Parábola da pediatra como não há outra
ou de como a culinária pode ser xenófoba
ou ainda
de como este blog também tem uma história para contar a propósito dos tempos que correm.
Virgem de Granada, de Fra Angelico (1387-1455) |
Um casal com filhos, de quem sou
muito próxima, vive há algum tempo em Itália. Por lá beneficia, como todos os residentes, do respectivo Serviço
Nacional de Saúde cuja implementação, não sendo nacional mas regional, varia de
qualidade segundo as regiões, sendo, na cidade a que me refiro,
considerado excelente, o melhor do país. A cada família é atribuído um médico,
o qual recebe os doentes no seu consultório, não existindo aparentemente
diferença entre os particulares e os outros, as contas são feitas entre o Estado e o médico, o qual pode prescrever todos os exames e especialistas quando vir
necessidade. Nesse caso, o doente só tem que ir à farmácia (sim, à farmácia!) e
pedir para lhe marcarem o indicado. No prazo máximo de uma semana já estará no
consultório do médico da especialidade ou a fazer o exame prescrito. À
semelhança do médico de família é também atribuída a cada criança um pediatra,
exactamente nos mesmos moldes.
Voltando à família em causa, esta
viu-se aumentada com mais um elemento, a MT, que nasceu no inicio do Verão
passado. Tal nascimento teve acompanhamento médico pré e pós parto, segundo a mãe, fabuloso, tendo a menina passado a ter a mesma pediatra que os manos já tinham.
Uma pediatra como não há outra,
palavras da mãe com as quais, estou certa, todos os que me lêm irão concordar. A senhora, já
considerada excelente à conta dos irmãos, reforçou a sua fama, e acho que
também proveito, com a MT. Na consulta própria, penso, dos quatro meses, deu ela ordem para a bébé começar a comer sopas, enumerando o tipo de
elementos que dela deviam fazer parte, como é costume. Fiada na sua experiência a
mãe deu pouca atenção ao desfile de legumes e batata e cenouras e etc, e
respectiva periodicidade, que a doutora ia enumerando, até que acordou da sua
distracção ao ouvir – por fim, não se esqueça de ralar um pouco de parmasiano sobre o caldo. O quê, ralar
queijo na sopa de um pouco mais que recém - nascido? Pensou a mãe para consigo, mas não
retorquiu. Já conhece suficientemente bem os italianos!
E claro, o queijo ralado na sopa
dos bébés italianos (coisa que a dita mãe averiguou ser hábito, não um devaneio
da médica) passou a ser piada entre os tugas circundantes e tema de conversa no
pátrio Natal seguinte; estava explicado porque aquela gente não passa sem o
queijo, corre-lhe literalmente nas veias, juntamente com o leite materno, desde
a mesma tenra idade!
E seguiu-se a consulta seguinte,
a criança estava lindamente, auguri
belíssima bambina, brava ragazza! toda a explosão italiana rompia da boca
da exultante médica que, via-se, se envaidecia do seu contributo no feliz e
visível resultado na criação de um bébé de catálogo – bochechas rosadas, olho
azulado risonho, sorriso desdentado até às orelhas.
E seguiu-se a conversa, monólogo,
conclusivo. A boa alimentação era tudo, via-se que a bambina comia tal e tal e
tal, e mais o queijo e mais a farinha, etc. A tola da mãe (eu já lho disse!),
constrangida com tantos complimenti não
teve mão em si que não esclarecesse – pois que desculpasse a sr.ª doutora mas
não sendo hábito português, de todo lhe esquecera o queijo, quanto à farinha, a
mesma coisa, não costumávamos pôr farinha na sopa, logo, nunca pusera farinha
na sopa da filha. – Como, a bambina não comia farinha!? Espantou-se.- Como é
que ela conseguia comer a sopa sem queijo? Coisa insípida! Muito se admirava! -
A menina comia só a farinha na papa, misturada com carne e legumes não! E, sim,
gostava muito de sopa, mesmo sem queijo!-respondeu, já irritada, a mãe.
A médica suspirou, recostou-se na
cadeira, mirou a interlocutora, procurou as palavras e falou calmamente (para
quem desconhece, quando um italiano fica calmo depois da indignação, quando não
grita, não se encoleriza, não insulta o interlocutor, o caso é grave, muito grave e ele está sério, muito sério).
Pois muita pena tinha ela, que
aquela família, com tão belos filhos, gozando do privilégio de os criar em Itália,
não aproveitasse devidamente a cultura deste belo país. Que não os criasse
conforme a cultura italiana, ou que, pelo menos, não os alimentasse com os costumes
italianos. A comida italiana era a melhor do mundo, a mais rica, a que fazia uso dos melhores ingredientes. Não havia agricultura como a italiana, capaz de produzir
os melhores produtos, e o mesmo se podia dizer da carne e até do peixe. Quando
os elogios chegaram ao peixe italiano, o ânimo da pobre e humilhada mãe
portuguesa, já disposto a acreditar em todas as loas à magnífica Itália e a
pisar todos os hábitos e costumes lusitanos como próprios de povo primitivo e
ingrato, pois, naquela hora, aquele ânimo rebaixado levantou-se, nem foi por patriotismo, foi
por puro amor à verdade – contou ela depois- e retorquiu - Desculpe, mas quanto
ao peixe não concordo. A Itália não tem peixe nem em qualidade nem em
quantidade, nada que se compare a Portugal. Nós aqui nunca encontramos peixe
bom, o pouco que há não presta. - Mas isso é uma questão alheia à Itália, o
nosso peixe é bom, se agora se não pode comer é por causa dos imigrados do
norte de África que se afogam no mar e por lá ficam a apodrecer! - respondeu a médica.
- E tu continuas a confiar os
teus filhos a uma criatura que diz estas enormidades?- perguntei eu àquela mãe,
fazendo minha a pergunta dos meus caros leitores e de toda a gente sensata em
geral.
- E faço o quê? Vou procurar um italiano não nacionalista onde? Não existe. E depois, não há ninguém
perfeito e ela é uma pediatra como não há outra. (MFM)