida, não se fica só a saber os nomes de pais ou avós, pode-se conhecer a categoria profissional dos pais e padrinhos, percursos de vida (num casal, ao longo do nascimento dos vários filhos pode perceber-se a mudança de morada ou mesmo de profissão), o relacionamento e a ambição familiar (quem é padrinho de quem, se a pessoa importante da terra se os irmãos da mãe ou do pai), como morreu, se teve ou não tempo de tomar os últimos sacramentos, se foi enterrado dentro da igreja, no altar-mor, no adro. Se fez testamento, nalguns casos o testamento está transcrito no óbito. Acompanha-se a vida de alguém, o seu nascimento, o primeiro e segundo casamentos, o baptisado dos netos. Não me esqueço da primeira vez que encontrei o batisado de uma criança filha de mãe solteira e da minha alegria quando, folhas adiante, vi o casamento da mãe acompanhado da legitimação da criança, na geração seguinte observei o casamento desta. Este happy end enternece. Da mesma forma que deprime ler, nos óbitos, páginas e páginas cheias de crianças, muitas sem nome. Enfronhar-mo-nos nestes livros é mais do que entrar num romance, é conhecer os personagens e construí-lo. É viver outra vida. Aconteceu-me percorrer Assentis, onde eu nunca tinha ido, no sec.XXI e reconhecer o Casal do Pombo e o da Estrada e as Moreiras Grandes e as Pequenas e tantos outros locais de onde eram provenientes as gentes das minhas pesquisas. Quem ia comigo no carro duvidou da minha sanidade mental perante as minhas exclamações de alegria do reencontro e explicações sobre quem e quando ali nascera.
Esgotados os livros paroquiais, ou porque desapareceram ou porque se chegou ao limite possível, outra forma de se descobrir antepassados é através das Inquirições de Genere. Algo de precioso que aprendi na Torre do Tombo. A partir do estabelecimento da inquisição em Portugal, uma das suas funções era proceder a estas inquirições. Como o nome indica eram processos que se destinavam a inquirir, no caso, a família de alguém. Resumidamente, ninguém podia ter uma carreira eclesiástica, na “função pública” da época (magistrado, bacharel na chancelaria, etc) ou, muito menos ser funcionário da própria inquisição (familiar do santo ofício) se não provasse ser de sangue puro, sem qualquer mácula de mulatice ou judaísmo. Assim sendo, era necessário investigar a família. Estes processos geralmente muito bem instruídos fornecem informações, às vezes até aos bisavós dos inquiridos, com treslados de certidões de avós, tios-avós, etc, bem como sobre comportamentos e estatutos sociais. São ouvidas testemunhas que, consoante a capacidade literária do relator, nos podem dar uma visão mais ou menos boa dos modos de vida de duas ou três gerações, a avó guardava cabras, o pai era lavrador, o tio era capitão de milícias, etc.
As inquirições de Genere eclesiásticas encontravam-se distribuídas por quatro Câmaras Eclesiásticas: Braga, Coimbra, Lisboa e Évora, hoje, respectivamente à guarda das Universidades do Minho, Coimbra, Torre do Tombo e Universidade de Évora. A Torre do Tombo tem um arquivo das pessoas sujeitas a inquirição por nome próprio, por apelido e por freguesias de proveniência. A pesquisa por nome próprio, a menos que se saiba à partida quem se vai investigar, pouco ajuda, a por apelido ajuda um pouco se conhecermos sobrenomes dominantes na família e se estes forem pouco comuns. Por exemplo, o apelido Escudeiro vim a verificar pertencer sempre à mesma família e estar ligado à Madalena, Assentis ou Beselga. A pesquisa por freguesias é, de longe, a mais produtiva. No meu caso, quase todos os padres de Assentis, não digo que fossem meus antepassados, não só dada a impossibilidade oficial da coisa mas também porque, estou certa, eram castos e tementes a Deus, mas eram irmãos e primos de avoengos meus pelo que, através deles, encontrei ascendentes.
Quanto à freguesia da Madalena e outras em Tomar, em geral, é muito difícil saber onde se encontram as inquirições de Genere dos padres lá nascidos. Sendo Tomar uma Vigararia autónoma os pretendentes a clérigos não tinham que se “formar” obrigatoriamente numa diocese sede, como acontecia em Torres Novas relativamente a Lisboa.
Outras inquirições são as chamadas leituras de Bacharéis. Qualquer jovem formado em Coimbra que pretendesse colocar-se ao serviço do rei lá fazia o seu requerimento e lá submetia a família a inquirições. Aqui havia uma diferença em relação às outras inquirições, em princípio estava vedada a carreira das leis a filhos de gente mecânica, isto é, que trabalhasse com as mãos, camponeses ou artesãos, mesmo que fossem legítimos cristãos-velhos. Mas esta condição era transponível com requerimento ao rei, sendo então o bacharel filho de um sapateiro, por exemplo, colocado em início de carreira no ultramar, Índia ou Brasil eram uma hipótese.
Por último, as habilitações para familiar do santo ofício, as mais exigentes quanto a pureza de sangue, e para a Ordem de Cristo também exigiam inquirições de Genere.
As Chancelarias régias, nas quais constam os registos de mercês, doações e ofícios dos reis, podem levar-nos, também, a conhecer as profissões ou bens de antepassados.  No caso da freguesia da Madalena, uma vez que as suas terras pertenciam à Ordem de Cristo, a leitura dos respectivos fundos, que estão catalogados e existem em livros encadernados desde o sec. XVII, dá-nos a conhecer os “proprietários” (foreiros ou rendeiros) das terras das comendas. Foi desta forma que descobri o aforamento do Casal da Belida a Diogo Álvares de Sousa por três vidas em 1651 e a confirmação ao neto em 1758 por mais três vidas. Pode ser que, numa destas leituras, me surja, um dia, numa época longínqua, qualquer referência a Porto da Lage. (MFM)

6 de abril de 2015

O Bem e o Mal


A um homem bom e às vitimas do mal, que nos deixaram recentemente, Que descansem em Paz.

José da Silva Lopes, 1932-2015
   
Massacre no Quénia, 2.04.2015

«Adão e Eva tinham liberdade para fazer qualquer coisa que quisessem, excepto comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. (Génesis 2:16-17):Deus criou Adão e Eva para serem seres livres, capazes de tomar decisões, capazes de escolher entre o bem e o mal. Foi o acto de desobediência que abriu os olhos de Adão e Eva para o mal. O seu pecado de desobediência a Deus trouxe o pecado para as suas vidas e o mal para o mundo .»


Não quero saber se a culpa é da mente arbitral
Sei que conheci poucos que escolheram ser bons!      
Que cada vez vejo mais a agregar o mal
E outros tantos tão ocupados a tecer razões
que não sobra tempo para tomar decisões
e vão apequenando a contenda desigual  
Até já não restar nada para julgar.

2 de abril de 2015

Boa Páscoa


Este é um esboço de Domingos Sequeira, infelizmente numa reprodução muito má, que não deixa ver o que o original nos conta com toda a maestria.
Escolhi-o, apesar disso , por retratar as emoções das gentes depois da morte de Cristo.



A dor, a pena, o medo, a curiosidade, a indiferença, variam consoante os protagonistas. Mas a todos envolvem, com uma excepção, as trevas e a perturbação. Seguir-se-ão tempos nunca vividos antes.
Nos dias de hoje, a Humanidade volta a estar perturbada, de diferentes formas, nesta montanha de escuridão e de medo.
Que, ao momento do Calvário, suceda o da Ressurreição. Boa Páscoa. (MFM